17/05/2014

Augusto Salvador


Nunca fora capaz de perceber o culto imperial. Como qualquer pessoa tinha relativamente bem presente a cronologia daquele fenómeno estranho ao império romano pelo qual, a partir de Augusto, os imperadores após a morte foram sendo divinizados, tomados por deuses, e mais tarde ainda em vida. Esta divinização implicava tudo o que dizia respeito a um deus, e por vezes mais. O ancestral culto civil romano integrou o culto ao imperador na perfeição, e paralelamente aos templos aos deuses do panteão foram sendo construídos templos ao imperador por todo o império. Ao imperador eram devidos rituais, sacrifícios, sacerdotes, como a qualquer outro deus.

O culto ao imperador evoluirá tanto, tomará uma função de tal forma central, que se tornará de certa forma a religião oficial dum império que até então jamais tivera uma: às províncias conquistadas era permitido que mantivessem os seus deuses locais (que até eram mesmo muitas vezes transladados para Roma para tomarem parte do grande sincretismo latino), e a única condição que lhes eram posta era que integrassem o imperador nos seus ritos (o caso de longe mais famoso, por ter sido o único em que esta exigência foi posta em causa, foi claramente o caso da Judeia, que se rebelou e levou Roma a devastar a província e a resistência religiosa judaica).

Ora todo este aparato sempre me soara a mim um sinal não só de decadência mas até mesmo um sinal de decadência incompreensível. Ao contrário de outras manifestações de decadência cujas raízes conseguia traçar e, traçadas, entendê-las mesmo que as lamentasse, sempre me fora impossível perceber como é que esta nação fora capaz de adorar como deuses homens que há poucos anos tinha conhecido ou que conhecia presencialmente. Os exemplos de outras civilizações, principalmente a Egípcia, estão o mais das vezes demasiado distantes no tempo e espaço culturais para sentirmos sequer que deveríamos ser capazes de fazer a ponte, mas no caso de Roma o problema do culto imperial era diferente do da civilização egípcia, onde o todo me era estranho e onde portanto a divinização faraónica assumia os contornos duma situação que fazia sentido no contexto totalizante — sendo que esse contexto totalizante me era bizarro à partida; antes, em Roma, deparava-me com o culto imperial como um elemento que fazia pouco sentido no contexto da restante civilização, um puzzle onde uma peça não encaixa, um enigma cujo ónus estava em mim para decifrar, e por conseguinte também a culpa ou a incapacidade por não o conseguir fazer.

Mais uma vez a resposta está na música. O compositor humanista Petrus Tritonius (1465-1525) faz parte daquela elegante e maravilhosa corrente que, principalmente durante o Renascimento, tentou fazer de novo brilhar a poesia greco-latina através dos metros que lhe são ínsitos. Hoje em dia quem aprende Latim (ou Grego) aprende que os poemas estão escritos numa coisa chamada métrica, que ao contrário da prosódia das línguas modernas (ela própria abandonada quase por completo pelos poetas contemporâneos), se articula pela alternância de sílabas longas e breves, que nada tem que ver com o sistema de sílabas tónicas: numa palavra latina pode haver tantas sílabas longas ou breves quantas houver na palavra, sem que por isso tenham de forma alguma de coincidir com a tónica.

Esta métrica parece uma coisa absolutamente arcana que é cultivada, parece-me, por dois tipos de pessoas apenas: ou pelos estudiosos críticos que se podem servir dela para identificar problemas textuais (um hexâmetro, por exemplo que comece por uma sílaba breve sofreu claramente uma falha de transmissão e carece de correcção pelo editor moderno); ou então por pessoas a quem apraza furar os ouvidos com um ferro quente: ARma viRUMque caNO TROIÆ QUI PRImus ab ORIS pronunciado como se alguém tivesse resolvido dar um tambor ao meu irmão mais novo (o que é dito com muita injustiça, pois o Álvaro toca muito bem piano e talvez até leia este blog).

Isto é bastante absurdo, pois significa enxertar um sistema de prosódia — o nosso das sílabas tónicas — no sistema antigo de longas e breves. Os antigos, sabemo-lo, tinham por hábito cantar os seus poemas, e por cantar entende-se musicalmente: o ritmo de longas e breves, de quantidades, é o ritmo duma canção, que muitas vezes eram compostos pelos próprios poetas, outras tantas improvisadas ou inventadas por terceiros. Recitar Vergílio implicava, antes de mais, cantá-lo, com modulações de voz que se aproximam das nossas recitações musicadas, e, segundo os tratados de Música antigos, poemas como as odes corais trágicas tinham ritmos elaborados compostos especificamente para eles que desafiavam até mesmo a compreensão verbal (como aconteceu com a ópera em vários momentos da sua história, por exemplo no Barroco).

Como eu dizia antes, houve na Modernidade quem tenha compreendido esse carácter musical da poesia antiga, e que tenha tentado compor melodias para os poemas que chegaram até nós. Os exemplos mais interessantes dessas tentativas foram realizados no Renascimento, esse glorioso tempo em que, mais que em qualquer outro, a Antiguidade era um amigo que desafiava, mais do que um pai cujo parricídio era necessário, ou do que um paciente a analisar. Eu já conhecia várias dessas experiências; conhecia também alguma da sua prole através das composições do século XX de Jan Jovak ou, ainda mais recentemente, das composições de Eusebius Toth na Academia Vivarium Novum.

Estas composições têm a grande virtude de revitalizar os poemas através da sua força intrínseca: a métrica antiga, mais do que a moderna, é uma parte tão constitutiva do poema quanto as palavras, e ao recuperá-la poéticamente tornamo-nos capazes de lidar com o poema duma forma muito mais próxima do que a alternativa (que passa por regra por ler o poema ignorando a métrica, e depois "escandir" o poema independentemente, como tarefa à parte e frequentemente de incompreensível propósito). Ora essa dita escansão é muitas vezes algo difícil, pois implica o conhecimento a priori das quantidades vocais das vogais, conhecimento esse que, no que é importante, não pode ser antecipadamente derivado de qualquer regra.

A transposição destes poemas para música cumpre portanto uma série de funções, das quais numero as que me parecem mais notáveis: α) a restauração ao poema dum elemento sem o qual ele é virtualmente incompreensível β) o tornar o contacto com o poema como um todo numa experiência muito mais próxima do que teria sido na Antiguidade do que aquela que a nossa leitura martelada é capaz γ) aumentar o mero prazer estético da leitura/audição δ) facilitar exponencialmente a memorização (memorização essa que depois por si inúmeras outras vantagens).

Diz respeito principalmente ao β este grande excurso sobre métrica e prosódia num texto sobre o culto imperial. Pois, e foi isto que me fez lançar-me a escrever este texto, foi a recente audição da melodia que o acima-mencionado Petrus Tritonius compôs para a Ode II.2 de Horácio que me fez pela primeira vez entender o culto imperial como fenémeno religioso. Qualquer pessoa que estude Horácio sabe que há algumas das suas odes no terceiro livro que costumam ser classificadas como as "Odes Romanas", mas essas não são as únicas odes devotadas não a algum dos vários temas que permeiam as restantes odes — o vinho, o epicurismo, as jovens, os jovens — mas que se manifestam antes ostensivamente como uma glorificação de Roma e do seu César, Octaviano Augusto. Eu já tinha lido estas odes. Algumas delas várias vezes. Mas uma coisa certamente é vera, a saber que a força sacral do poema dificilmente se cede à leitura.

Estes poemas foram feitos para serem cantados, e se o não forem não revelam a sua vitalidade. Até ouvir esta ode cantada eu tinha sido incapaz de entender como é que alguém como o Horácio poderia alguma vez ter celebrado Augusto como o fez. Ao ouvi-lo entendi pela primeira vez o que significa a gratidão sagrada, o culto do pai da pátria. Posso não concordar com ela, posso rejeitá-la — e rejeito-a, aliás ostensivamente: este ano celebram-se a o bismilenário de Augusto, mas eu não celebro tiranos — mas agora pela primeira vez posso dizer que a rejeito com a consciência do que estou a rejeitar, e só assim o posso fazer por completo. Só compreendendo o espírito com que foram compostas as Odes Romanas o posso combater, caso contrário outra coisa não faço que combater uma ideologia supervacânea em nome de outra.

Porque de ideologia sempre se trata. Aproximamo-nos do aparato literário-propagandístico da Antiguidade, duma Eneida, dum Carmen Sæculare, e ou vemos nele o cinismo insuportável dos sicofantes — lembrar aqui, acima de tudo, A Morte de Vergílio daquele Vergílio, Hermann Broch, nado tarde de mais —, a versão sublimada da propaganda política; ou, se somos incapazes, se nos recusamos a ver na Eneida apenas isso, se sentimos em nós que o Vergílio não pode ter sido apenas um fantoche político,  se mantemos aquele descentrado preconceito de que a verdadeira arte sempre se fundará em algo mais do que a propaganda, e se vemos na Eneida verdadeira arte, então nesse caso somos confrontados mais uma vez com o paradoxo: como é que alguém alguma vez poderia acreditar nestes messias? nestes deuses? («deus nobis hæc otia fecit. / namque erit ille mihi semper deus, illius aram / sæpe tener nostris ab ovilibus imbuet agnus.») A nossa mente repugna porque não experimentámos, não vivemos, não aceitamos. E os subsídios que à nossa mão jazem para que o entendemos, os testemunhos passados e relatados não permitimos que falem.

Uma das muitas consequências desta auto-inflingida cegueira é a leitura pessimista da Eneida, a dita escola de Harvard. Segunda esta leitura, a Eneida é um poema triste, um poema pessimista, um poema ao fim de contas profundamente dissatisfeito com os resultados políticos da política augustana. Esta leitura peca antes de mais pelo falhanço hermenêutico que consiste em rejeitar o texto em nome da interpretação: esta é a interpretação que queremos de lá tirar porque é isso que nós sentimos do projecto político de Augusto. Ora isso é antes de mais uma falta de respeito para com o texto, uma falta de respeito para com a tradição e para com a herança da Antiguidade. O Pós-modernismo gosta de saltar um passo: enquanto que o genuíno confronto com a Tradição ouve a Palavra da Antiguidade, e então responde-Lhe, nega-a, confuta-a, aceita-a, o Pós-modernismo põe palavras na boca dos Antigos. Mas os antigos têm bocas de ouro e de prata que oxidam ao toque. Urge antes ouvir Vergílio, cujo tom triunfal e grato é em imensas passagens impossível de explicar ou sem má fé de ignorar.

Mas não devemos ser demasiado exigentes para com as leituras pessimistas da Eneida: quem nunca ouviu nos ouvidos o canto de Melibeu, quem nunca viu diante dos olhos tal como Vergílio no-los descreveu as sombras infernais da promessa de Roma, quem apenas leu sobre elas, como poderia entender? Para combater Vergílio, Horácio, Mecenas, é preciso antes tornarmo-nos antes Vergílio, Horácio, Mecenas, entendê-los, compreendê-los: e só depois combatê-los. O problema é quando se tenta fazer com que o combate assuma a forma de interpretação, e se desrespeita de tal forma os antigos que, já não bastasse o facto de eles não terem direito de resposta, mas ainda por cima roubamos-lhes o direito de formular as suas opiniões, preferindo antes sofísticas interpretações que tão inteligentemente revelam as "tensões intrínsecas" ou a "desconstrução do texto a partir de si próprio".

Esse modo de agir outra coisa não é que a cobardia de quem não ousa combater, quem prefere que o adversário capitule antes do combate. Mais corajoso seria dizer: o Vergílio diz isto: Mas eu digo-vos isto. A coragem de Jesus, desaprendida dos pós-cristãos («audistis quia dictum est … ego autem dico vobis…»). O Leo Strauss di-lo também, quando sugere que antes de entendermos os antigos melhor do que eles se entenderam a si mesmos (isto é, ele quer dizer, antes de desconstruirmos) temos que os entender tão bem quanto eles se entenderam a si mesmos. Avisem-se os descontructores: audite ac videte.

Quanto a mim, não estranharia se um dia viéssemos a concordar que o motivo pelo qual o Renascimento foi tão politicamente aristotélico, com o seu cepticismo em relação à existência da melhor forma de governo e o seu favorecer da teoria do bom governo segundo a virtude (não segundo a ordenação ou o número dos governantes) se tenha devido em grande parte à música que facultava esta capacidade de entender o enorme respeito, em suma a veneração que os Antigos tinham pelos seus governantes. A verdade é que eu, por muito que tivesse memorizado todo o Carmen Sæculare, jamais me tinha conseguido persuadir do seu carácter de prece. Por muito que tivesse lido sobre a divinização dos Césares em Ovídio jamais tinha acredito que alguém culto alguma vez pudesse ter acreditado que tal era possível, que César Augusto fosse realmente um deus. Mas depois ouvi o Tribonius, ouvi o Jam satis terris, e entendi. Fui capaz de responder ao enigma. Claro que qualquer leitor de Sófocles sabe que a responde ao enigma da Esfinge é apenas o primeiro passo, e nem o mais importante, e que a verdadeira luta até à morte que se travará em nome da busca da verdade está ainda para se travar. Mas a Querelle santa começa aí, e não antes. Desfazem-se os enigmas, e depois confronta-se a verdade. Permanecer voluntariamente diante dos enigmas é deixar que a esfinge nos devore. Os enigmas têm uma resposta (que, como o comentaram já os Antigos, é sempre a mesma: Nós). Mas aquilo que somos só o saberemos se avançarmos e se estivermos dispostos a pagar o preço desse conhecimento, como em tempos Hermes-Wotan esteve. Este problema deixemos que o Tritonius no-lo explique. Como é que alguma vez alguém poderia acreditar que Augusto é o Salvador? Assim —


In Augustum Salvatorem
Horácio I.2

Jam satis terrīs nivis atque dīræ
grandinis mīsit Pater et rubente
dexterā sacrās jaculātus arcēs
     terruit Urbem,

terruit gentīs, grave nē redīret
sæculum Pyrrhæ nova monstra questæ,
omne quum Prōteus pecus ēgit altōs
     vīsere montīs,

piscium et summā genus hæsit ulmō,
nōta quæ sēdes fuerat columbīs,
et superjectō pavidæ natārunt
      æquore dammæ.

Vīdimus flavom Tiberim retortīs
lītore Ētruscō violenter undīs
īre dējectum monumenta rēgis
     templaque Vestæ,

Īliæ dum sē nimium querenti
jactat ultōrem, vagus et sinistrā
lābitur rīpā Jove nōn probante*
     uxōrius amnis.

Audiet cīvīs acuisse ferrum,
quō gravēs Persæ melius perīrent,
audiet pugnās vitiō parentum
     rāra juventus.

Quem vocet dīvum populus ruentis
imperī rēbus? Prece quā fatīgent
virginēs sanctæ minus audientem
     carmina Vestam?

Cui dabit partīs scelus expiandī
Juppiter? Tandem veniās precāmur,
nūbe candentīs umerōs amictus,
     augur Apollo,

sīve tū māvīs, Erycīna rīdēns,
quam Jocus circumvolat et Cupīdo,
sīve neglectum genus et nepōtēs
     rēspicis, auctor,

heu nimis longō satiāte lūdō,
quem juvat clāmor galeæque lēvēs,
ācer et Maurī peditis cruentum
      voltus in hostem,

sīve mūtātā juvenem figūrā
āles in terrīs imitāris, almæ
fīlius Maiæ, patiēns vocārī
     Cæsaris ultor.

Sērus in cælum redeās diūque
lætus intersis populō Quirīnī,
nēve tē nostrīs vitiīs inīquum*
     ōcior aurā

tollat; hīc magnōs potius triumphōs,
hīc amēs dīcī pater atque princeps,
neu sinas Mēdōs equitāre inultōs
     tē duce, Cæsar.

* A gravação tem um erro aqui por não fazer a transição de probant'u, e de ler vitīs* em lugar de vitiīs.
A quantificação das sílabas é minha, portanto é possível que haja falhas.

Sem comentários:

Enviar um comentário