03/02/2011

O mundo da arte, o mundo da futilidade

O mundo de coisas feito pelo homem, o artifício humano construído pelo homo faber, só se torna uma morada para os homens mortais, um lar cuja estabilidade suportará e sobreviverá ao movimento continuamente mutável das suas vidas e acções, na medida em que transcende a mera funcionalidade das coisas produzidas para o consumo e a mera utilidade dos objectos produzidos para o uso. A vida no seu sentido não biológico, o tempo que transcorre entre o nascimento e a morte do homem, manifesta-se na acção e no discurso, que têm em comum com a vida o facto de serem essencialmente úteis A «realização de grandes feitos e o dizer de grandes palavras» não deixarão qualquer vestígio, qualquer produto que possa perdurar depois de passar o momento da acção e da palavra falada. Se o animal laborans precisa do auxílio do homo faber para atenuar o seu labor e minorar o seu sofrimento, e se os mortais precisam do seu auxílio para construir um lar na terra, os homens que agem e falam precisam da ajuda do homo faber na sua mais alta capacidade, isto é, a ajuda do artista, de poetas e historiógrafos, de escritores e construtores de monumentos, pois, sem eles, o único produto da sua actividade, a história que eles vivem e encenam, não poderia sobreviver. Para que venha a ser aquilo que o mundo sempre se destinou a ser — uma morada para os homens durante a sua vida na terra — o artifício humano deve ser um lugar adequado à acção e ao discurso, a actividades não só inteiramente inúteis às necessidades da vida, mas de natureza inteiramente diferente das várias actividades da fabricação mediante a qual são produzidos o mundo e todas as coisas que nela existem. Não é necessário que escolhamos aqui entre Platão e Protágoras, nem decidamos se é o homem ou um deus que deve ser a medida de todas as coisas; o que é certo é que a medida não precisa de ser nem a compulsiva necessidade da vida biológica e do labor, nem o «instrumentalismo» utilitário da fabricação e do uso.

Hannah Arendt. A Condição Humana, Roberto Raposo (trad). Relógio d'Água: 2001.

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