Estás prestes a ler um breve poema de Muhammad ibn Ubada Al-Qazzaz, que viveu em Málaga entre 1051 e 1091.
Está escrito em “moçárabe”, um termo algo ambíguo que tende a referir-se às comunidades cristãs que adoptaram a língua e os costumes árabe, mas que aqui se refere simplesmente à língua românica da península (antes de haver galaico-português ou castelhano ou catalão) escrita em “aljamía”, ou seja, o uso de letras árabes para escrever línguas românicas.
O alfabeto árabe, como qualquer sistema de escrita, pode ser usado para escrever qualquer língua, embora naturalmente esteja mais adaptado às necessidades de línguas semíticas. Mas ao longo da sua história foi usado para grafar idiomas que nada têm que ver com a lógica linguística árabe, como o Persa-Iraniano, o Português, ou o Turco.
من سيدي ابرهيمTranscrição literal:
يا نوامن دلج
فانت ميب
ذى نخت
ان نون شنون كارش
يريم تيب
غرمى اوب
لفرت
mn sīdī IbrahīmTradução/Adaptação. Entre [rectos] palavras árabes.
yā nwamn dlj
fānt mīb
dhī ncht
in nōn xnōn kārx
īrīm tīb
ġrmī ‘ōb
lvrt
meu* [cid]* Ibrahim
[ya]* nome doce!
vem* a mim
de noite
[in]* não, se não queres,
irei-me a ti
diz*-me onde
achar-te
Algumas notas:
* meu. Num outro manuscrito não temons "mn" (que indicaria "mon", como em francês e catalão, cf. Monsenhor), mas sim مو/mo, que nos faria suspeitar que a pronúncia se achegaria mais ao nosso "meu".
* [cid]. Literalmente, “senhor” (cf "El-Cid"). O antepassado directo do referente “senhor” nas cantigas de amor galaico-portuguesas. Lembrando o dito de Cícero de que “non tam præclarum est Latine scire quam turpe nescire”, o que surge é a conclusão que é menos uma questão de que bases de lírica medieval árabe poderiam ser úteis para o entendimento da nossa literatura medieval, e mais do que desconhecer essa lírica será catastrófico e irresponsável para um estudo filológico sério.
* [yā]. o vocativo árabe. “Ó!”
* vem. Literalmente, “fem”. o Árabe não tem a letra v.
*[in]. Num post anterior falei da diferença entre os vários tipos de partículas condicionais em Árabe (in, law, idha, etc). Aqui temos dois, mas na língua Romance. “in não, se não queres”. É possível que haja alguma percepção de modalidade nesta frase. Algo como “Se não quisesses, se não quiseres” indicado pelo uso das duas partículas distintas.
* diz-me. no texto “garra-me”. Provavelmente do latim garrīre, falar descuidadamente, mas não deixo de suspeitar que talvez haja algum eco intencional da raíz árabe ġ.r.m. (غ ر م) que denota “amor apaixonado”.
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