Talvez o que a Weil signifique para a Vida acabe por ser o mesmo que o Antigo Testamento significa para Lutero. No seu tratado Sobre a Liberdade do Cristão, Lutero admite que os dois evangelhos possam ter sentidos antitéticos e complementares: o Antigo simbolizaria a Lei à qual total obediência era impossível. Quando confrontado com as exigências morais do Decálogo e dos profetas, é impossível ao ser humano não se sentir destruído pela infinita superioridade de Deus. Seria portanto um evangelho cujo objectivo era reduzir o humano ao seu mais ínfimo, destruir-lhe por completo o orgulho e a sobérbia. E nessa altura, após lhe haver sido demonstrada a sua insuficiência ontológica, Deus oferece o Novo Testamento. Mas o que é o Novo Testamento? Lutero resume-o simplesmente em amor de graça. O humano é ínfimo, não consegue cumprir aquilo que Deus dele exige (no AT), e por conseguinte nada merece. Ainda assim Deus ama-o. E esse amor de Cristo é aquilo de que o humano pode ter a certeza, por menos merecedor dele que se sinta.
Lutero conta a história de como se costumava auto-detestar na sua culpa da sua insuficiência, como por muito que se confessasse ritualmente nunca se sentia verdadeiramente limpo. Até que falou com um monge seu confidente que lhe pediu que compreendesse que quando Deus, pela boca do sacerdote, diz os teus pecados foram perdoados, Lutero tinha de aceitar a verdade desse perdão: Cristo suplanta o Decálogo como o Novo completa o Velho (então Mateus 5:17, μὴ νομίσητε ὅτι ἠλθον καταλῦσαι τὸν νόμον ἢ τοὺς προφήτας· οὐκ ἦλθον καταλῦσαι ἀλλὰ πληρῶσαι, Não pensem que vim para dissolver a Lei ou os Profetas; não vim para os dissolver mas para os completar.)
Assim do mesmo modo me parece que la Weil, por muito marcionista que frequentemente pareça (marcionismo é a heresia cristã de que o Antigo Testamento é obra duma espécie de Arquidemónio, enquanto que o Novo é a verdadeira palavra de Deus), acaba por poder 'funcionar' enquanto um Novo Antigo Testamento: as obrigações morais, a intransigência em ferida dos seus imperativos de auto-redução, tudo isso parece oferecer um sistema ético paralelo ao oferecido no Antigo Testamento, com a diferença que lá era uma ética prática, e aqui é uma ética teológica ou existencial. Mas finalmente, ambas coincidem: uma palavra divina impossível de ser humanamente vivida, muito embora, se efectivamente vivida, fosse possivelmente a mais "pura" vida alguma vez vivida; palavra essa que, ainda assim, porém, por absoluta que seja —ou precisamente por ser talmente Absoluta— se subsome na Agapê.
Nota pessoal, tenho de voltar a pôr aqui links do youtube ou poemas do Wallace Stevens, que isto já começa a ser teologia a mais e não tarda nada esqueço-me de que sou assim a modos que mais ou menos ateu.
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