07/04/2019

Símbolo de Símbolos, a Rosa



Quando em 325 a hierarquia católica se reuniu para compor o dito "Symbolum de Niceia" (ou 'Credo') que haveria de definir a quase totalidade da crença cristã até hoje, não achou melhor forma de descrever a relação de Cristo a Deus do que o tricolon tautológico de "Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro" (na versão Latina).

Tenho relativamente pouco interesse em seguir a dança histórico-teológica que os fez chegar por fim esta formulação. Tenho mais de apreciar a pujança da imaginação que persuadiu o Espírito de que a melhor forma de identificar o mistério da realidade de Cristo foi a tautologia. Neste que é talvez o último anélito da criatividade cristã antes que esta se embrenhasse nos labirintos da metafísica aristotélica, a diferença de Cristo em relação a Deus é paradoxalmente definida pela sua identidade radical para consigo mesmo.

Lembra-me isto uma conversa que tive com amigo esta semana a propósito de numerologia. Perguntava-me: “O sete, o número 7, é símbolo de quê?” Uma solução académica, resisti, seria obliquar a resposta e começar num elenco de “coisas que aparecem em número 7”, há 7 maravilhas do mundo, há 7 pecados e 7 virtudes, 7 são as colinas de Roma, de Lisboa e de Constantinopla, e, se quisermos continuar, são “7 os Anões” e 7 é a bisca.

Uma forma ainda mais desesperada de fugir à pergunta passaria por entrar pelo caminho da perdição da numerologia ou da gematria, e listar as possíveis combinações geo-aritméticas que nos reconduzem ao número. 7 é a soma de 3 mais 4, números de si perfeitos, ou de 6 mais 1, ou de 10 menos 3, e assim por diante. Em todas essas quero focar-me naquela que me parece mais fascinante: de que o 7 é um número sacral porque é a multiplicação de 1, a unidade, pelo 7, um número perfeito.

1 x 7 = 7

O Borges tem um poema sobre a 'rosa':
A rosa,
a imarescível rosa que não canto,
a que é peso e fragrância,
a do negro jardim na alta noite,
a de qualquer jardim e qualquer tarde,
a rosa que resurge da ténue
cinza pela arte da alquimia*,
a rosa dos persas e de Ariosto,
a que está sempre só,
a que é sempre a rosa das rosas,
a jovem flor platónica,
a ardente e cega rosa que não canto,
a rosa inalcançável.
Neste poema ele alude a vários momentos da literatura ocidental (inclusive, em *, a um conto dele próprio “A Rosa de Paracelso”), mas o cerne é o verso "a que é sempre a rosa das rosas". Quando perguntaram ao Umberto Eco porque é que ele chamou ao seu livro “O Nome da Rosa”, tendo em conta que não há nenhuma rosa a ocupar um lugar primeiro no livro, ele respondeu que queria um “título neutro”, e mais tarde, "porque a rosa é uma figura simbólica tão rica em significado que já quase que nem lhe resta nenhum sentido próprio".

O juízo do Umberto Eco parece-me injusto. O Borges percebeu melhor. Há uma harmonia entre o Símbolo de Niceia, entre o número 7, e entre a rosa, que é que todos eles são símbolos de si mesmos, o que é a mesma coisa que dizer que são símbolos do símbolo. A rosa simboliza um símbolo, e o seu esvaziamento de sentido é programático: retivesse ainda a rosa alguma réstia de sentido, não poderia simbolizar a recorrência perpétua e a inalcançabilidade própria do Símbolo.

Da mesma forma, o 7, longe de simbolizar a união destes números ou daqueles, simboliza acima e primeiro que tudo a capacidade numérica para acolher sentido e, transformando-se num referente de sentido que atira todo o sentido para fora de si, representa a força persuasiva e o poder espiritual da numerologia.

Partilham um campo semântico então, a rosa, o 7, o Cristo. Não certamente a triste rosa, reduzida a que dela seja dita “que quer dizer amor”, ou o 7 “que quer dizer o número dos chakras”, ou o Cristo “que quer dizer a união do humano ou do divino”. Aqui toda a resolução avilta. Antes, rosa da rosa, 7 do 7, deus de deus, símbolo do símbolo, simbolizam todos a capacidade simbólica, que, sendo recorrente, se esgota na sua própria circularidade, mas ao mesmo tempo aflui nas demais províncias da linguagem, e, desaguando nos demais símbolos, alimenta-os e confere-lhes a eles e a nós a sua capacidade de se referirem a outras coisas, de nos lançarmos para fora de nós próprios


Imagem:
Ambrosius Bosschaert (1618) @ Londres Johnny van Haeften

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