01/04/2020

Notas sobre o Árabe cá da terra #2 Para além das "palavras de origem árabe"

Quando se fala da influência árabe na língua portuguesa, o comum e o mais fácil (o que é compreensível) de passar para o imaginário comum é que "palavras que comecem por AL-" sejam ditas de origem árabe, AL- sendo o artigo (o/a/os/as) em Árabe clássico. Isto é verdade, dentro de certas limitações: nem todas as palavras que começam por AL- são árabes (por exemplo, "almoço"), nem sempre o AL- é visível (por exemplo, Azeite tem lá o AL-, que surge obscurecido pelo fenómeno de assimilação consonântica, ALZEIT, AZZEIT, AZEIT), e outras passaram para o português simplesmente sem artigo (como 'cenoura').

Mas é interessante olhar para a presença árabe, mais uma vez, a partir de dentro. Concretamente, em que é que a experiência árabe na península moldou a própria língua árabe? Sem querer insistir em demasia, insto na urgência de conceder legitimitade histórica às comunidades milenares árabes da nossa península duma forma que não seja mono-direccional, do efeito "deles" sobre "nós".

Podemos começar pelo famoso Oxalá, que muita gente, aprendendo que em Árabe existe a expressão Inxallah (إن شاء الله) afirma serem a mesma expressão. A resposta correcta é: Nim. In-xa'-Allah traduz, à letra, Se-Quiser-Deus. Ora a verdade é que em Árabe há várias expressões para dizer a palavra [se] condicional: 'In' (إن), 'idha' (اذا) 'Lau' (لو). A escolha de qual usar será determinada quer pelo grau de modalidade (condições possíveis, irreais, etc) quer pela variante dialectal, histórica, ou formal.

Tudo isto para dizer que na variante de Árabe Andaluz, falado na nossa Península, a partícula 'Lau' (لو) apropriou-se de várias das funções das demais partículas. Em vez de In-xa-allah, o que era na realidade vigorava era Lau-xa-Allah. 'AU' torna-se comunmente 'Ó', em todas as línguas do mundo, e de Lawxallah surgiu Lóxalá. A perda do L inicial originou o nosso Oxalá, que nesse sentido é uma palavra profundamente ibérica, porque reflecte os desenvolvimentos da língua árabe específicos à nossa península ao longo de gerações sem conta.

No mesmo tema podemos também falar duma outra palavra do mesmo campo semântico. A palavra "tomara" parece ser uma palavra de um pedigree latino impecável. A verdade é que os etimólogos classificam o verbo como de etimologia obscura. A expressão أتمّ الله (atamma 'llah), "Cumpra Deus que..." Os arabistas sugerem que a expressão "atamma'llah" -> "tamala" provavelmente mudou a líquida L na outra líquida R, originando tamara - tomara. Isso explica porque é que 'tomara' é utilizado como interjeição e não como verbo. Tomara que chegue ... Tomara que possa ... etc, de resto quase sinónimo de oxalá. 

Neste momento peço aos latinistas ou lusitanistas de serviço que parem um instante para pensar: qual é a etimologia latina já não da palavra "tomara" mas do próprio verbo "tomar"? "Tomāre" certamente não existem em Latim. Há uma possibilidade de estarmos perante uma lógica de significação regressiva, e que o verbo tomar origine da expressão tomara e não do seu oposto, mas aí as opiniões dividem-se mais.

Um último pormenor passa pelo facto de a própria palavra "tomara" ser provavelmente a responsável solitária por uma inovação morfossintática das línguas peninsulares, que é a utilização do mais-que-perfeito indicativo para expressar o condicional ou o optativo. Que em Português haja algumas expressões como "Tomara", "Fizera", "Houvera" mais ou menos cristalizadas não nos impede de utilizar outros verbos na mesma lógica. "Conduzira ele pela estrada, e isto não teria acontecido."

Que o sentido histórico do condicional estará realmente relacionado com a palavra tomara, e não o inverso, é portanto quase certo. A palavra tomara, resultante (como interjeição) da expressão árabe citada acima, foi entendida pelas pessoas falantes de português como um mais-que-perfeito (embora não o fosse) e esse uso foi estendido. Uma pista final disto passa pelo facto de as únicas pessoas gramaticais que permitem este uso são apenas, salvo raras excepções, a primeira e a terceira (onde a terminação é em -ra). "Fizeram eles isso, e isto não teria acontecido" não é uma frase válida.

Isto configura uma influência da língua árabe na língua portuguesa para além de palavras emprestadas e atingindo a estrutura mais profunda do português: a semântica e a morfologia verbal.