17/02/2011

Notas sobre o Podre

Fere-me constantemente a frequência com que conversas ou linhas de raciocínio assumem perante a literatura alemã, em particular aquela de 1871 a 1939 do Segundo Reich à Segunda Grande Guerra, uma pose melodramática e exterior que se propõe tentar perceber os podres da Alemanha, ou na melhor das hipóteses de condescendentemente tentar compreender os erros da Alemanha, e de que modo uma civilização pôde cometer tamanhos males. Isto dizemos nós, escandalizados, enquanto olhamos de fora para dentro. Urge rememorar, porém, que se trata de algo muito maior, e que essa atitude de pudor ofendido é criminosa. Lembro o poema do Pessoa Eros e Psique "Conta a lenda que dormia / Uma Princesa encantada / A quem só despertaria / Um Infante, que viria / De além do muro da estrada. / [...] / E, inda tonto do que houvera, / À cabeça, em maresia, / Ergue a mão, e encontra hera, / E vê que ele mesmo era / A Princesa que dormia."

Passa-se exactamente o mesmo: não é por qualquer tendência europeísta que eu possa ter que deixa de ser verdade que não foi "A Alemanha" quem fez a Shoah: foi a Europa, ou o ideal cultural a que a Europa almejou sempre, e compreender isso implica aceitar o fardo da culpa (haverá fardo maior? compreenderei o que estou a pedir? ouso um Não silencioso) sem uma tirada melodramática de berros e e culpa auto-atribuída: aliás, a única resposta é não responder (o silêncio: Theresienstadt), saber que ao tentar perceber estou a fazer auto-análise, estou a procurar os meus próprios podres. 

Pois a Alemanha é um macrocosmos da alma de cada pessoa para quem a cultura é considerada um bem maior. É olhar para as nossas maiores esperanças e ver já um dos resultados possíveis: como quem olha para um familiar e não para um estrangeiro. Cabe-nos isso, cabe-nos aceitar ser Allemani, e não practicar essa cisão condescendente para com a história com que temos de lidar quando quer que tocamos no que nos está no coração, tudo o que de nosso é religioso e científico, filosófico e cultural. As grandes obras alemãs não podem ser lidas como fábulas moralizantes enaltecidas, "não faças assim", ao contrário do que frequentemente ouço (e mesmo saindo da literatura, o recente filme Das weiße Band, é um perfeito exemplo do mesmo crime).


Por muito fácil que seja explaining away a Montanha Mágica como uma alegoria Alemanha —que é—, onde muitas opções de futuro se propõem em casamento ao jovem Castorp-Alemanha, aqueles sedutores futuros não se lançam apenas ao jovem alemão, mas sim a qualquer povo que se proponha a si mesmo aquilo que Hans recebe: um mundo à beira de desabar, a paz senescente dum iluminado futuro por-vir; ou a violência do terror, a bondade do mal, a crueldade que conquista o humano. Ou ler o delírio da subjugação da volição artística ao poder estatal, secular e seguro, providencial, da Morte de Vergílio de Hermann Broch principalmente por tal ser tal como aconteceu na Alemanha nazi quão desviado é isto, que possibilidades de crescimento civilizacional isso não recusa? Para perceber basta pensar em Nietzsche como pensar em Nietzsche como um alemão??

Mas tudo isto não aconteceu, então?, as histórias são falsas, e a Alemanha (seja ela o que for), não lhes é central? Claro que é; tal como os seus autores o fizeram. Mas nós estamos mais longe, e sabemos que longe de ser uma "peste germânica", aquilo que a Alemanha sonhara para si mesma não foram os sonhos, ou não foram só, dum povo corrompido pelos «pecados dos pais»; antes pelo contrário, foram talvez os mais grandiosos sonhos de toda a Europa, nossos incluídos. Urge ler-nos a nós mesmos e não "àquele povo germânico, estranho". Teríamos sido a Alemanha se tivéssemos ousado. Como então lidar então com a percepção de que o nosso ideal de ousadia seria talmente podre, como o substituir, como sobreviver ao degenerar absurdo do sonho em psicose?


(Sobre este tema, na minha lista de leitura, que cresce como a peste. Do mesmo autor que a genial secção alemã deste livro.)

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