19/06/2012

Bach, a Rússia, e a excomunhão de Kazantzakis

É precisamente isto que eu te dizia, e é inquietante apanhá-lo escrito agora, sobre Bach, sobre as Paixões, sobre a preservação do sofrimento nos oratoria, enquanto que simultaneamente há muito da theologia e do dogma que se perde ou que está apenas implícito. Isto é também verdade pelo facto da maior parte da theologia ser exegése, manifestamente brilhante, mas ainda assim exegése: os evengelhos, principalmente se excluirmos o de João (e não será coincidência que seja sobre esse que se baseie a interpretação do Cacciari do ícon e não a do afresco). O Christianismo continua a fascinar não pela estrutura de super-magnitude, do "simbolismo sempre mais abstracto e formal" mas sim pelo facto de  continuarmos até hoje a ouvir o "grito de abandono" que Christo ruge a seu Pai quando o pregam à cruz. O facto de da natureza humana fazer parte o sentirmos essa violência e essa dor apenas nos torna mais propensos a compreender um deus cuja parousia consista principalmente na sympatheia desse abandono. O triumpho do Christianismo acontece de cada vez que ouvimos a theologia da cruz de S. Paulo, em vez das divagações plotinianos e augustinianas sobre a relativização do mal. O Catholicismo vence, e quer isto dizer, humaniza-se, de cada vez que escolhe o sofrimento e a cruz em lugar da glória e das trombetas. Quando Kazantzakis no seu livro A Última Tentação de Christo mostrou um Christo humano e cheio de dúvidas, o Christo que em Golgotha suplica que se lhe seja retirado o cálice, a Igreja Orthodoxa Grega considerou-o anathema. A Cathólica excomungou-o. Mas é este o perfeito exemplo dos erros de cada uma respectivamente: o dogmatizar que o Filho é cem por cento humano e recusar-se a tirar daí as conclusões. É por causa desse dogma, que ao contrário de muitos outros por geniais que sejam tem provas textuais nos Evangelhos, que continuará a haver christãos muito para além do dia em que a Igreja for derrubada: é uma fé violenta, é aquilo que se ouve quando Deus se recusa a responder ao próprio Deus, ao contrário do ellóquio sublime do ícone do Rublëv, a única portanto experiência possível de Deus para quem não é capaz de ouvir Sua voz: o silêncio.

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