31/01/2011

Vendo o Fogo da Voz Viva



Há muito tempo atrás escrevi um post aqui a que chamei Ver a Linguagem. Hoje li finalmente a passagem que mo ilustra:


Durante a grandiosa manifestação física da presença de Deus no Sinai, o povo de Israel participa intensamente na cena. Primeiro quer precipitar-se em direcção do monte, depois retrais-se assustado pelas explosões de fogo e pela potência da voz de Deus. No capítulo quarto do livro Devarìm / Deuterónimo, revela-se um detalhe daquele momento. Deus adverte no versículo nove: «Não esquecerás as palavras que viram os teus olhos».

Mas nós sabemos que nas encoastas do Sinai os hebreus escutaram palavras, não as viram. Poucos versículos mais à frente lemos: «E falou-vos Iod / Deus de dentro do fogo: a voz das palavras escutastes e imagem não vistes, excepto uma voz» (Dt 4,12).

Ainda aqui aparece uma voz que se vê, além de escutar. A escritura aqui não se engana nos verbos, mas narra uma experiência prodigiosa já descrita no livro Shmòt / Êxodo, onde está escrito que o povo vê vozes, raios e a voz da trombeta e o monte que fumega. Neste versículo, o 18 do capítulo 20, misturam-se sob o único verbo «ver» coisas que dizem respeito à vista e outras que deveriam ser do ouvido. O que significa?

Dois mestres do Talmud interrogaram-se sobre isto, produzindo respostas diferentes. Rabbi Ishmaêl procura o sentido razoável e explica que povo via aquilo que era visívil e ouvi aquilo que era audível. Rabbi Akivà pelo contrário conserva o sentido literal e explca que viam a voz de Deus feita de palavras de fogo. Em apoio refere o versículo do salmo 29 onde se lê: «A voz de Iod / Deus solta chamas de fogo» (SL 29,7), ou seja, forma com o seu sopro uma escritura indandescente.

É isto que viam os hebreus no Sinai: ali a revelação manifesta-se a temperaturas altíssimas. Rabbi Akivà com o escrúpulo de se ater ao sentido literal, ensina que a verdadeira audição, quando é intensa, coincide com a visão. Quem está profundamente atento tem a impressão de ler, não só de ouvir, as palavras que escuta. É uma experiência que toca ao de leve a tensão mística.

No deserto a voz de Deus é tão potente, ruidosa, que confunde os sentidos, provoca vertigens no ouvido interno, que na anatomia se chama labirinto.

Aquela escuta ninguém poderia suportar. À distância de segurança, através da escritura plana de um livro nós somos avisados: «Não esquecerás as palavras que viram os teus olhos» (Dt 4,9). Hoje aquelas palavras somente as podemos ver lendo a experiência física daquelas aventuras sagradas, a salvo daquela voz escaldante que desordenava os sentidos de quem estava inteiramente, em carne e osso e nervos, à escuta.


Erri de Luca. Caroço de Azeitona, João Pedro Brito (trad). Assírio & Alvim: 2002


Imagem:  El Greco.  Pentecost. 1600. Museo del Prado.

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