Nunca fora capaz de
perceber o culto imperial. Como qualquer pessoa tinha relativamente bem
presente a cronologia daquele fenómeno estranho ao império romano pelo qual, a
partir de Augusto, os imperadores após a morte foram sendo divinizados, tomados
por deuses, e mais tarde ainda em vida. Esta divinização implicava tudo o que
dizia respeito a um deus, e por vezes mais. O ancestral culto civil romano
integrou o culto ao imperador na perfeição, e paralelamente aos templos aos
deuses do panteão foram sendo construídos templos ao imperador por todo o
império. Ao imperador eram devidos rituais, sacrifícios, sacerdotes, como a
qualquer outro deus.
O culto ao imperador
evoluirá tanto, tomará uma função de tal forma central, que se tornará de certa
forma a religião oficial dum império que até então jamais tivera uma: às
províncias conquistadas era permitido que mantivessem os seus deuses locais
(que até eram mesmo muitas vezes transladados para Roma para tomarem parte do
grande sincretismo latino), e a única condição que lhes eram posta era que
integrassem o imperador nos seus ritos (o caso de longe mais famoso, por ter
sido o único em que esta exigência foi posta em causa, foi claramente o caso da
Judeia, que se rebelou e levou Roma a devastar a província e a resistência
religiosa judaica).
Ora todo este
aparato sempre me soara a mim um sinal não só de decadência mas até mesmo um
sinal de decadência incompreensível. Ao contrário de outras manifestações de
decadência cujas raízes conseguia traçar e, traçadas, entendê-las mesmo que as
lamentasse, sempre me fora impossível perceber como é que esta nação fora capaz
de adorar como deuses homens que há poucos anos tinha conhecido ou que conhecia
presencialmente. Os exemplos de outras civilizações, principalmente a Egípcia,
estão o mais das vezes demasiado distantes no tempo e espaço culturais para
sentirmos sequer que deveríamos ser capazes de fazer a ponte, mas no caso de
Roma o problema do culto imperial era diferente do da civilização egípcia, onde
o todo me era estranho e onde portanto a divinização faraónica assumia os
contornos duma situação que fazia sentido no contexto totalizante — sendo que
esse contexto totalizante me era bizarro à partida; antes, em Roma, deparava-me
com o culto imperial como um elemento que fazia pouco sentido no contexto da
restante civilização, um puzzle onde uma peça não encaixa, um enigma cujo ónus
estava em mim para decifrar, e por conseguinte também a culpa ou a incapacidade
por não o conseguir fazer.
Mais uma vez a
resposta está na música. O compositor humanista Petrus Tritonius (1465-1525) faz parte
daquela elegante e maravilhosa corrente que, principalmente durante o
Renascimento, tentou fazer de novo brilhar a poesia greco-latina através dos
metros que lhe são ínsitos. Hoje em dia quem aprende Latim (ou Grego) aprende
que os poemas estão escritos numa coisa chamada métrica, que ao contrário da
prosódia das línguas modernas (ela própria abandonada quase por completo pelos
poetas contemporâneos), se articula pela alternância de sílabas longas e
breves, que nada tem que ver com o sistema de sílabas tónicas: numa palavra
latina pode haver tantas sílabas longas ou breves quantas houver na palavra,
sem que por isso tenham de forma alguma de coincidir com a tónica.
Esta métrica parece
uma coisa absolutamente arcana que é cultivada, parece-me, por dois tipos de
pessoas apenas: ou pelos estudiosos críticos que se podem servir dela para
identificar problemas textuais (um hexâmetro, por exemplo que comece por uma
sílaba breve sofreu claramente uma falha de transmissão e carece de correcção
pelo editor moderno); ou então por pessoas a quem apraza furar os ouvidos com
um ferro quente: ARma viRUMque caNO TROIÆ QUI PRImus ab ORIS pronunciado como
se alguém tivesse resolvido dar um tambor ao meu irmão mais novo (o que é dito
com muita injustiça, pois o Álvaro toca muito bem piano e talvez até leia este
blog).
Isto é bastante
absurdo, pois significa enxertar um sistema de prosódia — o nosso das sílabas
tónicas — no sistema antigo de longas e breves. Os antigos, sabemo-lo, tinham
por hábito cantar os seus poemas, e por cantar entende-se musicalmente: o ritmo
de longas e breves, de quantidades, é o ritmo duma canção, que muitas vezes
eram compostos pelos próprios poetas, outras tantas improvisadas ou inventadas
por terceiros. Recitar Vergílio implicava, antes de mais, cantá-lo, com
modulações de voz que se aproximam das nossas recitações musicadas, e, segundo
os tratados de Música antigos, poemas como as odes corais trágicas tinham
ritmos elaborados compostos especificamente para eles que desafiavam até mesmo
a compreensão verbal (como aconteceu com a ópera em vários momentos da sua
história, por exemplo no Barroco).
Como eu dizia antes,
houve na Modernidade quem tenha compreendido esse carácter musical da poesia
antiga, e que tenha tentado compor melodias para os poemas que chegaram até
nós. Os exemplos mais interessantes dessas tentativas foram realizados no
Renascimento, esse glorioso tempo em que, mais que em qualquer outro, a
Antiguidade era um amigo que desafiava, mais do que um pai cujo parricídio era
necessário, ou do que um paciente a analisar. Eu já conhecia várias dessas
experiências; conhecia também alguma da sua prole através das composições do
século XX de Jan Jovak ou, ainda mais recentemente, das composições de Eusebius
Toth na Academia Vivarium Novum.
Estas composições
têm a grande virtude de revitalizar os poemas através da sua força intrínseca:
a métrica antiga, mais do que a moderna, é uma parte tão constitutiva do poema
quanto as palavras, e ao recuperá-la poéticamente tornamo-nos capazes de lidar
com o poema duma forma muito mais próxima do que a alternativa (que passa por
regra por ler o poema ignorando a métrica, e depois "escandir" o
poema independentemente, como tarefa à parte e frequentemente de
incompreensível propósito). Ora essa dita escansão é muitas vezes algo difícil,
pois implica o conhecimento a priori das
quantidades vocais das vogais, conhecimento esse que, no que é importante, não
pode ser antecipadamente derivado de qualquer regra.
A
transposição destes poemas para música cumpre portanto uma série de funções,
das quais numero as que me parecem mais notáveis: α) a restauração ao poema dum elemento sem o qual ele é virtualmente
incompreensível β) o tornar o
contacto com o poema como um todo numa experiência muito mais próxima do que
teria sido na Antiguidade do que aquela que a nossa leitura martelada é capaz γ) aumentar o mero prazer estético da
leitura/audição δ) facilitar
exponencialmente a memorização (memorização essa que depois por si inúmeras
outras vantagens).
Diz
respeito principalmente ao β este
grande excurso sobre métrica e prosódia num texto sobre o culto imperial. Pois,
e foi isto que me fez lançar-me a escrever este texto, foi a recente audição da
melodia que o acima-mencionado Petrus Tritonius compôs para a Ode II.2 de
Horácio que me fez pela primeira vez entender o culto imperial como fenémeno religioso.
Qualquer pessoa que estude Horácio sabe que há algumas das suas odes no
terceiro livro que costumam ser classificadas como as "Odes Romanas", mas essas não são as únicas odes devotadas não a algum dos vários temas que permeiam as restantes
odes — o vinho, o epicurismo, as jovens, os jovens — mas que se manifestam antes ostensivamente como uma glorificação de Roma e do seu César, Octaviano Augusto.
Eu já tinha lido estas odes. Algumas delas várias vezes. Mas uma coisa
certamente é vera, a saber que a força sacral do poema dificilmente se cede à
leitura.
Estes poemas foram
feitos para serem cantados, e se o não forem não revelam a sua vitalidade. Até
ouvir esta ode cantada eu tinha sido incapaz
de entender como é que alguém como o Horácio poderia alguma vez ter celebrado
Augusto como o fez. Ao ouvi-lo entendi pela primeira vez o que significa a
gratidão sagrada, o culto do pai da pátria. Posso não concordar com ela, posso
rejeitá-la — e rejeito-a, aliás ostensivamente: este ano celebram-se a o
bismilenário de Augusto, mas eu não celebro tiranos — mas agora pela primeira vez posso
dizer que a rejeito com a consciência do que estou a rejeitar, e só assim o
posso fazer por completo. Só compreendendo o espírito com que foram compostas as
Odes Romanas o posso combater, caso contrário outra coisa não faço que combater
uma ideologia supervacânea em nome de outra.
Porque
de ideologia sempre se trata. Aproximamo-nos do aparato
literário-propagandístico da Antiguidade, duma Eneida, dum Carmen Sæculare, e ou
vemos nele o cinismo insuportável dos sicofantes — lembrar aqui, acima de tudo,
A Morte de Vergílio daquele Vergílio, Hermann Broch, nado tarde de mais —, a versão
sublimada da propaganda política; ou, se somos incapazes, se nos recusamos a
ver na Eneida apenas isso, se sentimos em nós que o Vergílio não pode ter sido
apenas um fantoche político, se mantemos
aquele descentrado preconceito de que a verdadeira arte sempre se fundará em
algo mais do que a propaganda, e se vemos na Eneida verdadeira arte, então
nesse caso somos confrontados mais uma vez com o paradoxo: como é que alguém
alguma vez poderia acreditar nestes messias? nestes deuses? («deus nobis hæc
otia fecit. / namque erit ille mihi
semper deus, illius aram / sæpe tener nostris ab ovilibus imbuet agnus.») A
nossa mente repugna porque não experimentámos, não vivemos, não aceitamos. E os
subsídios que à nossa mão jazem para que o entendemos, os testemunhos passados
e relatados não permitimos que falem.
Uma das muitas
consequências desta auto-inflingida cegueira é a leitura pessimista da Eneida,
a dita escola de Harvard. Segunda esta leitura, a Eneida é um poema triste, um
poema pessimista, um poema ao fim de contas profundamente dissatisfeito com os
resultados políticos da política augustana. Esta leitura peca antes de mais
pelo falhanço hermenêutico que consiste em rejeitar o texto em nome da
interpretação: esta é a interpretação que queremos de lá tirar porque é isso que nós sentimos do projecto
político de Augusto. Ora isso é antes de mais uma falta de respeito para com o
texto, uma falta de respeito para com a tradição e para com a herança da
Antiguidade. O Pós-modernismo gosta de saltar um passo: enquanto que o genuíno
confronto com a Tradição ouve a Palavra
da Antiguidade, e então responde-Lhe,
nega-a, confuta-a, aceita-a, o Pós-modernismo põe palavras na boca dos Antigos.
Mas os antigos têm bocas de ouro e de prata que oxidam ao toque. Urge antes
ouvir Vergílio, cujo tom triunfal e grato é em imensas passagens impossível de
explicar ou sem má fé de ignorar.
Mas não devemos ser
demasiado exigentes para com as leituras pessimistas da Eneida: quem nunca
ouviu nos ouvidos o canto de Melibeu, quem nunca viu diante dos olhos tal como
Vergílio no-los descreveu as sombras infernais da promessa de Roma, quem apenas
leu sobre elas, como poderia entender?
Para combater Vergílio, Horácio, Mecenas, é preciso antes tornarmo-nos antes
Vergílio, Horácio, Mecenas, entendê-los, compreendê-los: e só depois
combatê-los. O problema é quando se tenta fazer com que o combate assuma a
forma de interpretação, e se desrespeita de tal forma os antigos que, já não
bastasse o facto de eles não terem direito de resposta, mas ainda por cima
roubamos-lhes o direito de formular as suas opiniões, preferindo antes
sofísticas interpretações que tão inteligentemente revelam as "tensões
intrínsecas" ou a "desconstrução do texto a partir de si
próprio".
Esse modo de agir
outra coisa não é que a cobardia de quem não ousa combater, quem prefere que o
adversário capitule antes do combate. Mais corajoso seria dizer: o Vergílio diz
isto: Mas eu digo-vos isto. A coragem
de Jesus, desaprendida dos pós-cristãos («audistis quia dictum est … ego autem
dico vobis…»). O Leo Strauss di-lo também, quando sugere que antes de
entendermos os antigos melhor do que eles se entenderam a si mesmos (isto é,
ele quer dizer, antes de desconstruirmos) temos que os entender tão bem quanto
eles se entenderam a si mesmos. Avisem-se os descontructores: audite ac videte.
Quanto a mim, não
estranharia se um dia viéssemos a concordar que o motivo pelo qual o
Renascimento foi tão politicamente aristotélico, com o seu cepticismo em
relação à existência da melhor forma de governo e o seu favorecer da teoria do
bom governo segundo a virtude (não segundo a ordenação ou o número dos
governantes) se tenha devido em grande parte à música que facultava esta capacidade de entender o
enorme respeito, em suma a veneração que os Antigos tinham pelos seus
governantes. A verdade é que eu, por muito que tivesse memorizado todo o Carmen Sæculare, jamais me tinha conseguido
persuadir do seu carácter de prece. Por muito que tivesse lido sobre a
divinização dos Césares em Ovídio jamais tinha acredito que alguém culto alguma
vez pudesse ter acreditado que tal era possível, que César Augusto fosse realmente
um deus. Mas depois ouvi o Tribonius,
ouvi o Jam satis terris, e entendi. Fui
capaz de responder ao enigma. Claro que qualquer leitor de Sófocles sabe que a
responde ao enigma da Esfinge é apenas o primeiro
passo, e nem o mais importante, e que a verdadeira luta até à morte que
se travará em nome da busca da verdade está ainda para se travar. Mas a Querelle santa começa aí, e não antes.
Desfazem-se os enigmas, e depois confronta-se a verdade. Permanecer
voluntariamente diante dos enigmas é deixar que a esfinge nos devore. Os
enigmas têm uma resposta (que, como o
comentaram já os Antigos, é sempre a mesma: Nós).
Mas aquilo que somos só o saberemos se avançarmos e se estivermos dispostos a
pagar o preço desse conhecimento, como em tempos Hermes-Wotan esteve. Este
problema deixemos que o Tritonius no-lo explique. Como é que alguma vez alguém
poderia acreditar que Augusto é o Salvador? Assim —
In Augustum Salvatorem
Horácio I.2
Jam satis terrīs
nivis atque dīræ
grandinis mīsit
Pater et rubente
dexterā sacrās
jaculātus arcēs
terruit Urbem,
terruit gentīs,
grave nē redīret
sæculum Pyrrhæ nova
monstra questæ,
omne quum Prōteus
pecus ēgit altōs
vīsere montīs,
piscium et summā
genus hæsit ulmō,
nōta quæ sēdes
fuerat columbīs,
et superjectō pavidæ
natārunt
æquore dammæ.
Vīdimus flavom
Tiberim retortīs
lītore Ētruscō
violenter undīs
īre dējectum
monumenta rēgis
templaque Vestæ,
Īliæ dum sē nimium
querenti
jactat ultōrem,
vagus et sinistrā
lābitur rīpā Jove
nōn probante*
uxōrius amnis.
Audiet cīvīs acuisse
ferrum,
quō gravēs Persæ
melius perīrent,
audiet pugnās vitiō
parentum
rāra juventus.
Quem vocet dīvum
populus ruentis
imperī rēbus? Prece
quā fatīgent
virginēs sanctæ
minus audientem
carmina Vestam?
Cui dabit partīs
scelus expiandī
Juppiter? Tandem
veniās precāmur,
nūbe candentīs
umerōs amictus,
augur Apollo,
sīve tū māvīs,
Erycīna rīdēns,
quam Jocus
circumvolat et Cupīdo,
sīve neglectum genus
et nepōtēs
rēspicis, auctor,
heu nimis longō
satiāte lūdō,
quem juvat clāmor
galeæque lēvēs,
ācer et Maurī
peditis cruentum
voltus in hostem,
sīve mūtātā juvenem
figūrā
āles in terrīs
imitāris, almæ
fīlius Maiæ, patiēns
vocārī
Cæsaris ultor.
Sērus in cælum
redeās diūque
lætus intersis
populō Quirīnī,
nēve tē nostrīs
vitiīs inīquum*
ōcior aurā
tollat; hīc magnōs
potius triumphōs,
hīc amēs dīcī pater
atque princeps,
neu sinas Mēdōs
equitāre inultōs
tē duce, Cæsar.
* A gravação tem um erro aqui por não fazer a transição de probant'u, e de ler vitīs* em lugar de vitiīs.
A quantificação das
sílabas é minha, portanto é possível que haja falhas.