O texto que apresentei a 31/10/13 na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra aquando da defesa da minha tese de mestrado sobre Leonardo Bruni, intitulada Litterarum Lis — Veterum Sapientia apud Leonardum Bruni.
Há muita sapiência na opção da Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra de chamar ao seu centro de investigação centrado no
património greco-latino Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, e de prestar
reconhecimento com essa apelidação à união necessária que existe entre estes
dois campos; o ciclo que se realiza esta tarde, de nome Filosofia Grega e
Humanismo, é mais uma prova da vitalidade dessa união. A nossa disciplina enquanto
estudantes e estudiosos de Estudos Clássicos assume contornos bastante diversos
do que estudar, por exemplo, Cultura Egípcia ou Cultura Russa. Até ao século XIX
o Estudo da Antiguidade Greco-Latina esteve na vanguarda da educação e da alta cultura,
e presidiu a movimentos que conduziram para alguns dos mais belos empreendimentos
da raça humana, desde a arte à liberdade política, ao mesmo tempo que foi usado
racismos e injustiças por toda a Europa e todo o Mundo.
Assim sendo, mais do que em qualquer outro campo
“histórico”, a história do estudo da Antiguidade Clássica é uma parte
fundamental do nosso campo de estudo. Isto ganha particular ênfase a partir do
instante em que nos apercebemos de que, ao estudarmos as civilizações ditas
clássicas nos estamos a colocar na linha directa da herança milenar, linha essa
que é preciso entender se pretendemos ter uma visão daquilo em que trabalhos
que seja humana e passível de nos dizer algo a nós mesmos, e não apenas como
uma “área de trabalho”, que poderíamos escolher ou deixar de escolher, sem que
essa escolha tivesse qualquer peso ideológico. Longe disso, escolher Estudos
Clássicos implica uma escolha muito problemática, não necessariamente num bom
sentido saudável, e que carece permanentemente de justificação. Essa
justificação tornou-se desde o início do século XX progressivamente mais
difícil: a ideia de que o estudo das Humanidades levaria necessariamente ou
sequer tangencialmente à Humanidade aumentada de quem as estuda, e que a via
principal para atingir esse objectivo seriam as obras greco-latinas, tornou-se
virtualmente impossível de sustentar nos moldes em que foi sustentada nos
séculos anteriores.
A a tese de Mestrado que venho aqui defender é a minha
tentativa pessoal de lidar com esse problema, o grande problema que carece que
evitamos e ao qual fugimos, o problema da tradição, o problema do Classicismo,
o uso e o abuso da Antiguidade. Essa vida posterior da Antiguidade — aquilo a
que chamamos das Nachleben der Antike — a vida depois da morte da herança
Clássica, é algo que faz ainda parte do nosso discurso e dos nossos eixos
culturais. Por ter sido a primeira vez que o estudo consciente da Antiguidade
enquanto algo que urge recuperar, ou seja por ter sido a primeira e única vez
que uma perspectiva militante sobre a Tradição da Antiguidade se tornou a forma
hegemónica de cultura europeia, o Renascimento assume-se facilmente como o
lugar por excelência para nos questionarmos sobre a nossa actividade hoje. Para
ter um ponto focal de trabalho debrucei-me sobre a figura do humanista
florentino Leonardo Bruni (1377-1444), e mais concretamente sobre a obra em que
ele decide lançar-se directamente aos temas do papel da superioridade do
passado contra as conquistas do presente. Essa obra tem o nome de Diálogos a
Pietro Paolo Vergerio, também conhecidos como os Dialogi ad Petrum Histrum. Lá
encontramos a visão pessoal do que é que o confronto com a tradição antiga
significa para um dos maiores humanistas do primeiro renascimento: e a resposta
espanta, precisamente por não bater com a ideia da época a que estamos
habituados a pensar, ser mais problemática, mais revolucionária num sentido
muito concreto do termo, e estranhamente muito menos moderna do que estamos
habituados a pensar quando falamos da “natureza do Renascimento”.
A certa altura o grande historiador alemão Jacob Burckhardt
comenta que «poderíamos imaginar o Renascimento sem a recuperação do património
clássico, mas seria um Renascimento muito diferente daquele que conhecemos».
Ora nós não somos mais capazes de concordar com isso: vemos o Renascimento
precisamente como esse confrontar da tradição (medieval) com a renovação
revolucionária e utópica proporcionada pelo confronto com o património perdido
da Antiguidade Greco-Latina, património esse que se entendia já na Antiguidade
como parte fundamental, por vezes mesmo epigonal, duma tradição antiga. É
precisamente esta recusa duma tradição nativa em favor duma outra tradição que
levanta os problemas de qualidade e de valorização que perfazem o eixo da
História dos Estudos Clássicos. No contexto da obra em questão isto pode ver-se
no confronto entre a tradição volgare italiana e os modernos — ou seja, os que
preferiam escrever tudo em Latim. Quando a mais violenta das personagens do
diálogo põe em cheque o valor de figuras como Dante, Petrarca, e Boccacio, mais
do que analisá-los individualmente está a pôr em questão a possibilidade de
qualquer sucesso ou de qualidade que não tenha a sua origem na Antiguidade
idealizada.
Mas como os Dialogi têm várias personagens, esta visão
simplista recebe uma coloração complexa pela boca dos restantes presentes. Há
nele de facto uma personagem, o bibliotecário e bibliomaníaco Niccolo Niccolì,
que parece esposar a visão que é, seja por desconhecimento ou por motivos mais
tenebrosos, ainda hoje demasiado comum. Segundo essa opinião, a tal tradicionalmente
atribuida às figuras renascentistas, podemos entender os protagonistas do
Humanismo como meros imitadores acríticos dos padrões antigos, alheios à
expressão própria, e que numa espécie de imitação simiesca teriam desistido de
qualquer forma de confronto com o Passado que não fosse em forma de panegírico,
e de qualquer forma de comentário sobre o Presente que não fosse na forma de
lamento pelo passado perdido. A elaboração teórica desses temas é o objectivo
da primeira parte da tese que venho aqui defender, enquanto que na segunda
parte, ou seja no comentário que fiz aos Diálogos propriamente ditos, cabe ao
chanceler de Florença Coluccio Salutati opor-se a essa ideologia num contexto
teatral.
Um livro recente de Gary Ianziti sobre Leonardo Bruni
recebeu o nome: Leonardo Bruni and the Uses of the Past, Leonardo Bruni
e os Usos do Passado. Não se trata de aceitar simplesmente o antigo dictum de Historia
magistra vitæ, mas sim de o problematizar. O problema do “uso” da História,
seja esse uso ético ou glorioso, é algo com que nos deparamo ao estudar a
Antiguidade, mas não menos qualquer outro período da História. Mas em relação à
Antiguidade a questão torna-se exponencialmente mais complexa e interessante
devido ao facto de ser nela que está localizado o ponto focal a partir do qual
as épocas históricas com as quais nos relacionamos terem construído a sua noção
individual do sentido e mistério da história e do desenvolvimento cronológico
do que é a Tradição. A Hannah Arendt comenta a certa altura que a civilização
romana, ao entregar-se ao reconhecimento de que a Cultura Grega era superior,
conjugada com o conceito romano de mos maiorum, teria sido a fundadora
dessa noção de Tradição. Para voltar ao comentário inicial, o entendimento duma
época do pensamento humano que se entende como herdeira duma época, que por sua
vez se entendia como herdeira doutra é difícil — especialmente para nós, &
especialmente se pretendermos que o nosso estatuto de epígonos seja alvo de
meditação, reelaboração, ou contestação. E é no Renascimento que esta sabedoria
transmitida se assume sem pudor pela primeira vez como algo questionável.
A primeira parte desta dissertação, portanto, analisa duas
das linhas de pensamento mais potentes que julgaram e delinearam o nosso entendimento
do que é o Renascimento. Em primeiro lugar a ideia do grande historiador alemão
Jacob Burckhardt, que como é sabido chamou ao Renascimento a “idade do
Individualismo”, e que atribuiu às personalidades do Renascimento o estatuto de
“primogénitos da Europa moderna”, na medida em que teriam sido os primeiros a
quebrar a cosmovisão medieval, segundo a qual, argumenta Burckhardt, cada
pessoa se imaginava mais como parte de algum grupo do que como um indivíduo
entendido separadamente. Fora as críticas mais comuns, nomeadamente de que as
personagens que preenchem a História da Idade Média são tão ‘individuais’ como
as de qualquer outra época, ou então a outra, de que «o individualismo começa
na altura que o historiador em questão estiver a estudar nesse momento», houve
outras críticas que tentaram atacar a teoria individualista de Burckhardt de
maneira mais fundamental, erradicando-a e tentando plantar outra coisa no seu
lugar.
Dessas, das quais houve várias na segunda metade do século
XX, interessa-nos em particular a do historiador alemão Hans Baron, por ter
sido a grande narrativa que orientou uma releitura da Modernidade herdeira de
Aristóteles e que se opusesse em termos valorativos à corrente liberal,
tendencialmente a dominante no século XX fora da esfera comunista. Hans Baron
cunhou a expressão Humanismo Cívico para tentar explicar os humanistas —
com Leonardo Bruni ostensivamente a capitaneá-los — que, no seu entender,
teriam tentado voltar aos ideais republicanos e anti-imperiais, cívicos e anti-despóticos,
principalmente através duma leitura dos textos da república romana ou dela
saudosos, como Cícero, Tácito, ou Tito Lívio. Que um conceito do género tenha
sido pela primeira vez formulado na época que cercou a Segunda Guerra Mundial
não nos deve passar ao largo, assim como não devemos deixar de reparar como a
leitura histórica (ou seja, focada no Renascimento) do conceito de
republicanismo rapidamente deixou o campo meramente historiográfico e passou a
ser aplicado, também retroactivamente, ao campo da filosofia política por
pessoas como Hannah Arendt, Alasdair McIntyre, e Quentin Skinner.
Falando pessoalmente, este “sonho cívico” foi o que me levou
a dedicar-me à figura do Leonardo Bruni. Quando decidi o tema desta dissertação
não sabia que ele tinha sido o autor mais lido e vendido e copiado do século XV
em Latim, como o provam os números dos manuscritos e impressões, mas também num
sentido muito prático a primeira pessoa a saber Grego no Ocidente a ponto de
dominar a língua desde a Antiguidade, graças às lições do diplomata bizantino
Emanuel Chrysoloras. Não; o meu objectivo começou por ser outro. Parti
procurando nele alguém que me pudesse ajudar politicamente, e a ideia inicial
era desavergonhadamente vampírica: procurava alguém que me pudesse dar
argumentos e com o qual pudesse aprender o que era ler participação cívica e
contribuição social a partir dos clássicos Greco-Latinos que tanto amava —
procurava, ao fim ao cabo, a resposta naíf (e fazia-o bem consciente da minha
ingenuidade) para o problema da “utilidade da Antiguidade” de que ainda agora
falava, e juntava isso ao sentimento de impotência política que por todo o lado
se sente na nossa presente condição, convencido que a falha da
contemporaneidade estaria na sua incapacidade de lidar com comunidades &
participação cívica. O facto de inicialmente ter sido o meu propósito escrever
uma tese em filosofia política política tinha estas raízes. Mas porque não
Aristóteles, ou Cícero? A Antiguidade era demasiado longínqua, uma luz demasiado
forte: e todos somos Semélê. O Renascimento foi para mim como se Zeus me
tivesse salvado por não ter acedido à minha prece.
Comecei então a colocar estas questões ao meu Bruni, e
encontrei nele um amigo preparado para responder e o parceiro de discussões que
procurava. Porém, visto que é falso aquilo que quando Catilina diz, segundo
Salústio, quando afirma que a amizade é idem velle atque idem nolle,
visto que é falso que amizade seja “querer o mesmo, e não querer o mesmo”, não
posso levar a mal o facto de não ter obtido a respostas que estava à espera de
receber. Levei Nãos, levei Negas onde quer que olhava. Foi um grande exercício
de humildade ser tão constantemente e tão regularmente rebatido na minha
pesquisa. Claro que isto só podia acontecer porque jamais foi minha intenção
olhar para o passado e escutar as vozes que de lá vinham sem nada trazer de
mim. Se tivesse sido esse o meu propósito teria feito um trabalho
potencialmente mais filológico, mas duvido que me tivesse afectado pessoalmente
como afectou. Procurei nele um republicano convicto, encontrei alguém com um
espectro político muito mais problemático. Alguém que enquadrasse o problema da
Antiguidade de maneira assumidamente positiva precisamente para o poder “usar”
para fazer a triangulação com o problema dos Estudos Clássicos no século XXI, e
em vez disso encontrei alguém com uma relação com a tradição vastamente
diferente da dos manuais que eu conhecia, muito mais complexa — e muito mais
interessante.
Desesperei a certa altura. Há contudo aquele famosíssimo
verso do meu grande poeta, Friedrich Hölderlin, “Wo aber Gefahr ist, wächst das
Rettende auch” — Onde há perigo cresce também aquilo que salva. De certa forma
este ano foi a exposição temporal desse verso. O Leonardo Bruni demonstrou que
a solução para todos estes problemas que me ia atirando e com que me ameaçava
que perdesse por completo o rumo estava realmente nele mesmo, noutros textos e
noutras direcções, mas por fim nele mesmo, da mesma maneira que por vezes,
quase por milagre, uma peça de xadrez mal movida contém em si o xeque-mate que
de outra forma jamais conseguiríamos inventar. Para mim esse xeque-mate foi a
descoberta do problema da Tradição com que comecei esta apresentação.
Quando li pela primeira vez os Dialogi ad Petrum Histrum,
publicados possivelmente em 1406, fi-lo ainda formatado pela procura dos
problemas políticos que animaram Hans Baron a estudar a obra no virar do século
— procurava referências a tirania, a liberdade cívica, e outras preocupações da
época. Não me passou ao acaso que poderia ser uma obra mais profunda, mas
simplesmente não era esse o meu interesse na altura. Mas quanto mais me virava
para o problema da Tradição, para o problema da relação possível com o passado,
mais me comecei a aperceber da ousadia duma obra como esta. Trata-se, como o
nome indica, de um diálogo, ou melhor dizendo de dois diálogos travados em dois
dias consecutivos. Na primeira parte, que é o alvo do comentário que realizei
para a tese, as personagens principais que mencionei anteriormente são dois
dos titãs da história intelectual do Renascimento Florentino: Coluccio Salutati
e Niccolò Niccoli. Coluccio é o ancião, o venerando chanceler de Florença, o
discípulo de Petrarca que seguira as pisadas do mestre na sua busca de renovação
do estilo latino, do revivescer do ensino do Grego (foi ele quem convidou para
Florença Manuel Chrysoloras), conjugado com o reconhecimento dos sucessos do
sæculum, das grandes vitórias que Florença tinha atingido durante o Trecento
sob as figuras de Dante, Petrarca, e Boccaccio, que deixavam em aberto a
possibilidade de atingir as capacidades dos antigos e quiçá superá-los. Do
outro lado está Niccolò Niccoli, o grande bibliotecário e colecionador ao qual
devemos a sobrevivência de tantos textos da Antiguidade, por ele buscados,
reunidos, e perservados, mas que é criticado pelos seus contemporâneos (e pelos
nossos contemporâneos) por se limitar a ser um crítico que, restringindo a sua
aceitação àquilo que é Clássico, se transforma num ser estéril, egoísta, e
solitário. Esse mesmo Niccolò aparece nos Dialogi como a figura quase
arquetípica dum “classicismo militante”, dum tipo de pensamento que advoga que
será preciso Ou recuar aos lamentos medievais de Ubi sunt, da tristeza pelo
facto de as grandes épocas da História terem já passado, Ou então passar a uma
espécie de Romantismo, principalmente o Romantismo helénico de personagens como
Keats ou Klopstock. Alguém que crê que os antigos foram tão ardentemente
brilhantes que qualquer tentativa de os atingir não terá outro resultado que
dar o nosso nome a um mar. Esta visão cultural e temporal tem a consequência da
incapacidade de compreensão das boas coisas do tempo presente. Parece que, para
Niccolò, Dante Petrarca e Boccaccio são desastres, calamidades, porque jamais
serão Vergílio, Horácio, nem Apuleio. Que Florença não tem futuro porque jamais
será Roma.
Esta visão dicotómica parece ser ainda mais exacerbada pela
leitura da segunda parte dos Dialogi, onde, depois de ter vituperado as três
coroas florentinas na primeira parte, vemos Niccolò a ser obrigado a cantar uma
palinódia, como Estesícoro e Sócrates, em que cante os louvores dos três
grandes autores e repudie o que disse no dia anterior. Mas a leitura atenta da
obra revela que essa visão simplificada não resiste ao questionamento.
Começando pelo fim, na Segunda Parte Niccolò tenta redimir-se dos agressivos
insultos proferidos contra os três poetas, mas é extremamente dúbio, para não
dizer falso, que os argumentos que usa para o fazer sejam argumentos válidos:
eu argumento que há motivos dramáticos e literários para que ele não seja
capaz: não retira o que disse porque não quer. Um diálogo, a mais interesssante
das formas retóricas renascentistas, tem de ser entendido como um diálogo. Se
Leo Strauss nos ensinou alguma coisa, que seja isso ao menos. Quando uma
personagem profere argumentos dúbios, antes de os impugnarmos ao autor do
diálogo devemos tentar antes perceber se essa falha argumentativa se enquadra
na estrutura da obra. Nem sempre isso acontece, e nesse caso somos forçados a
levar isso em conta.
Aquilo que me apercebi ao longo desta tese, o meu argumento
filológico, é que a figura de Niccolò é já extremamente ambígua até mesmo na
primeira parte, que não é a figura anti-modernidade e pró-antiguidade, ou pelo
menos não o é sem uma elevada nuance e inqualificadamente, em suma sem que nos
vejamos forçados a questionar o que significa anti-modernidade e
pró-antiguidade. Ouvindo as palavras do Niccolò, apercebemo-nos de que, em vez
de a recusar por completo, Leonardo Bruni está a fazer as suas personagens
argumentar que é possível reconhecer virtudes à Modernidade sem que isso
signifique ceder-lhe por completo, e sem sequer reconhecer à Antiguidade o
lugar preponderante contra o qual qualquer aventura do espírito humano se tem
de julgar.
Que a Antiguidade, longe de ser o princípio e o fim, pode ser antes algo que nos retenha, algo que nos detenha, algo que nos coíba de dar o património histórico e a tradição ao desbarato em nome da evolução e da passagem dos tempos. O que a leitura cuidada das palavras do Niccolò nos aponta é, antes de mais, para uma cautela — uma temperantia, uma σωφροσύνη — que tem como principal e imediato efeito um ataque azedo à arrogância do Moderno. Nesse sentido, mais do que falar para os seus contemporâneos, para os quais, quer houvesse classicistas militantes quer não, o valor da Antiguidade não estava propriamente em causa, sou da opinião que obra como esta só podia adquirir o vulto que merece precisamente num tempo como o nosso em que os campos se inverteram. Podemos estudá-la, é certo, como um exercício de retórica ou uma discussão renascentista circunscrita aos problemas por que Florença passava no início do Quattrocento. Mas fazê-lo seria perder a oportunidade de auto-crítica vinda duma voz que, tal como nós, se debatia com a situação em que a herança esmagadora da Antiguidade era colocada paralelamente aos grandes conquistas do presente. Se, como suspeito, Leonardo Bruni ajudou os seus contemporâneos a recusar a posição de Antiquarismo radical para lhes permitir abrir os olhos à Modernidade, talvez nos possa ajudar também a nós a fazer o mesmo, e recusar a Modernidade cega em prol dum reconhecimento do valor real do estudo do mundo Greco-Romano. Sendo esta, como é, uma tese em Estudos Clássicos, creio que fiz a escolha certa ao decidir ler o Leonardo Bruni como o primeiro grande ponto de interrogação que o Renascimento colocou sobre Roma e sobre Athenas.
Que a Antiguidade, longe de ser o princípio e o fim, pode ser antes algo que nos retenha, algo que nos detenha, algo que nos coíba de dar o património histórico e a tradição ao desbarato em nome da evolução e da passagem dos tempos. O que a leitura cuidada das palavras do Niccolò nos aponta é, antes de mais, para uma cautela — uma temperantia, uma σωφροσύνη — que tem como principal e imediato efeito um ataque azedo à arrogância do Moderno. Nesse sentido, mais do que falar para os seus contemporâneos, para os quais, quer houvesse classicistas militantes quer não, o valor da Antiguidade não estava propriamente em causa, sou da opinião que obra como esta só podia adquirir o vulto que merece precisamente num tempo como o nosso em que os campos se inverteram. Podemos estudá-la, é certo, como um exercício de retórica ou uma discussão renascentista circunscrita aos problemas por que Florença passava no início do Quattrocento. Mas fazê-lo seria perder a oportunidade de auto-crítica vinda duma voz que, tal como nós, se debatia com a situação em que a herança esmagadora da Antiguidade era colocada paralelamente aos grandes conquistas do presente. Se, como suspeito, Leonardo Bruni ajudou os seus contemporâneos a recusar a posição de Antiquarismo radical para lhes permitir abrir os olhos à Modernidade, talvez nos possa ajudar também a nós a fazer o mesmo, e recusar a Modernidade cega em prol dum reconhecimento do valor real do estudo do mundo Greco-Romano. Sendo esta, como é, uma tese em Estudos Clássicos, creio que fiz a escolha certa ao decidir ler o Leonardo Bruni como o primeiro grande ponto de interrogação que o Renascimento colocou sobre Roma e sobre Athenas.
Imagem: Bernardo Rossellino,
Túmulo de Leonardo Bruni (1444-1447)
em Santa Croce, Florença
https://www.youtube.com/watch?v=rhaEC6Ziuhc
ResponderEliminarPensei que talvez gostasses da música e da banda :)
Vish.