30/09/2019

Notas sobre a tirania grega e o título da peça do Sófocles, Édipo Rei

Sófocles, o antigo escritor de tragédias grego, deixou-nos várias peças relacionadas com a saga da família real de Tebas. a figura principal dessa família é sem dúvida Édipo, o príncipe cujo pai recebeu, aquando do nascimento da criança, um oráculo sagrado de Apolo Lóxias ("o Esquivo") de que haveria de matar o pai. o pai, Laio, não hesitou em enjeitá-lo, salvando-se a criança apenas porque foi recolhido por um pastor ambulante. vários anos mais tarde, o jovem, entretanto adoptado pela família real de Corinto, ouve alguns rumores àcerca da sua paternidade e decide ele próprio consultar o oráculo. no caminho depara-se com um cortejo pomposo, e depois dum incidente absurdo relativo a um conceito embrionário de direito de passagem, Édipo acaba por matar quase toda a comitiva. naturalmente, era o seu pai Laio. mais tarde Édipo acaba por se tornar rei da cidade de Tebas após derrotar a Esfinge pestilenta, e casar com a rainha Jocasta, em verdade sua mãe.

a história da peça de Sófocles começa essencialmente neste ponto, e trava-se no dia em que Édipo vai gradualmente descobrindo a verdade àcerca dos seus pais e da veracidade do oráculo.

o nome da peça, em grego, é Oidipus Tyrannos (Οἰδίπους Τύραννος), embora seja frequentemente conhecida como "Édipo Rei" (em decalque do título latino Œdipus Rex). a palavra tyrannos (tirano) é uma palavra complexa em grego. a primeira coisa a dizer é que não significa "tirano", no nosso sentido de alguém que governa em proveito próprio e com objetivos estritamente pessoais, autocraticamente, etc. em larga medida um "tyrannos" pode ser apenas um "rei", no sentido de um monarca, alguém que governa sozinho.

parece ser esse o sentido inicial (mas a etimologia da palavra é incerta), mas algures no século vii e vi aC a palavra começou gradualmente a adquirir uma conotação diversa. tyrannos passa a ser alguém que adquiriu poder autocrático por meios não convencionais. contra um número de famílias aristocráticas, que governavam a grande parte do mundo grego dividindo o poder entre si, começou a surgir um fenómeno que hoje chamamos de "tirania". essa consistia em que alguém, normalmente um aristocrata, tomasse o poder aliando-se com as classes populares contra a aristocracia reinante, lateralizando a aristocracia e assumindo sozinho as rédeas do poder,

visto que esse poder não era legitimado da única forma que na Grécia se acreditava que o poder podia ser legitimado, ou seja via linhagens aristocráticas ancestrais que muitas vezes se gabavam da sua ascendência divina, estes governantes golpistas começaram a ser chamados de tiranos. a palavra não ganha contudo imediatamente a sua conotação negativa que hoje sentimos a palavra tirano. isso viria mais tarde, com a descredibilização das tiranias no virar do século v para o século iv. durante a maior parte do época dita Clássica da Grécia, tirano quer dizer apenas, e sem conotações morais, alguém que assumiu o poder sem legitimidade dinástica.

voltemos à peça do Sófocles, Édipo Tirano. o título é extremamente enganador, e a sua tradução para latim ou português como Édipo Rei é-o ainda mais. Sófocles chama à sua peça Édipo Tirano, porque no início da peça é precisamente aí que estamos: Édipo é um tirano, no sentido técnico de alguém que assumiu o poder de maneira não dinástica: não pertencia à casa real de Tebas, mas ainda assim assumiu o poder. daí a minha versão de Tyrannos por Suplantador.

a tradução em Édipo Rei ofusca o facto de que o decorrer da peça, o trágico de toda essa história, é que Édipo não é um tyrannos. Édipo é mesmo filho do rei de Tebas, filho de Laio. mesmo que Édipo pense que é um tyrannos, que não pertence à linha dinástica, e que no fim da peça do Sófocles o daria tudo para ser realmente um suplantador do poder real, a verdade é que não é. a sua consciencialização gradual e horrenda de que é um rei legítimo equivale ao nosso terror perante o facto de que o título da peça foi desde o início deceptivo. o véu de ignorância da peça estende-se ao seu próprio título, e a resolução trágica da história do Édipo segue pari passu a nossa percepção de que o título nos enganou terrivelmente.

15/06/2019

Arménia Rosa

վարդ (vard) em Arménio quer dizer rosa, ou flor. Ao aprendê-lo imediatamente pensei na palavra ورد (wardun), que em Árabe quer dizer exactamente a mesma coisa: rosa, ou flor. O califado omíada e abássida ocuparam a Arménia entre os séculos vii e ix, numa série de disputas com o Império Romano-Bizantino que acabariam por transformar a Arménia num principado semi-independente pressionado por ambas as super-potências. Será que a palavra teria sido transmitida nessa altura?

Na realidade é mais bonito que isso: a etimologia deve-se a um empréstimo a um dialecto da língua Persa que tem a palavra گل (gol) -- a semelhança entre a língua arménia e a persa levou a que até ao século xix se pensasse que o Arménio seria um dialecto desta última. G e W confundem-se frequentemente (cf. por exemplo "guerra" e "war"), assim como R e L (cf. "flor" vs "fror"), e ascendência última da palavra na língua arménia até contemporânea remonta a esses contactos ancestrais.

10/06/2019

Tyrannis

Wilkinson, L.P. (1945) Horace and his Lyric Poetry. Cambridge University PRess.
Injurioso ne pede proruas
stantem columnam, neu populus frequens
ad arma cessantes, ad arma
concitet imperiumque frangat.
Horácio Odes 1.35.13-16 
'Aux armes, citoyens!' cries the mob, but the moderates, the solid molossus of 'cessantes', hold it back at first, till with a second cry it sweeps them along in a torrent of dactyls. To put a comma before 'cessantes' and not after, as Vollmer does in the Teubner text, destroys the effect.

27/05/2019

Notas do Árabe cá da terra #3 - Um poema moçárabe

Estás prestes a ler um breve poema de Muhammad ibn Ubada Al-Qazzaz, que viveu em Málaga entre 1051 e 1091.

Está escrito em “moçárabe”, um termo algo ambíguo que tende a referir-se às comunidades cristãs que adoptaram a língua e os costumes árabe, mas que aqui se refere simplesmente à língua românica da península (antes de haver galaico-português ou castelhano ou catalão) escrita em “aljamía”, ou seja, o uso de letras árabes para escrever línguas românicas.

O alfabeto árabe, como qualquer sistema de escrita, pode ser usado para escrever qualquer língua, embora naturalmente esteja mais adaptado às necessidades de línguas semíticas. Mas ao longo da sua história foi usado para grafar idiomas que nada têm que ver com a lógica linguística árabe, como o Persa-Iraniano, o Português, ou o Turco.
من سيدي ابرهيم
يا نوامن دلج
فانت ميب
ذى نخت
ان نون شنون كارش
يريم تيب
غرمى اوب
لفرت
Transcrição literal:
mn sīdī Ibrahīm
yā nwamn dlj
fānt mīb
dhī ncht
in nōn xnōn kārx
īrīm tīb
ġrmī ‘ōb
lvrt
Tradução/Adaptação. Entre [rectos] palavras árabes.
meu* [cid]* Ibrahim
[ya]* nome doce!
vem* a mim
de noite
[in]* não, se não queres,
irei-me a ti
diz*-me onde
achar-te
Algumas notas:

* meu. Num outro manuscrito não temons "mn" (que indicaria "mon", como em francês e catalão, cf. Monsenhor), mas sim مو/mo, que nos faria suspeitar que a pronúncia se achegaria mais ao nosso "meu".

* [cid]. Literalmente, “senhor” (cf "El-Cid"). O antepassado directo do referente “senhor” nas cantigas de amor galaico-portuguesas. Lembrando o dito de Cícero de que “non tam præclarum est Latine scire quam turpe nescire”, o que surge é a conclusão que é menos uma questão de que bases de lírica medieval árabe poderiam ser úteis para o entendimento da nossa literatura medieval, e mais do que desconhecer essa lírica será catastrófico e irresponsável para um estudo filológico sério.

* [yā]. o vocativo árabe. “Ó!”

* vem. Literalmente, “fem”. o Árabe não tem a letra v.

*[in]. Num post anterior falei da diferença entre os vários tipos de partículas condicionais em Árabe (in, law, idha, etc). Aqui temos dois, mas na língua Romance. “in não, se não queres”. É possível que haja alguma percepção de modalidade nesta frase. Algo como “Se não quisesses, se não quiseres” indicado pelo uso das duas partículas distintas.

* diz-me. no texto “garra-me”. Provavelmente do latim garrīre, falar descuidadamente, mas não deixo de suspeitar que talvez haja algum eco intencional da raíz árabe ġ.r.m. (غ ر م) que denota “amor apaixonado”.

06/05/2019

. . . he had given up the idea of thought . . .

László Krasznahorkai (2009) The Last Wolf. George Szirtes trad.
 . . . for how could he describe what so weighed him down, how could he explain how long ago he had given up the idea of thought, the point at which he first understood the way things were and knew that any sense we had of existence was merely a reminder of the incomprehensible futility of existence, a futility that would repeat itself ad infinitum, to the end of time and that, no, it wasn't a matter of chance and its extraordinary, inexhaustible, triumphant, unconquerable power working to bring matters to birth or annihilation, but rather the matter of a shadowy demonic purpose, something embedded deep in the heart of things, in the texture of the relationship between things, the stench of whose purpose filled every atom, that it was a curse, a form of damnation, that the world was the product of scorn, and God help the sanity of those who called themselves thinkers, which was why he no longer thought, had learned not to think any more, not that this led anywhere, of course, because wherever he looked, whichever way he turned, there was that all-pervasive stench, the stench that was there because the last word, the word that comprehended the knowledge that futility and scorn, replete with purpose, was coextensive with the world, was the world, was something of which he had to be conscious, an eternity of futility and scorn that obtained in each and every second of life for those who had set out as thinkers, futility because as soon as you abandoned thought and tried simply to look at things, thought cropped up again in a new form, a form from which, in other words, there was no escape whatever man thought or did not think, because he remained the prisoner of thought either way, and his nose was deeply pained by the stench of it, so what could he do except console himself with the thought that events simply followed their own natural course . . .

21/04/2019

O ateu de Bach


"Se houvesse alguma coisa que neste mundo me levaria a acreditar, seria música de Bach" é um tique bastante cliché de intelectuais ateus e agnósticos. Com alguma subnota classista, pela insinuação de que, ao contrário das massas indoutas que se satisfazem com milagrices marianas de segunda ou de terceira, ao refinado esteta só o Mestre dos Mestres seria capaz de trazer para a fé cristã.

Mas é preciso um entendimento muito caricatural da natureza da fé religiosa para se ter essa opinião. Como imaginam os nossos amantes de Bach que uma pessoa, por norma, se converte? Há uma história subentendida, que as pessoas acreditam porque foram iludidas. Que analisaram uma lógica, eventualmente até recensearam alguma prova da existência de Deus, e a partir daí concluíram que a religião deve ser verdade. Só que, por maioria de razão, essa racionalidade terá dado algum passo em falso porque Deus não existe, e portanto um argumento que leve até à fé terá de ser um argumento débil, para mentes débeis.

O que o "só Bach me converteria" implica é que, incapaz de acreditar irracionalmente, só uma espécie de "argumentum ad baculum" ("argumento da pauzada", ou apelo à força) dirigido contra a alma incauta seria capaz de arrancar o espírito iluminado da clareira da razão. A fé torna-se assim uma violência, uma falácia informal: só lá vai pela estética, contra a qual não há argumentação possível.

É uma fábula complacente, que serve ao mesmo tempo para elevar o Bach e para elevar a experiência da religião dessa pessoa acima da experiência da religião das demais mortais. Afinal de contas, como é que a nossa quase-convertida intelectual julga que a conversão funciona com as outras pessoas? A experiência da conversão é universalmente descrita como um arrebatamento perfeitamente idêntico àquele que descreve a sedução que o "ateu de Bach" sente ao ouvir a Paixão Segundo São Mateus.

Noutras palavras, aquilo que o "ateu de Bach" imaginava que o diferenciava dos demais crentes, é precisamente aquilo que o insere na grande cadeia da propagação da fé. A circunstância do arrebatamento é precisamente aquilo que une as experiências de conversão. O Drew Campbell, no seu bizarro livro de introdução prática ao culto dos deuses da antiguidade greco-latina, "Old Stones, New Temples" (2000),
«Most religious people will recognize that it is these singular moments that mark the entry into faith, whether we attribute them to the care of the Olympians, the love of Jesus, the bounty of Mother Earth, or the mercy of Allah. In all cases, the foundation of our beliefs and our practices is the immediate and intuitive apprehension of the divine by individuals and communities. In short, we worship the gods —our gods— because they invited us to. All we did was say yes.»
Mesmo o facto de, terminada a gravação, deponha a crença, responde à experiência de toda a religião, que nunca mantém uma constante de fervor idêntica aos momentos de êxtase. O Arthur Nock, no seu livro 'Conversão' (1933):
"Ordinary humanity felt the spell for a moment; but it had to return «To the old solitary nothingness.»"
Ou seja, um "ateu de Bach" é tanto ateu como um "católico de casamentos e batizados" é católico: ou seja, não é. A ideia de "conversão religiosa", a alguém realmente ateu que ouça Bach não passará jamais pela cabeça, porque a categoria da "conversão" não estará latente no seu espírito, pronta a ser accionada, da mesma forma que eu não pensaria jamais em converter-me depois de comer uma sobremesa particularmente divinal: as categorias seriam diferentes. No "ateu de Bach", pelo contrário, a possibilidade da conversão está lá, sorrateira, à espera, à coca.

Não há nada de mal nisso, certamente não do meu ponto de vista. Eu em larga medida eu mesmo sou um "ateu de Bach" em muito da plenitude paródica que vim até aqui a descrever. Mas penso que é importante que essa apreciação estético-religiosa não seja jamais considerada da forma hipócrita que tantas vezes assume quando adquire traços classistas. Como dizia acima, o "ateu de Bach" não se limita a ser o tipo normalíssimo de crente com a mais normal génese da sua conversão religiosa, como também a maior parte das religiões subsumiu perfeitamente a sua experiência estética de forma perfeitamente harmónica dentro das suas expectativas teológicas.

Em particular no entendimento cristão, Ens et Verum et Bonum et Pulchrum* in unum convertuntur (*pulchritudo para vós ciceronianos ferrados) -- "O ser e a verdade e a bondade e a beleza encaram-se, transformam-se uns nos outros." Neste dito que remonta em última instância ao S. Tomás encontra-se condensado o melhor que o platonismo conseguiu fazer da doutrina da Igreja. Para o tema da nossa conversa, onde estiver a Beleza, lá estará também o Ser. Claro que não conseguimos compreender isto se insistirmos, patetamente, que há uma qualquer desconfiança, desprezo, ou mesmo ódio por parte do Cristianismo para com a experiência estética, e só essa ideia, absolutamente falsa, explica a complacência do "ateu de Bach". Citando o Eduardo Lourenço, no "Gibão de Mestre Gil":
"Estranha ideia se fazem esses críticos da ortodoxia. Sem ela não se precipitariam com uma alegria não dissimulada sobre o mínimo sintoma, a mínima expressão que por humanamente aceitável, racional, crítica já se lhe afigura um desmentido, um desvio, uma negação dessa ortodoxia a respeito da qual eles se inventaram uma imagem caricatural."

17/04/2019

Imigração e identidade europeia

Por algum motivo que me escapa, a crença de que as fronteiras e a restrição à liberdade de movimento dos povos são um imperativo histórico e uma necessidade tende tanto mais a ser acerrimamente esposada quanto mais à pessoa que a defende lhe apraz proclamar que a identidade europeia se forjou quando o mundo romano se misturou com os povos germânicos.

Esses povos germânicos migraram para a Europa e instalaram-se no império romano por vezes com aprovação tácita, por vezes com desconfiança e hostilidade por parte dos poderes instalados dos imperadores.

(Nota histórica: as "invasões bárbaras germânicas" são em larga medida uma invenção. As verdadeiras invasões dignas desse nome foram feitas por povos das estepes euroasiáticas, como os Hunos de Átila, que de resto foi travado por uma aliança Romano-germânica.)

É ao líder de um desses reinos de semi-bárbaros recém-migrados que as tais pessoas que se opõem à liberdade de movimento depois vão buscar o fundador da Europa Moderna, Carlos Magno, Rei dos Francos.

Quando confrontadas com estes contrastes, essas mesmas pessoas saem-se com frases mágicas como "Mas antigamente era outra coisa" ou "Mas os tempos mudaram". Isto meros segundos após baterem o pé e declararem que é preciso defender a "os costumes, a herança e a história europeias".

A contradição, invisível. A ironia, escapou.

Notre Dame

Será boa ideia fazer comentários pejorativos sobre as pessoas que choram pela história e cultura ocidental-europeia da Notre Dame mas ao mesmo tempo não querem saber da destruição e do extermínio de culturas e memórias não europeias, como as múltiplas culturas indígenas do Brasil?

Não sei se é boa ou se é má, porque acredito piamente que podemos cuidar de todo o património cultural (e que a ilusão de termos de escolher entre uns e outros é uma má-fé integral ao capitalismo).

Mas protestar contra as pessoas que trazem à baila essa contradição? Insurgirmo-nos contra quem traz à mente o extermínio cultural quotidiano e tenta dessa forma pôr em perspectiva a destruição, pontual e espectacular, de um edifício famoso, mesmo que ele nos seja estimado e querido?

Isso não, isso nunca: é muito suspeito que quem vem para a praça pública dizer que "este não é o momento, deixem-nos fazer o luto, que quando o luto acabar aí sim lutaremos por tudo", na semana seguinte tenha completamente esquecido que tinha jurado que estavam todas no mesmo nível de importância, e nunca mais queira saber do extermínio cultural diário, incessante.

Portanto levar a mal que as pessoas falem, em qualquer altura que seja, do extermínio cultural colonial silenciado -- sendo que uma coisa que acontece todos os dias é sempre actual, está sempre madura para que dela nos lembremos --, é má consciência, eurocentrismo, supremacia.

07/04/2019

Símbolo de Símbolos, a Rosa



Quando em 325 a hierarquia católica se reuniu para compor o dito "Symbolum de Niceia" (ou 'Credo') que haveria de definir a quase totalidade da crença cristã até hoje, não achou melhor forma de descrever a relação de Cristo a Deus do que o tricolon tautológico de "Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro" (na versão Latina).

Tenho relativamente pouco interesse em seguir a dança histórico-teológica que os fez chegar por fim esta formulação. Tenho mais de apreciar a pujança da imaginação que persuadiu o Espírito de que a melhor forma de identificar o mistério da realidade de Cristo foi a tautologia. Neste que é talvez o último anélito da criatividade cristã antes que esta se embrenhasse nos labirintos da metafísica aristotélica, a diferença de Cristo em relação a Deus é paradoxalmente definida pela sua identidade radical para consigo mesmo.

Lembra-me isto uma conversa que tive com amigo esta semana a propósito de numerologia. Perguntava-me: “O sete, o número 7, é símbolo de quê?” Uma solução académica, resisti, seria obliquar a resposta e começar num elenco de “coisas que aparecem em número 7”, há 7 maravilhas do mundo, há 7 pecados e 7 virtudes, 7 são as colinas de Roma, de Lisboa e de Constantinopla, e, se quisermos continuar, são “7 os Anões” e 7 é a bisca.

Uma forma ainda mais desesperada de fugir à pergunta passaria por entrar pelo caminho da perdição da numerologia ou da gematria, e listar as possíveis combinações geo-aritméticas que nos reconduzem ao número. 7 é a soma de 3 mais 4, números de si perfeitos, ou de 6 mais 1, ou de 10 menos 3, e assim por diante. Em todas essas quero focar-me naquela que me parece mais fascinante: de que o 7 é um número sacral porque é a multiplicação de 1, a unidade, pelo 7, um número perfeito.

1 x 7 = 7

O Borges tem um poema sobre a 'rosa':
A rosa,
a imarescível rosa que não canto,
a que é peso e fragrância,
a do negro jardim na alta noite,
a de qualquer jardim e qualquer tarde,
a rosa que resurge da ténue
cinza pela arte da alquimia*,
a rosa dos persas e de Ariosto,
a que está sempre só,
a que é sempre a rosa das rosas,
a jovem flor platónica,
a ardente e cega rosa que não canto,
a rosa inalcançável.
Neste poema ele alude a vários momentos da literatura ocidental (inclusive, em *, a um conto dele próprio “A Rosa de Paracelso”), mas o cerne é o verso "a que é sempre a rosa das rosas". Quando perguntaram ao Umberto Eco porque é que ele chamou ao seu livro “O Nome da Rosa”, tendo em conta que não há nenhuma rosa a ocupar um lugar primeiro no livro, ele respondeu que queria um “título neutro”, e mais tarde, "porque a rosa é uma figura simbólica tão rica em significado que já quase que nem lhe resta nenhum sentido próprio".

O juízo do Umberto Eco parece-me injusto. O Borges percebeu melhor. Há uma harmonia entre o Símbolo de Niceia, entre o número 7, e entre a rosa, que é que todos eles são símbolos de si mesmos, o que é a mesma coisa que dizer que são símbolos do símbolo. A rosa simboliza um símbolo, e o seu esvaziamento de sentido é programático: retivesse ainda a rosa alguma réstia de sentido, não poderia simbolizar a recorrência perpétua e a inalcançabilidade própria do Símbolo.

Da mesma forma, o 7, longe de simbolizar a união destes números ou daqueles, simboliza acima e primeiro que tudo a capacidade numérica para acolher sentido e, transformando-se num referente de sentido que atira todo o sentido para fora de si, representa a força persuasiva e o poder espiritual da numerologia.

Partilham um campo semântico então, a rosa, o 7, o Cristo. Não certamente a triste rosa, reduzida a que dela seja dita “que quer dizer amor”, ou o 7 “que quer dizer o número dos chakras”, ou o Cristo “que quer dizer a união do humano ou do divino”. Aqui toda a resolução avilta. Antes, rosa da rosa, 7 do 7, deus de deus, símbolo do símbolo, simbolizam todos a capacidade simbólica, que, sendo recorrente, se esgota na sua própria circularidade, mas ao mesmo tempo aflui nas demais províncias da linguagem, e, desaguando nos demais símbolos, alimenta-os e confere-lhes a eles e a nós a sua capacidade de se referirem a outras coisas, de nos lançarmos para fora de nós próprios


Imagem:
Ambrosius Bosschaert (1618) @ Londres Johnny van Haeften

29/03/2019

Abu ‘Abdullah Moḥammad al-Thānī ‘Ashar



أبو عبد الله محمد الثاني عشر

Vulgo Boabdil (corruptela de ‘Abu Abdullah), último rei de Granada e último monarca muçulmano da Península. Encarna simbolicamente o fim da história ancestral do Islão na nossa península. Devido à lenda de que, ao partir para o exílio para Fez, olhou uma última vez para a cidade de Granada e suspirou , tornou-se numa figura central para a mitologia da saudade. O Fernando Pessoa dedicou-lhe vários poemas, entre os quais esta quadra:
Outrora fui talvez, não Boabdil,
Mas o seu mero último olhar, da estrada
Dado ao deixado vulto de Granada,
Recorte frio sob o unido anil . . .
Não tenho ilusões nem romantismos quanto às fortunas ou infortúnios duns pobres monarcas e das suas autocracias que vêm e vão. Mas sei de que lado não estou: a 31 de Março de 1492, menos de 3 meses após a queda de Granada a 2 de Janeiro do mesmo ano, gloriosos da conquista final da Península, os Reis Católicos Isabel e Fernando proclamam o Edito de Alhambra que ordena a expulsão das populações judaicas dos seus domínios.

A esta expulsão Gershom Scholem chama «uma catástrofe de inconcebíveis dimensões, que arrancou e expôs um dos ramos principais do povo Judaico, e que causou mudanças radicais em todas as esferas da vida e da percepção judaicas» (Major Trends in Jewish Mysticism p.244). A maior parte fugiu para Império Otomano, Norte de África, ou para a Eretz Yisrael. Alguns fugiram para Portugal.

Chegados cá foram chantageados pelo nosso rei Manuel I, o Vendido, que comerciou a vida dos refugiados judeus em troca do seu anseio por umas castelhanas bodas. A monarquia em Portugal, ontem como hoje. Quatro anos após chegarem de Castela foram mais uma vez expulsos.

O Catolicismo militante que no século XI e XII chegou à península vindo de Roma foi um projecto imperial do papado, útil para esmagar as tradições religiosas locais -- todas elas, não só o Judaísmo e o Islão mas também o ancestral Catolicismo visigótico e moçárabe, e substituí-las pelo catolicismo romano e cruzado que seria a ruína social, económica, e moral da península, que atiçaria fogo ao globo inteiro e lançaria grilhões sobre milhões e milhões.

16/03/2019

algumas notas sobre e lógica do conservadorismo & sobre as consequências políticas a tirar da mesmidade horrível da História

Para surpresa de alguns amigos, eu costumo definir-me, meio a brincar, como conservador. A clarificação é que me defino assim com base na ideia lata de que estou interessado em conservar tudo o que está bom, e mudar apenas aquilo que está mau.

A diferença entre essa definição lata de "conservador" e o movimento político contemporâeo de "Conservadorismo" é contudo bastante marcante. O estudo da história presenciou a combinação dupla da emergência por um lado da historiografia marxista, e pelo outro da viragem anti-filológica do século XIX que transformou as "Litterae humaniores" em "Altertumswissenschaften" (ou seja, "Ciências da Antiguidade"). Deixámos de estudar apenas textos para passarmos a estudar culturas, sociedades, pessoas de todas as classes (a historiografia feminista, que nasce da perplexidade de, até então, a história mundial ser apenas a história de 50% da população humana, é uma conclusão lógica e necessária desta orientação).

O Conservadorismo, enquanto movimento (por oposição a ser apenas “conservador”), não é algo “maligno”. Algo que muitas vezes escapa à atenção das pessoas da esquerda é que ser conservador não implica, de todo, um “ódio” a ninguém. Nasce sim da crença, responsável, de que as coisas podem estar mal, mas se lhes formos tocar ficam ainda pior. Nesse sentido é uma posição que pode ser entendida num sentido quase trágico: seria mais satisfatório, segregaria mais endorfinas, se Agisse, mas escolho não agir para não tornar a vida pior para ninguém.

Para mim essa posição auto-sacrificatória tem as sementes de algo nobre. Aquilo que penso que está em falta na atitude Conservadora é uma consciência histórica.

Isto pode parecer paradoxal. Afinal de contas, o conservadorismo deriva muito do seu élan da suposta digestão da história mundial e da descoberta de padrões de comportamento humano. Uma pessoa conservadora poderá dizer algo como: a raça humana sempre foi reles e horrível, nunca outra coisa buscou que o seu próprio interesse. Olhem para a história antiga, para os Gregos e para os Romanos, para a Idade Média e Moderna, para o Napoleão e para a Guerra Fria, etc: Tudo Igual. Daí que o conceito do pecado original seja algo espiritualmente muito frutífero, até mesmo dentro dos conservadores não cristãos.

Nesse sentido, graças a essa consciência histórica, é do espírito conservador negar o potencial revolucionário. Afinal de contas, se nada há de novo debaixo do sol, que revolução há para fazer? Ou, se houver alguma mudança, terá de ser sob a alçada de um Estado que sirva de dique e de barreira aos nossos piores impulsos, e que vá trazendo a cabo mudanças graduais e cuidadosamente ponderadas. Mudança radical pode operar-se ao nível espiritual (o "Homem Novo" do São Paulo), mas nunca político.

Daqui deriva que um desafio ao conservadorismo que pretenda ter o mínimo de sucesso não se pode pautar apenas por uma adesão a um ideal revolucionário de algum tipo. Aí a resposta virá, certa como o nascer do sol, de que “Isso é muito lindo, mas a natureza humana é inabalável.”

Mais eficiente parece ser confrontar as pessoas com a realidade da história. O Conservadorismo tem, como o nome indica, a premissa fundamental de que toda a acção humana tem o signo resignado de inevitavelmente, ou quase (esta imprevisibilidade é parte do sistema), redundar em planos arruinados e num lucro de sofrimento humano.

O corolário disso é que as coisas não estão assim tão más, ou pelo menos não tão más que não possam ficar piores. É aqui que carecemos de dois instrumentos. Em primeiro lugar duma análise sociológica feminista, descolonizada etc. -- em suma, interseccional. Essa análise sociológica do mundo contemporâneo mostra-nos um planeta à beira do colapso ambiental, racial, político, acossado por todas as trevas do ódio e do fanatismo — “A time of extremism.”

Agora é preciso dizer que ninguém realmente põe isso em questão. O colapso da ordem mundial, ambiental e social, é um facto reconhecido por quase todo o mundo, e isso inclui certamente conservadores. A diferença, mais uma vez, é que alguém conservador estará naturalmente mais propenso a dizer que medidas drásticas acabarão por causar danos ainda maiores do que aqueles em que de outra forma naturalmente incorreríamos.

Que acontece à história do mundo quando a analisamos através dessas mesmas lentes? Por mesmas lentes aqui queremos dizer apenas: Preocupando-nos com a totalidade da raça humana, com a totalidade absoluta das pessoas. A alternativa, que temos de rejeitar em nome da dignidade humana, seria preocuparmo-nos com a história artística ou literária sem nos preocuparmos com a história económica, com a história política ou militar sem nos apoquentarmos com a história dietária, etc.
Em suma, uma história que pelo menos aspire a ser holística, e que tenha a noção de que falar apenas das glórias artísticas ou literárias de meia dúzia de pessoas é altamente miópico. Não estou a sugerir que deixemos de estudar a história da literatura, mas as sociedades que lhe deram origem, como eram?

Uma vez formulada a pergunta assim, uma consciência minimamente honesta chegará a uma conclusão que embate frontalmente com a crença de que haja muito para conservar. Não há dúvida de que há coisas belas e nobres, dignas de ser guardadas, preservadas, a ser feitas em todas as épocas históricas. Que não são (argumento eu) apenas “monumentos à barbárie”. Mas olhando para o grosso, para a esmagadora linha da história do mundo, o que vemos é um conto horrífico de exploração, de vidas expostas e manipuláveis, de sofrimento humano a preço da chuva, de opressão económica, social, sexual, cultural, que parece não ter fim e quase não ter princípio.

A pergunta surge, portanto, conservar o quê? Voltar a quando? Parece que logo que, ou pouco depois de a civilização urbana que ainda nos define ter início na Mesopotâmia, na Suméria, podemos já testemunhar isso: o surgimento de uma classe sacerdotal que controla o produto da lavoura da vasta população, reduzida a uma esperança média de vida baixíssima e a trabalhar para alimentar "os deuses". O Egipto faraónico foi em vários seus momentos talvez a sociedade mais autocrática alguma vez atestada. A Atenas clássica, que tanta beleza imortal nos valeu, pautou-se por uma opressão indizível não só sobre escravos como também mulheres, e as suas afirmações sobre a dignidade do humano embatem frontalmente contra a constatação de que foi certamente das sociedades mais totalitárias e dominadoras de que há memória.

Não seria uma questão de dar mais exemplos, pois estes são apenas impressionísticos: a verdade é que quando olhamos para aquilo que queremos "conservar" na História, não me vem à mente nenhuma instância em que não estejamos apenas a falar de "conservar o estilo de vida de que desfrutava 0.1% da população". Claro que todos gostaríamos de ser aristocratas gregos, trocando poemas em symposia. Já as flautistas sexualmente agredidas nesses mesmos banquetes, ou os escravos que trabalhavam nas nossas minas para nos pagar o jantar, isso já passamos.

Tudo isso continua, e exacerba-se com o passar dos séculos. A Era Moderna e o capitalismo industrial aumentaram e expandiram ainda mais um sistema que se pensaria que não fosse mais expansível. A exploração racial por meio da escravatura veio dar um fundamento pseudo-científico (e, lamentavelmente, muito mais duradouro enquanto conceito) àquilo que já era "a lei do mundo": que um pequeno grupo exploraria até à exaustão, até à aniquilação e à sujeição da alma um outro grupo incomparavelmente maior do que este e o exploraria.

A explicação tradicional deste status quo é, evidentemente, a do Marx. De que se trata duma questão de luta de classes, de confronto inevitável entre quem tem tudo e quem não tem nada. Pessoalmente partilho dessa explicação e subscrevo-a em vários pontos (evitando-a noutros, nomeadamente na noção hegeliana de inevitabilidade e de "direcção" da história). Mas não é a única, e neste texto não me interessa tanto sugerir uma teoria quanto desnudar aquilo que este estado das coisas significa para uma visão conservadora.

Como escrevia acima, simpatizo e respeito o ideal conservador. Considero adulto e louvável a forma como quem se vê como conservador muitas vezes escolhe o caminho mais moralmente complicado, que é efectivamente não fazer nada, graças à sua forte convicção de que a acção, nesse momento, traria mais males às pessoas que efectivamente sofrem, do que alguma acção política de resistência activa.

Mas visto a uma escala global, mais males do que o quê? Ou seja, queremos conservar o quê? Uma atitude conservadora será lícita quando pretender conservar algo que, respeitando as vidas de grupos minoritários, ainda assim beneficie uma esmagadora maioria da população mundial. Traduzindo: A oposição a alterações climáticas é uma bandeira conservadora. A oposição a manipulação genética é uma bandeira conservadora.

Mas pouco, mesmo muito pouco mais. À cabeça de tudo, o capitalismo, a força mais destruidora alguma vez inventada, e na qual estamos tão entranhados que dificilmente alguma vez nos soltaremos. Nada, nada no mundo há menos conservador do que o capitalismo. A opressão económica que este causa não se limita apenas a impedir que os salários mínimos cresçam com dignidade em Portugal, ao mesmo tempo que permite aos executivos da EDP lucrar milhões em bónus avulsos em anos de crise prejuízo. Não, porque em realidade ele opera de tal maneira que ou se transforma em fonte e origem de toda a desigualdade, ou coopera com outras para as magnificar exponencialmente. Se há opressão racial, é porque há interesses económicos em que haja opressão racial. Se há desigualdade sexual, é porque há uma lógica económica que lhe subjaz. Se uma lógica imperial e colonial dita a nossa política internacional, em vez de uma lógica cooperativa, é porque há países que tentam estar na mó de cima para explorar outros países, e para os sugar em benefício não dos próprios cidadãos mas das próprias grandes empresas, das modernas Companhias da Índia Oriental.

Sempre foi assim. Nunca foi diferente. Mesmo apesar dos nossos pruridos em tomar acções concretas, para não perdermos aquilo que tê— mas temos o quê mesmo? E queremos conservar o quê? Isto só faz sentido se houver empatia. Claro que eu, europeu homem branco, até posso estar relativamente bem. Mas olhando para a escala mundial, ou seja, não olhando apenas para mim-- quero conservar o quê? A premissa da mudança é algo que parte sempre dum exercício extremo de empatia, que é uma palavra sinónima de amor absoluto pela raça humana. «Eu vim para deitar fogo à terra, e quem me dera que estivesse já a arder!» (Lucas 12:49)

Conservar, mas conservar o quê mesmo? O que é que há que se salve?




imagem: Serpente à volta do mundo @ Livro das Maravilhas do Mundo, séc. xvii-xviii. Damiri, Damamini, Qazwini.

07/02/2019

Respice stellam, voca Mariam

No fim do verso diz, "E o nome da Virgem Maria." Falemos um pouco sobre este nome, que quer dizer "Estrela do Mar", e que convém tão bem à Virgem Mãe. Não há comparação que mais se adeque a ela do que a dum astro, visto que, tal como os astros emitem os seus raios sem se corromper, assim também a Virgem dá à luz o Filho sem qualquer dano para si. 
O raio não diminui a claridade do astro, nem o Filho diminui a perfeição da Virgem. Porque é ela aquela nobre estrela de Jacob, cujo raio ilumina todo o planeta, cujo esplendor tanto refulge nas alturas quanto penetra nos infernos. Percorre as terras, e aquece as mentes ainda mais do que os corpos, prepara as virtudes e purga os defeitos.
É ela, insisto, é ela aquela brilhante e exímia estrela que se ergue sobre este mar vasto e extenso, que cintila com os méritos e encandesce com bons exemplos. 
Ó tu que te apercebes que na corrente deste mundo fluctuas entre tempestades e intempéries mais do que caminhas sobre a terra, não desvies os olhos do fulgor deste astro, se não desejas ser acometido pelas tempestades. Se os ventos da tentação se insurgem contra ti, se és projectado contra os escolhos das tribulações, olha para estrela, chama Maria. 
Se és arremetido pelas ondas da arrogância, da ambição, da calúnia, da inveja, olha para a estrela, chama Maria. Se a a ira, a avarícia, ou as seduções da carne te abalarem a barca da mente, olha para Maria. Não desapareça jamais dos teus lábios, não desapareça nunca do teu coração, e, para atingires a intercessão da sua oração, não abandones nunca o exemplo da sua vida. 
Se a seguires não perderás o rumo, se a chamares não cairás no desespero, se pensares nela não errarás. Se ela te segurar não ruirás, se ela te proteger não temerás, se ela te guiar não te cansarás, se ela te for propícia chegarás ao teu destino, e desta forma provarás aquilo que com razão se diz: "E o nome da Virgem Maria." 
Chega já a hora porém de parar um pouco, para que não nos ofusque a claridade desta tão grande luz. Para citar as palavras do Apóstolo: "É bom estarmos aqui" (Mat. xvii, 4), e é suave também contemplar em silêncio aquilo que nem a expressão verbal mais elaborada conseguiria alguma vez descrever. Dessa forma, por via da contemplação devota deste astro cintilante, estaremos em condições de elaborar a discussão que se segue de com um fervor ainda maior.»
S. Bernardi Homilia in 'Missus Est' (2.17) Tradução minha.
In fine autem versus, Et nomen, inquit, Virginis Maria. Loquamur pauca et super hoc nomine, quod interpretatum maris stella dicitur, et matri Virgini valde convenienter aptatur. Ipsa namque aptissime sideri comparatur; quia, sicut sine sui corruptione sidus suum emittit radium, sic absque sui læsione virgo parturit filium. Nec sideri radius suam minuit claritatem, nec Virgini Filius suam integritatem. Ipsa est igitur nobilis illa stella ex Jacob orta, cujus radius universum orbem illuminat, cujus splendor et præfulget in supernis, et inferos penetrat: terras etiam perlustrans, et calefaciens magis mentes quam corpora, fovet virtutes, excoquit vitia. Ipsa, inquam, est præclara et eximia stella, super hoc mare magnum et spatiosum necessario sublevata, micans meritis, illustrans exemplis. O quisquis te intelligis in hujus sæculi profluvio magis inter procellas et tempestates flucturae, quam per terram ambulare; ne avertas oculos a fulgore hujus sideris, si non vis obrui procellis. Si insurgant venti tentationum, si incurras scopulos tribulationum, respice stellam, voca Mariam. Si jactaris superbiæ undis, si ambitionis, si detractionis, si æmulationis; respice stellam, voca Mariam. Si iracundia, aut avaritia, aut carnis illecebra naviculam concusserit mentis, respice ad Mariam. Non recedat ab ore, non recedat a corde; et ut impetres ejus orationis suffragium, non deseras conversationis exemplum. Ipsam sequens non devias: ipsam rogans non desperas: ipsam cogitans non erras. Ipsa tenente non corruis; ipsa protegente non metuis; ipsa duce non fatigaris; ipsa propitia pervenis: et sic in temetipso experiris quam merito dictum et, Et nomen virginis Maria. Sed jam modice pausadum est, ne et nos in transitu claritatem tanti luminis intueamur. Ut enim verbis apostolicis utar, Bonum est nos hic esse (Mat. xvii, 4): et libet dulciter contemplari in silentio, quod laboriosa non sufficit explicare locutio. Interim autem ex devota scintillantis sideris contemplatione, ferventior reparabitur in his quæ sequuntur, disputatio.