o que chamamos vontade é um misto
sedutor de romanticismo do século XIX em pó e das theologias irmãs de dois mundos diferentes.
uma delas é a theologia nietzscheana, esse flor doente que,
recuperando a noção de vontade medieval aplicada a deus e
atribuindo-no-la, foi quase bem-sucedida na realização do pior
pesadelo da humanidade, quase que conseguindo transformar-nos em
deuses a nós, e muito o desejando. a outra theologia é essa medieval noção demiúrgica
que quis libertar deus de tudo o que o pudesse constringir mas ao
mesmo tempo recusou a sacral pergunta de Parménides e quis dar-se de
conta que existia: como não
podia conciliar a existência de si com a absoluta independência do
seu criador, em suma, como tinha dificuldade em perceber por que
razão ele seria criador,
viu-se forçada a segurar-se sobre o abysmo: deus não precisava de
nós para nada, mas criou-nos enquanto acto de pura vontade. a esta
pura vontade se chamou também amor. deus criou-nos por amor. isto é
blasphemo. é o maior insulto que se poderia tecer àquela outra
philosophia que em tempos se inaugurou enquanto acto de amor. quando
Sócrates diz que não possui outra sabedoria que não seja a do
amor, arriscamo-nos a confundirmo-nos, filhos como somos também de
Jerusalém. mas é preciso compreender de que modo são radicalmente
díspares modos de amar. Sócrates não ama gratuitamente, não ama sem porquê: o amor de
Sócrates é dirigido precisamente àquilo de que precisa, de que sente a falta. amar é
precisar de algo, é sentir-lhe a sua ausência. é um reconhecimento humano.
e é um reconhecimento acima de tudo que não pertence à vontade.
para o grego a vontade é algo racional, um processo orientado melhor
ou pior pelo λόγος
mas
que se pauta pela βούλευσις
e
que termina na προαίρεσις - uma deliberação pensada, rematada pela decisão:
acima
de tudo, não é arbitrário. porque também o amor não é
arbitrário, assim como não é voluntário (e quem de nós o
negaria? tenho as minhas razões para me ter apaixonado por ti, mesmo que nem eu as compreenda ou sequer aceite, aliás se te amei não foi por o ter querido, teria sido muito
menos destruidor não o ter feito), mas é sim uma conclusão de que
aquilo que tu tens é algo que eu preciso para me completar. há todo um palácio de teleologia por detrás do amor pagão que faz com que
seja impossível que o grego se entregue por completo a quem quer que
seja, ou ao que quer que seja: não há pessoa ou ideia que valha
mais que a traição do seu fim estabelecido. um pagão não
protegeria um amigo assassino, pois o assassinato implicaria uma
violação daquele fim em graça do qual a amizade existira; um
pagão não sancionaria uma ideia assassina, pois o ter assassinado
implicaria uma violação daquela finalidade pela qual essa ideia
fora sequer necessitada. é por tudo isto que a noção de graça é
assustadora, e é por isto que a philosophia não fôra, mas se tornou numa actividade de
essência atheia, não porque tenha de prescindir de deus mas porque
tal como nas nossas relações civis não podemos deixar de nos
indignar com a prepotência de quem diz que faz isto porque sim,
assim também a philosophia recusa-se a aceitar essa resposta –
venha ela de Quem vier. para um pagão, habituado a dirigir a sua
theologia ao Λόγος,
habituado
a amar aquilo cujo conhecer seria precisamente o responder às perguntas do ser, para esse pagão a theologia cristã, a de Paulo, Agostinho, Luthero, Nietzsche, não poderia deixar de ser o mais plebeu dos insultos; e o
que diríamos da graça, esse maior instrumento de injustiça alguma
vez excogitado, onde uns se escolhem outros se condenam sem outra
razão
que não inexcrutáveis, ininterrogáveis desígnios. a philosophia foi
religiosa na antiguidade, onde os archotes do divino e da razão eram
um e o mesmo. quando se separaram, a philosophia teve que seguir tristemente em frente. mas nós somos a mais theológica das
idades: imitamos o deus nas palavras e nas acções, e na natureza do
nosso pensamento. mas é preciso não ser deste idade, e calar: como com os loucos, a discussão
não é possível: calar, e prosseguir gentil e firmemente em
direcção ao amor que é o nosso.
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