01/06/2014

Pensamentos sobre a Páscoa («und bereiteten das Osterlamm»)


Uma continuação atrasada deste texto: Elogio do Pharaóh.

A questão que coloco aos Cristãos é a seguinte: sê-lo-íeis se Cristo não houvesse ressuscitado? Se não houvesse as cantilenas do três vezes santo, Hosanna, Hosanna, Cristo Ressuscitou, alethôs anésthe, nem nada disso. O que é para vós o Cristo? É a redenção pelo sacrifício? É a salvação de nós pelo sangue dele? O Filho do Homem sentado à direita do Pai. Mas e se assim não fosse? Se o Cristo fosse realmente aquilo e apenas aquilo que vós mesmo dissestes, se as mulheres houvessem chegado ao seu sepulchro naquela manhã de Domingo e houvessem chorado e houvessem vertido unguentos e à distância uma figura vestida de branco tivesse também ela vertido inconsoladas lágrimas? Se não houvesse salvação, se não houvesse sequer certeza de que a Morte virá um dia a ser destruída, se a fortaleza do Senhor subitamente não fosse mais inexpugnável? Se o Príncipe das Trevas eternamente lançasse o seu esgar sorrindo na direcção dos céus. Seríeis ainda assim Cristãos?

Se Cristo fosse nada mais que um homem. Ou melhor ainda, se Cristo fosse Deus tornado homem, mas as heresias fossem demasiado certas e, tornando-se homem, se tivesse tornado completamente homem, sem qualquer resquício de divindade, e sem que as palavras Santas saindo dos seus lábios fossem por quem quer que seja ouvidas. Se tivesse feito o Bem, tivesse sofrido da forma mais atroz possível, tivesse morrido. Se a história fosse apenas isso. Seríeis ainda assim Cristãos?

A beleza pura, o derrotado Bem do Cristianismo está nisso. É uma beleza que não existe mais quando o pó e o sangue se confundem com o ouro e com o incenso. A grandeza do Cristianismo, o Tao do Cristianismo, está na capacidade profundamente humana como derrotou os pagãos: derrotou os estóicos pois do grande Deus fez um homem. E sancionou a Lei da Stôa com um sacrifício excessivamente santo. O Cristo foi o primeiro que entendeu verdadeiramente a grande lei grega, que recebeu o ensinamento modificando-o: já não 'aprender pelo sofrimento', mas apenas 'pelo sofrimento'. A grande diferença sendo que já não é algo decretado pelo grande cosmos mas sim por alguém que, pregado a uma cruz, morre segundo a sua própria Lei. No seu sangue diliu-se o paradoxo de Eutifronte.

O grande erro jaz no instante em que julgamos que o sofrimento irá resultar nalguma coisa. Nietzsche entendeu-o, é o Grande Ressentimento. Dizemos nós: Sofremos para. Sofreu por. É o pensamento mais abjecto que uma mente humana alguma vez concebeu: a verdade é que o sofrimento não serve para nada, e enoja-me quem às vítimas se refere nesses termos. A história da Igreja nada mais é que a recapitulação dos theológos de Job: dando sentido ao sofrimento pela vida eterna, pelos vindouros, pela glória de Deus. Deus, como Diana Soberana dos Vales, não se compraz com o sofrimento alheio: jamais alguém que sofreu o que ele sofreu poderia desejar a outrem que sofresse da mesma forma. Não há glória na dor. 

verdadeiro atheísmo ama a Deus. Ama a Deus porque ama a humanidade, cada homem e mulher individualmente, e Deus fez-se homem. Aqui é força ouvir: fez-se homem. Não temporariamente, não esporadicamente, mas fez-se homem. Deus foi um homem. Esse homem morreu, e Deus com ele, porque ele. Continuamos a amá-lo. Da sua morte, como da morte dum amigo, a morte dum irmão, nada poderá vir de bom. A última coisa que poderia dela advir seria a nossa redenção: quem aceitaria salvar-se à custa do sacrifício mortal do nosso irmão? (Essa pessoa não mereceria salvar-se.) Nós não podemos aceitar essa redenção, mesmo que se desse: temos que recusar até mesmo a sua possibilidade. Aceitá-la seria aceitar, seria querer a morte do Cristo. Eu não a quero. Foi gratuita, malvada, cruel. Com Maria Madalena, com Maria mãe de Tiago, e com Salomé também eu choro, é só e basta. Mas ser Cristão certamente não será nada isso.

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