não é necessário considerar o estranho
Evangelho de Judas para sentir que o ódio que lhe é a Judas dirigido o
atinge sempre obliquamente: não deixa de ser cumprido e necessário,
pensamos, mas há sempre algo de inquietante na necessidade mútua
imputada entre as figuras dúplices de Christo e de Judas. o
evangelho que leva o seu nome, como convém à tradição gnóstica
onde se insere, lê a relação priveligiada entre Judas e Jesus dum
lado à luz da iniciação selectiva (algo que é lembrado quando
lemos “muitos são os chamados, poucos os eleitos” (Mt 22:14), frase
eternamente reminiscente da mais antiga "muitos são os que levam o
thýrsos, poucos os bacchantes" (Phaedon, 69c-d)), iniciação pela qual a Judas teriam
sido revelados mystérios do reino dos céus desconhecidos aos
próprios apóstolos, um engenho frequente nos textos que continuam por uma via gnóstica a tradição evangélica, como por exemplo no
dito Evangelho Secreto de Marcos, onde do mesmo se trata; segundo o Evangelho de Judas, então, a
natureza dos ditos revelados pertenceria a uma doutrina abjectamente
gnóstica: em poucas palavras, sendo o corpo e o mundo origem e fonte
de corrupção, Judas não pode deixar de ser benemérito de Deus se
o “libertar” desta tabes. Jesus daria então o seu consentimento
e aprovação ao acto de Judas (que aliado à libertação do corpo
cumpriria os ditos dos profetas). Claro que para mim é difícil
encontrar neste testemunha da lenda algo que seja capaz de nos
auxiliar a compreender aquele sentimento inquietante que sentimos
quando confrontados com aquele que Dante faz sofrer no mais profundo
inferno mastigado perpetuamente pelas mandíbulas do próprio
Lúcifer. Tudo aqui parece contaminado pelo gnosticismo, essa maior
das pestilências que alguma vez contagiou o pensamento theológico.
Aquilo que nos mais toca é a afinidade inegável, aliás a frequente
própria identidade entre Christo, o cordeiro sacrificial de Deus, e
Judas o traidor. É da natureza de Jesus ser traído, ser assassinado
em sacrifício de sangue; mas enquanto os mártyres e todos aqueles
que se devotassem a “cumprir a vontade de Deus” (fiat voluntas
tua), Judas recebe as terríveis palavras “tudo isto terá que
acontecer. mas ai do homem por quem o filho do Homem for traído.
seria melhor para esse homem não ter nascido.” (Marcos 14:21) Chamas em vez de
honras, solidão e devastação em vez da felicidade dos
bem-aventurados. O erro do Evangelho de Judas é querer assumir que
ele será recompensado, enquanto que é precisamente por ele ser o
mais-amado dos apóstolos que aceita sobre si o fardo de Morte que é tanto a traíção e a negação do filho do Homem quanto o castigo que a isso vem associado. Assim como Deus de tal
modo amou a raça humana que lhe ofereceu em sacrifício aquilo que
de mais precioso tinha, o seu filho, assim também Judas de tal modo
amou o Christo que para a sua felicidade sacrificou o seu bem mais
preicioso, a sua alma. Está escrito: “Aquele que tentar ganhar a
sua alma perdê-la-á, e aquele que a perder em meu nome ganhá-la-á.” (Lucas 9:24) A virtude de Judas é então o amor absolutamente aniquilado e
gratuito que faz com que se nos surja mais fulgente do que todos os
mártyres que alguma vez viveram; pois eu sempre tive dificuldades
em entender a instituição do martýrio: para alguém que tenha fé,
a escolha do martýrio é justifica-se principalmente não num campo
de amor mas num de utilitarismo: sofrer agora em troca de recompensas
celestes, ou joiar-se agora brevemente em troca de punição eterna;
a escolha parece matemàticamente simples, e óbvia para quem possua a
capacidade prospectiva para a tomar: o mártyr parece quase um
jogador de casino perito: o martýrio como nos é contado nada tem de sacrifício real. Judas é aquele que escapa a esta lógica,
precisamente por ser fundamentalmente antignóstico ou
anti-maniqueísta. Ele sabe que o resultado do seu amor, que o fruto
que para si tomará, o cálice das suas boas-acções gratuitas será
tormentos, mas como pode ele deixar de amar? como pode deixar de
trair? por amor do traído. isto sim um acto sacrificial, sem
qualquer sombra de interesse ou de calculismo. compreendemos então
de que modo a acção de Judas se assemelha à de Christo, e de que
modo percebemos como esta figura tutelar do nosso
atheísmo escolhe, confrontada por um lado com os ofício de fé, com
a religião, e com a própria existência na alma de fé, por amor
opta delas prescindir e assumir o confronto invencível com o vazio.
por amor. se Judas foi capaz de trair mesmo sabendo o que o esperava,
e desse modo se tornou benemérito do mesmo deus que o odiou, talvez
nós devamos assumir o papel de, como os bons pagãos da Divina
Commedia, afirmar que “sanza
speme vivemo in disio” (Inf. IV.42), porque amamos alguém que não nos poderá
retribuir o nosso amor, por não existir, por o nosso amor estar a
ser desepejado no vácuo do pensamento. O “sanza speme” é
importante principalmente para contrariar o erro duplo da Weil e de
Adrian Leverkhün, cujas negações, ou cujos theologias apophânticas
pressupõem sempre profundamente, no mais fundo mais recôndito (aquilo a que os Gregos chamavam μυχός), um momento de superação através
da epiphania celeste que diz a palavra da salvação àqueles que
ousaram chegar à Ultima Thule dessa fé nihilista; essa fé ultima tem que ser abolida, como mauvaise fois que é e que não mais é que
a dúvida de Pascal e de Kierkegaard que se permite os concelebrados
saltos de fé. senza speme con speme é contraditório, e o primeiro
sai nefariamente anulado, com prejuízo para a honestidade intelectual. Comemorando é o “vivemo in
disio”, isto é em amor, porque é de igual modo propugnando contra
o énnui posmoderno, os gritos de saudades de Deus (como Nietzsche
falou da sombra de Deus) contra quem se lamente por entre teses de
textos literários que Deus está morto ai mas que pena. A verdade do
dito de Nietzsche não se compreende na philosophia ou no énnui mas
sim na mýstica.
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