30/09/2019

Notas sobre a tirania grega e o título da peça do Sófocles, Édipo Rei

Sófocles, o antigo escritor de tragédias grego, deixou-nos várias peças relacionadas com a saga da família real de Tebas. a figura principal dessa família é sem dúvida Édipo, o príncipe cujo pai recebeu, aquando do nascimento da criança, um oráculo sagrado de Apolo Lóxias ("o Esquivo") de que haveria de matar o pai. o pai, Laio, não hesitou em enjeitá-lo, salvando-se a criança apenas porque foi recolhido por um pastor ambulante. vários anos mais tarde, o jovem, entretanto adoptado pela família real de Corinto, ouve alguns rumores àcerca da sua paternidade e decide ele próprio consultar o oráculo. no caminho depara-se com um cortejo pomposo, e depois dum incidente absurdo relativo a um conceito embrionário de direito de passagem, Édipo acaba por matar quase toda a comitiva. naturalmente, era o seu pai Laio. mais tarde Édipo acaba por se tornar rei da cidade de Tebas após derrotar a Esfinge pestilenta, e casar com a rainha Jocasta, em verdade sua mãe.

a história da peça de Sófocles começa essencialmente neste ponto, e trava-se no dia em que Édipo vai gradualmente descobrindo a verdade àcerca dos seus pais e da veracidade do oráculo.

o nome da peça, em grego, é Oidipus Tyrannos (Οἰδίπους Τύραννος), embora seja frequentemente conhecida como "Édipo Rei" (em decalque do título latino Œdipus Rex). a palavra tyrannos (tirano) é uma palavra complexa em grego. a primeira coisa a dizer é que não significa "tirano", no nosso sentido de alguém que governa em proveito próprio e com objetivos estritamente pessoais, autocraticamente, etc. em larga medida um "tyrannos" pode ser apenas um "rei", no sentido de um monarca, alguém que governa sozinho.

parece ser esse o sentido inicial (mas a etimologia da palavra é incerta), mas algures no século vii e vi aC a palavra começou gradualmente a adquirir uma conotação diversa. tyrannos passa a ser alguém que adquiriu poder autocrático por meios não convencionais. contra um número de famílias aristocráticas, que governavam a grande parte do mundo grego dividindo o poder entre si, começou a surgir um fenómeno que hoje chamamos de "tirania". essa consistia em que alguém, normalmente um aristocrata, tomasse o poder aliando-se com as classes populares contra a aristocracia reinante, lateralizando a aristocracia e assumindo sozinho as rédeas do poder,

visto que esse poder não era legitimado da única forma que na Grécia se acreditava que o poder podia ser legitimado, ou seja via linhagens aristocráticas ancestrais que muitas vezes se gabavam da sua ascendência divina, estes governantes golpistas começaram a ser chamados de tiranos. a palavra não ganha contudo imediatamente a sua conotação negativa que hoje sentimos a palavra tirano. isso viria mais tarde, com a descredibilização das tiranias no virar do século v para o século iv. durante a maior parte do época dita Clássica da Grécia, tirano quer dizer apenas, e sem conotações morais, alguém que assumiu o poder sem legitimidade dinástica.

voltemos à peça do Sófocles, Édipo Tirano. o título é extremamente enganador, e a sua tradução para latim ou português como Édipo Rei é-o ainda mais. Sófocles chama à sua peça Édipo Tirano, porque no início da peça é precisamente aí que estamos: Édipo é um tirano, no sentido técnico de alguém que assumiu o poder de maneira não dinástica: não pertencia à casa real de Tebas, mas ainda assim assumiu o poder. daí a minha versão de Tyrannos por Suplantador.

a tradução em Édipo Rei ofusca o facto de que o decorrer da peça, o trágico de toda essa história, é que Édipo não é um tyrannos. Édipo é mesmo filho do rei de Tebas, filho de Laio. mesmo que Édipo pense que é um tyrannos, que não pertence à linha dinástica, e que no fim da peça do Sófocles o daria tudo para ser realmente um suplantador do poder real, a verdade é que não é. a sua consciencialização gradual e horrenda de que é um rei legítimo equivale ao nosso terror perante o facto de que o título da peça foi desde o início deceptivo. o véu de ignorância da peça estende-se ao seu próprio título, e a resolução trágica da história do Édipo segue pari passu a nossa percepção de que o título nos enganou terrivelmente.