25/01/2011

Uma Seta de Fogo

Formosura Que Excedeis!

   Formusura que excedeis
mesmo as grandes formosuras!
Sem ferir, sofrer fazeis,
e sem sofrer desfazeis
o amor das criaturas.
   Oh, laço que assim juntais
duas coisas tão díspares!
não sei porquê vos soltais,
pois atado força dais
pra ter por bem os pesares.
   Quem não tem ser vós juntais
com o Ser que não se acaba;
sem acabar acabais,
e sem ter que amar amais,
engrandeceis vosso nada.


¡Oh hermosura que excedéis!

   ¡Oh hermosura que excedéis
a todas las hermosuras!
Sin herir, dolor hacéis,
y sin dolor deshacéis
el amor de las criaturas.
    ¡Oh ñudo que ansí juntáis
dos cosas tan desiguales,
no sé por qué os desatáis,
pues atado fuerza dais
a tener por bien los males!
   Juntáis quien no tiene ser
con el Ser que no se acaba;
sin acabar acabáis,
sin tener que amar amáis,
engrandecéis vuestra nada.

Santa Teresa de Ávila. Seta de Fogo - 22 poemas (José Bento, trad). Assírio & Alvim: 2011.


Ao colar o texto original deste poema, resolvi procurar online para não ter de o transcrever por completo, e depois comparei as duas edições para estabelecê-lo pela edição da A&A. Até aqui nada de novo. Porém: não terá escapado ao leitor do poema que, por bom que o poema seja, não se justificaria se não fosse pela absolutamente brilhante última estrofe. O ser mortal com o Ser divino, a unificação de um com o outro; a redução de Deus (cf: Isaac Luria) pela pedra de toque do ser já reduzido dos mortais, conciliado com a negação do amor (ou, melhor dizendo, o amor negativo) da tradição mística, culminando tudo no paradoxo da glorificação do nada: "engrandecéis vuestra nada": um vazio glorioso (Ein Sof), glorificado pela memória do antigo deus evanescido. Tudo isto é maravilhoso: mas há muitas edições (algo que qualquer pessoa pode comprovar) que reduzem a maravilha do última verso a um "nuestro nada". O Nada de Deus é desintegrado na visão tradicional do Nada do humano: a visão do Ecclesiastes etc, que por humana que seja, porquanto transforma o humano na inconsequencialidade cósmica à qual apenas o Divino pode dar razão e justificação, não só translada o poema para a esfera do pensamento religioso 'tradicional', como também coloca a teologia negativa à mercê das consequências destructivas da morte de Deus, ao invés de, indo ao encontro dessa morte, florescer.

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