Fere-me constantemente a frequência com que conversas ou linhas de raciocínio assumem perante a literatura alemã, em particular aquela de 1871 a 1939 do Segundo Reich à Segunda Grande Guerra, uma pose melodramática e exterior que se propõe tentar perceber os podres da Alemanha, ou na melhor das hipóteses de condescendentemente tentar compreender os erros da Alemanha, e de que modo uma civilização pôde cometer tamanhos males. Isto dizemos nós, escandalizados, enquanto olhamos de fora para dentro. Urge rememorar, porém, que se trata de algo muito maior, e que essa atitude de pudor ofendido é criminosa. Lembro o poema do Pessoa Eros e Psique "Conta a lenda que dormia / Uma Princesa encantada / A quem só despertaria / Um Infante, que viria / De além do muro da estrada. / [...] / E, inda tonto do que houvera, / À cabeça, em maresia, / Ergue a mão, e encontra hera, / E vê que ele mesmo era / A Princesa que dormia."
Passa-se exactamente o mesmo: não é por qualquer tendência europeísta que eu possa ter que deixa de ser verdade que não foi "A Alemanha" quem fez a Shoah: foi a Europa, ou o ideal cultural a que a Europa almejou sempre, e compreender isso implica aceitar o fardo da culpa (haverá fardo maior? compreenderei o que estou a pedir? ouso um Não silencioso) sem uma tirada melodramática de berros e e culpa auto-atribuída: aliás, a única resposta é não responder (o silêncio: Theresienstadt), saber que ao tentar perceber estou a fazer auto-análise, estou a procurar os meus próprios podres.
Pois a Alemanha é um macrocosmos da alma de cada pessoa para quem a cultura é considerada um bem maior. É olhar para as nossas maiores esperanças e ver já um dos resultados possíveis: como quem olha para um familiar e não para um estrangeiro. Cabe-nos isso, cabe-nos aceitar ser Allemani, e não practicar essa cisão condescendente para com a história com que temos de lidar quando quer que tocamos no que nos está no coração, tudo o que de nosso é religioso e científico, filosófico e cultural. As grandes obras alemãs não podem ser lidas como fábulas moralizantes enaltecidas, "não faças assim", ao contrário do que frequentemente ouço (e mesmo saindo da literatura, o recente filme Das weiße Band, é um perfeito exemplo do mesmo crime).
Por muito fácil que seja explaining away a Montanha Mágica como uma alegoria Alemanha —que é—, onde muitas opções de futuro se propõem em casamento ao jovem Castorp-Alemanha, aqueles sedutores futuros não se lançam apenas ao jovem alemão, mas sim a qualquer povo que se proponha a si mesmo aquilo que Hans recebe: um mundo à beira de desabar, a paz senescente dum iluminado futuro por-vir; ou a violência do terror, a bondade do mal, a crueldade que conquista o humano. Ou ler o delírio da subjugação da volição artística ao poder estatal, secular e seguro, providencial, da Morte de Vergílio de Hermann Broch principalmente por tal ser tal como aconteceu na Alemanha nazi— quão desviado é isto, que possibilidades de crescimento civilizacional isso não recusa? Para perceber basta pensar em Nietzsche — como pensar em Nietzsche como um alemão??
Mas tudo isto não aconteceu, então?, as histórias são falsas, e a Alemanha (seja ela o que for), não lhes é central? Claro que é; tal como os seus autores o fizeram. Mas nós estamos mais longe, e sabemos que longe de ser uma "peste germânica", aquilo que a Alemanha sonhara para si mesma não foram os sonhos, ou não foram só, dum povo corrompido pelos «pecados dos pais»; antes pelo contrário, foram talvez os mais grandiosos sonhos de toda a Europa, nossos incluídos. Urge ler-nos a nós mesmos e não "àquele povo germânico, estranho". Teríamos sido a Alemanha se tivéssemos ousado. Como então lidar então com a percepção de que o nosso ideal de ousadia seria talmente podre, como o substituir, como sobreviver ao degenerar absurdo do sonho em psicose?
(Sobre este tema, na minha lista de leitura, que cresce como a peste. Do mesmo autor que a genial secção alemã deste livro.)
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