21/04/2019

O ateu de Bach


"Se houvesse alguma coisa que neste mundo me levaria a acreditar, seria música de Bach" é um tique bastante cliché de intelectuais ateus e agnósticos. Com alguma subnota classista, pela insinuação de que, ao contrário das massas indoutas que se satisfazem com milagrices marianas de segunda ou de terceira, ao refinado esteta só o Mestre dos Mestres seria capaz de trazer para a fé cristã.

Mas é preciso um entendimento muito caricatural da natureza da fé religiosa para se ter essa opinião. Como imaginam os nossos amantes de Bach que uma pessoa, por norma, se converte? Há uma história subentendida, que as pessoas acreditam porque foram iludidas. Que analisaram uma lógica, eventualmente até recensearam alguma prova da existência de Deus, e a partir daí concluíram que a religião deve ser verdade. Só que, por maioria de razão, essa racionalidade terá dado algum passo em falso porque Deus não existe, e portanto um argumento que leve até à fé terá de ser um argumento débil, para mentes débeis.

O que o "só Bach me converteria" implica é que, incapaz de acreditar irracionalmente, só uma espécie de "argumentum ad baculum" ("argumento da pauzada", ou apelo à força) dirigido contra a alma incauta seria capaz de arrancar o espírito iluminado da clareira da razão. A fé torna-se assim uma violência, uma falácia informal: só lá vai pela estética, contra a qual não há argumentação possível.

É uma fábula complacente, que serve ao mesmo tempo para elevar o Bach e para elevar a experiência da religião dessa pessoa acima da experiência da religião das demais mortais. Afinal de contas, como é que a nossa quase-convertida intelectual julga que a conversão funciona com as outras pessoas? A experiência da conversão é universalmente descrita como um arrebatamento perfeitamente idêntico àquele que descreve a sedução que o "ateu de Bach" sente ao ouvir a Paixão Segundo São Mateus.

Noutras palavras, aquilo que o "ateu de Bach" imaginava que o diferenciava dos demais crentes, é precisamente aquilo que o insere na grande cadeia da propagação da fé. A circunstância do arrebatamento é precisamente aquilo que une as experiências de conversão. O Drew Campbell, no seu bizarro livro de introdução prática ao culto dos deuses da antiguidade greco-latina, "Old Stones, New Temples" (2000),
«Most religious people will recognize that it is these singular moments that mark the entry into faith, whether we attribute them to the care of the Olympians, the love of Jesus, the bounty of Mother Earth, or the mercy of Allah. In all cases, the foundation of our beliefs and our practices is the immediate and intuitive apprehension of the divine by individuals and communities. In short, we worship the gods —our gods— because they invited us to. All we did was say yes.»
Mesmo o facto de, terminada a gravação, deponha a crença, responde à experiência de toda a religião, que nunca mantém uma constante de fervor idêntica aos momentos de êxtase. O Arthur Nock, no seu livro 'Conversão' (1933):
"Ordinary humanity felt the spell for a moment; but it had to return «To the old solitary nothingness.»"
Ou seja, um "ateu de Bach" é tanto ateu como um "católico de casamentos e batizados" é católico: ou seja, não é. A ideia de "conversão religiosa", a alguém realmente ateu que ouça Bach não passará jamais pela cabeça, porque a categoria da "conversão" não estará latente no seu espírito, pronta a ser accionada, da mesma forma que eu não pensaria jamais em converter-me depois de comer uma sobremesa particularmente divinal: as categorias seriam diferentes. No "ateu de Bach", pelo contrário, a possibilidade da conversão está lá, sorrateira, à espera, à coca.

Não há nada de mal nisso, certamente não do meu ponto de vista. Eu em larga medida eu mesmo sou um "ateu de Bach" em muito da plenitude paródica que vim até aqui a descrever. Mas penso que é importante que essa apreciação estético-religiosa não seja jamais considerada da forma hipócrita que tantas vezes assume quando adquire traços classistas. Como dizia acima, o "ateu de Bach" não se limita a ser o tipo normalíssimo de crente com a mais normal génese da sua conversão religiosa, como também a maior parte das religiões subsumiu perfeitamente a sua experiência estética de forma perfeitamente harmónica dentro das suas expectativas teológicas.

Em particular no entendimento cristão, Ens et Verum et Bonum et Pulchrum* in unum convertuntur (*pulchritudo para vós ciceronianos ferrados) -- "O ser e a verdade e a bondade e a beleza encaram-se, transformam-se uns nos outros." Neste dito que remonta em última instância ao S. Tomás encontra-se condensado o melhor que o platonismo conseguiu fazer da doutrina da Igreja. Para o tema da nossa conversa, onde estiver a Beleza, lá estará também o Ser. Claro que não conseguimos compreender isto se insistirmos, patetamente, que há uma qualquer desconfiança, desprezo, ou mesmo ódio por parte do Cristianismo para com a experiência estética, e só essa ideia, absolutamente falsa, explica a complacência do "ateu de Bach". Citando o Eduardo Lourenço, no "Gibão de Mestre Gil":
"Estranha ideia se fazem esses críticos da ortodoxia. Sem ela não se precipitariam com uma alegria não dissimulada sobre o mínimo sintoma, a mínima expressão que por humanamente aceitável, racional, crítica já se lhe afigura um desmentido, um desvio, uma negação dessa ortodoxia a respeito da qual eles se inventaram uma imagem caricatural."

17/04/2019

Imigração e identidade europeia

Por algum motivo que me escapa, a crença de que as fronteiras e a restrição à liberdade de movimento dos povos são um imperativo histórico e uma necessidade tende tanto mais a ser acerrimamente esposada quanto mais à pessoa que a defende lhe apraz proclamar que a identidade europeia se forjou quando o mundo romano se misturou com os povos germânicos.

Esses povos germânicos migraram para a Europa e instalaram-se no império romano por vezes com aprovação tácita, por vezes com desconfiança e hostilidade por parte dos poderes instalados dos imperadores.

(Nota histórica: as "invasões bárbaras germânicas" são em larga medida uma invenção. As verdadeiras invasões dignas desse nome foram feitas por povos das estepes euroasiáticas, como os Hunos de Átila, que de resto foi travado por uma aliança Romano-germânica.)

É ao líder de um desses reinos de semi-bárbaros recém-migrados que as tais pessoas que se opõem à liberdade de movimento depois vão buscar o fundador da Europa Moderna, Carlos Magno, Rei dos Francos.

Quando confrontadas com estes contrastes, essas mesmas pessoas saem-se com frases mágicas como "Mas antigamente era outra coisa" ou "Mas os tempos mudaram". Isto meros segundos após baterem o pé e declararem que é preciso defender a "os costumes, a herança e a história europeias".

A contradição, invisível. A ironia, escapou.

Notre Dame

Será boa ideia fazer comentários pejorativos sobre as pessoas que choram pela história e cultura ocidental-europeia da Notre Dame mas ao mesmo tempo não querem saber da destruição e do extermínio de culturas e memórias não europeias, como as múltiplas culturas indígenas do Brasil?

Não sei se é boa ou se é má, porque acredito piamente que podemos cuidar de todo o património cultural (e que a ilusão de termos de escolher entre uns e outros é uma má-fé integral ao capitalismo).

Mas protestar contra as pessoas que trazem à baila essa contradição? Insurgirmo-nos contra quem traz à mente o extermínio cultural quotidiano e tenta dessa forma pôr em perspectiva a destruição, pontual e espectacular, de um edifício famoso, mesmo que ele nos seja estimado e querido?

Isso não, isso nunca: é muito suspeito que quem vem para a praça pública dizer que "este não é o momento, deixem-nos fazer o luto, que quando o luto acabar aí sim lutaremos por tudo", na semana seguinte tenha completamente esquecido que tinha jurado que estavam todas no mesmo nível de importância, e nunca mais queira saber do extermínio cultural diário, incessante.

Portanto levar a mal que as pessoas falem, em qualquer altura que seja, do extermínio cultural colonial silenciado -- sendo que uma coisa que acontece todos os dias é sempre actual, está sempre madura para que dela nos lembremos --, é má consciência, eurocentrismo, supremacia.

07/04/2019

Símbolo de Símbolos, a Rosa



Quando em 325 a hierarquia católica se reuniu para compor o dito "Symbolum de Niceia" (ou 'Credo') que haveria de definir a quase totalidade da crença cristã até hoje, não achou melhor forma de descrever a relação de Cristo a Deus do que o tricolon tautológico de "Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro" (na versão Latina).

Tenho relativamente pouco interesse em seguir a dança histórico-teológica que os fez chegar por fim esta formulação. Tenho mais de apreciar a pujança da imaginação que persuadiu o Espírito de que a melhor forma de identificar o mistério da realidade de Cristo foi a tautologia. Neste que é talvez o último anélito da criatividade cristã antes que esta se embrenhasse nos labirintos da metafísica aristotélica, a diferença de Cristo em relação a Deus é paradoxalmente definida pela sua identidade radical para consigo mesmo.

Lembra-me isto uma conversa que tive com amigo esta semana a propósito de numerologia. Perguntava-me: “O sete, o número 7, é símbolo de quê?” Uma solução académica, resisti, seria obliquar a resposta e começar num elenco de “coisas que aparecem em número 7”, há 7 maravilhas do mundo, há 7 pecados e 7 virtudes, 7 são as colinas de Roma, de Lisboa e de Constantinopla, e, se quisermos continuar, são “7 os Anões” e 7 é a bisca.

Uma forma ainda mais desesperada de fugir à pergunta passaria por entrar pelo caminho da perdição da numerologia ou da gematria, e listar as possíveis combinações geo-aritméticas que nos reconduzem ao número. 7 é a soma de 3 mais 4, números de si perfeitos, ou de 6 mais 1, ou de 10 menos 3, e assim por diante. Em todas essas quero focar-me naquela que me parece mais fascinante: de que o 7 é um número sacral porque é a multiplicação de 1, a unidade, pelo 7, um número perfeito.

1 x 7 = 7

O Borges tem um poema sobre a 'rosa':
A rosa,
a imarescível rosa que não canto,
a que é peso e fragrância,
a do negro jardim na alta noite,
a de qualquer jardim e qualquer tarde,
a rosa que resurge da ténue
cinza pela arte da alquimia*,
a rosa dos persas e de Ariosto,
a que está sempre só,
a que é sempre a rosa das rosas,
a jovem flor platónica,
a ardente e cega rosa que não canto,
a rosa inalcançável.
Neste poema ele alude a vários momentos da literatura ocidental (inclusive, em *, a um conto dele próprio “A Rosa de Paracelso”), mas o cerne é o verso "a que é sempre a rosa das rosas". Quando perguntaram ao Umberto Eco porque é que ele chamou ao seu livro “O Nome da Rosa”, tendo em conta que não há nenhuma rosa a ocupar um lugar primeiro no livro, ele respondeu que queria um “título neutro”, e mais tarde, "porque a rosa é uma figura simbólica tão rica em significado que já quase que nem lhe resta nenhum sentido próprio".

O juízo do Umberto Eco parece-me injusto. O Borges percebeu melhor. Há uma harmonia entre o Símbolo de Niceia, entre o número 7, e entre a rosa, que é que todos eles são símbolos de si mesmos, o que é a mesma coisa que dizer que são símbolos do símbolo. A rosa simboliza um símbolo, e o seu esvaziamento de sentido é programático: retivesse ainda a rosa alguma réstia de sentido, não poderia simbolizar a recorrência perpétua e a inalcançabilidade própria do Símbolo.

Da mesma forma, o 7, longe de simbolizar a união destes números ou daqueles, simboliza acima e primeiro que tudo a capacidade numérica para acolher sentido e, transformando-se num referente de sentido que atira todo o sentido para fora de si, representa a força persuasiva e o poder espiritual da numerologia.

Partilham um campo semântico então, a rosa, o 7, o Cristo. Não certamente a triste rosa, reduzida a que dela seja dita “que quer dizer amor”, ou o 7 “que quer dizer o número dos chakras”, ou o Cristo “que quer dizer a união do humano ou do divino”. Aqui toda a resolução avilta. Antes, rosa da rosa, 7 do 7, deus de deus, símbolo do símbolo, simbolizam todos a capacidade simbólica, que, sendo recorrente, se esgota na sua própria circularidade, mas ao mesmo tempo aflui nas demais províncias da linguagem, e, desaguando nos demais símbolos, alimenta-os e confere-lhes a eles e a nós a sua capacidade de se referirem a outras coisas, de nos lançarmos para fora de nós próprios


Imagem:
Ambrosius Bosschaert (1618) @ Londres Johnny van Haeften