"Se houvesse alguma coisa que neste mundo me levaria a acreditar, seria música de Bach" é um tique bastante cliché de intelectuais ateus e agnósticos. Com alguma subnota classista, pela insinuação de que, ao contrário das massas indoutas que se satisfazem com milagrices marianas de segunda ou de terceira, ao refinado esteta só o Mestre dos Mestres seria capaz de trazer para a fé cristã.
Mas é preciso um entendimento muito caricatural da natureza da fé religiosa para se ter essa opinião. Como imaginam os nossos amantes de Bach que uma pessoa, por norma, se converte? Há uma história subentendida, que as pessoas acreditam porque foram iludidas. Que analisaram uma lógica, eventualmente até recensearam alguma prova da existência de Deus, e a partir daí concluíram que a religião deve ser verdade. Só que, por maioria de razão, essa racionalidade terá dado algum passo em falso porque Deus não existe, e portanto um argumento que leve até à fé terá de ser um argumento débil, para mentes débeis.
O que o "só Bach me converteria" implica é que, incapaz de acreditar irracionalmente, só uma espécie de "argumentum ad baculum" ("argumento da pauzada", ou apelo à força) dirigido contra a alma incauta seria capaz de arrancar o espírito iluminado da clareira da razão. A fé torna-se assim uma violência, uma falácia informal: só lá vai pela estética, contra a qual não há argumentação possível.
É uma fábula complacente, que serve ao mesmo tempo para elevar o Bach e para elevar a experiência da religião dessa pessoa acima da experiência da religião das demais mortais. Afinal de contas, como é que a nossa quase-convertida intelectual julga que a conversão funciona com as outras pessoas? A experiência da conversão é universalmente descrita como um arrebatamento perfeitamente idêntico àquele que descreve a sedução que o "ateu de Bach" sente ao ouvir a Paixão Segundo São Mateus.
Noutras palavras, aquilo que o "ateu de Bach" imaginava que o diferenciava dos demais crentes, é precisamente aquilo que o insere na grande cadeia da propagação da fé. A circunstância do arrebatamento é precisamente aquilo que une as experiências de conversão. O Drew Campbell, no seu bizarro livro de introdução prática ao culto dos deuses da antiguidade greco-latina, "Old Stones, New Temples" (2000),
«Most religious people will recognize that it is these singular moments that mark the entry into faith, whether we attribute them to the care of the Olympians, the love of Jesus, the bounty of Mother Earth, or the mercy of Allah. In all cases, the foundation of our beliefs and our practices is the immediate and intuitive apprehension of the divine by individuals and communities. In short, we worship the gods —our gods— because they invited us to. All we did was say yes.»
Mesmo o facto de, terminada a gravação, deponha a crença, responde à experiência de toda a religião, que nunca mantém uma constante de fervor idêntica aos momentos de êxtase. O Arthur Nock, no seu livro 'Conversão' (1933):
"Ordinary humanity felt the spell for a moment; but it had to return «To the old solitary nothingness.»"
Ou seja, um "ateu de Bach" é tanto ateu como um "católico de casamentos e batizados" é católico: ou seja, não é. A ideia de "conversão religiosa", a alguém realmente ateu que ouça Bach não passará jamais pela cabeça, porque a categoria da "conversão" não estará latente no seu espírito, pronta a ser accionada, da mesma forma que eu não pensaria jamais em converter-me depois de comer uma sobremesa particularmente divinal: as categorias seriam diferentes. No "ateu de Bach", pelo contrário, a possibilidade da conversão está lá, sorrateira, à espera, à coca.
Não há nada de mal nisso, certamente não do meu ponto de vista. Eu em larga medida eu mesmo sou um "ateu de Bach" em muito da plenitude paródica que vim até aqui a descrever. Mas penso que é importante que essa apreciação estético-religiosa não seja jamais considerada da forma hipócrita que tantas vezes assume quando adquire traços classistas. Como dizia acima, o "ateu de Bach" não se limita a ser o tipo normalíssimo de crente com a mais normal génese da sua conversão religiosa, como também a maior parte das religiões subsumiu perfeitamente a sua experiência estética de forma perfeitamente harmónica dentro das suas expectativas teológicas.
Em particular no entendimento cristão, Ens et Verum et Bonum et Pulchrum* in unum convertuntur (*pulchritudo para vós ciceronianos ferrados) -- "O ser e a verdade e a bondade e a beleza encaram-se, transformam-se uns nos outros." Neste dito que remonta em última instância ao S. Tomás encontra-se condensado o melhor que o platonismo conseguiu fazer da doutrina da Igreja. Para o tema da nossa conversa, onde estiver a Beleza, lá estará também o Ser. Claro que não conseguimos compreender isto se insistirmos, patetamente, que há uma qualquer desconfiança, desprezo, ou mesmo ódio por parte do Cristianismo para com a experiência estética, e só essa ideia, absolutamente falsa, explica a complacência do "ateu de Bach". Citando o Eduardo Lourenço, no "Gibão de Mestre Gil":
"Estranha ideia se fazem esses críticos da ortodoxia. Sem ela não se precipitariam com uma alegria não dissimulada sobre o mínimo sintoma, a mínima expressão que por humanamente aceitável, racional, crítica já se lhe afigura um desmentido, um desvio, uma negação dessa ortodoxia a respeito da qual eles se inventaram uma imagem caricatural."
"a crença [...] é um modo polêmico de relações."
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