13/05/2012

amor pagão e amor cristão

o que chamamos vontade é um misto sedutor de romanticismo do século XIX em pó e das theologias irmãs de dois mundos diferentes. uma delas é a theologia nietzscheana, esse flor doente que, recuperando a noção de vontade medieval aplicada a deus e atribuindo-no-la, foi quase bem-sucedida na realização do pior pesadelo da humanidade, quase que conseguindo transformar-nos em deuses a nós, e muito o desejando. a outra theologia é essa medieval noção demiúrgica que quis libertar deus de tudo o que o pudesse constringir mas ao mesmo tempo recusou a sacral pergunta de Parménides e quis dar-se de conta que existia: como não podia conciliar a existência de si com a absoluta independência do seu criador, em suma, como tinha dificuldade em perceber por que razão ele seria criador, viu-se forçada a segurar-se sobre o abysmo: deus não precisava de nós para nada, mas criou-nos enquanto acto de pura vontade. a esta pura vontade se chamou também amor. deus criou-nos por amor. isto é blasphemo. é o maior insulto que se poderia tecer àquela outra philosophia que em tempos se inaugurou enquanto acto de amor. quando Sócrates diz que não possui outra sabedoria que não seja a do amor, arriscamo-nos a confundirmo-nos, filhos como somos também de Jerusalém. mas é preciso compreender de que modo são radicalmente díspares modos de amar. Sócrates não ama gratuitamente, não ama sem porquê: o amor de Sócrates é dirigido precisamente àquilo de que precisa, de que sente a falta. amar é precisar de algo, é sentir-lhe a sua ausência. é um reconhecimento humano. e é um reconhecimento acima de tudo que não pertence à vontade. para o grego a vontade é algo racional, um processo orientado melhor ou pior pelo λόγος mas que se pauta pela βούλευσις e que termina na προαίρεσις - uma deliberação pensada, rematada pela decisão: acima de tudo, não é arbitrário. porque também o amor não é arbitrário, assim como não é voluntário (e quem de nós o negaria? tenho as minhas razões para me ter apaixonado por ti, mesmo que nem eu as compreenda ou sequer aceite, aliás se te amei não foi por o ter querido, teria sido muito menos destruidor não o ter feito), mas é sim uma conclusão de que aquilo que tu tens é algo que eu preciso para me completar. há todo um palácio de teleologia por detrás do amor pagão que faz com que seja impossível que o grego se entregue por completo a quem quer que seja, ou ao que quer que seja: não há pessoa ou ideia que valha mais que a traição do seu fim estabelecido. um pagão não protegeria um amigo assassino, pois o assassinato implicaria uma violação daquele fim em graça do qual a amizade existira; um pagão não sancionaria uma ideia assassina, pois o ter assassinado implicaria uma violação daquela finalidade pela qual essa ideia fora sequer necessitada. é por tudo isto que a noção de graça é assustadora, e é por isto que a philosophia não fôra, mas se tornou numa actividade de essência atheia, não porque tenha de prescindir de deus mas porque tal como nas nossas relações civis não podemos deixar de nos indignar com a prepotência de quem diz que faz isto porque sim, assim também a philosophia recusa-se a aceitar essa resposta – venha ela de Quem vier. para um pagão, habituado a dirigir a sua theologia ao Λόγος, habituado a amar aquilo cujo conhecer seria precisamente o responder às perguntas do ser, para esse pagão a theologia cristã, a de Paulo, Agostinho, Luthero, Nietzsche, não poderia deixar de ser o mais plebeu dos insultos; e o que diríamos da graça, esse maior instrumento de injustiça alguma vez excogitado, onde uns se escolhem outros se condenam sem outra razão que não inexcrutáveis, ininterrogáveis desígnios. a philosophia foi religiosa na antiguidade, onde os archotes do divino e da razão eram um e o mesmo. quando se separaram, a philosophia teve que seguir tristemente em frente. mas nós somos a mais theológica das idades: imitamos o deus nas palavras e nas acções, e na natureza do nosso pensamento. mas é preciso não ser deste idade, e calar: como com os loucos, a discussão não é possível: calar, e prosseguir gentil e firmemente em direcção ao amor que é o nosso.

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