25/10/2009

Sobre o Romantismo e Mimesis

Os poetas românticos tentaram quebrar com a teoria poética mimética que, em variegadas formas e modulações permaneceu o fundamento principal da criação poética até ao neo-classicismo. Uma teoria de arte que se assuma como imitação foi entendida como se fosse diametricamente oposta à noção completamente individualista que foi seguida pelos poetas românticos: estes acreditavam que ao escrever poesia não estavam a imitar nem a realidade nem os autores clássicos, mas preferiam ao invés disso entender os poetas, os indivíduos que escreviam, como catalizadores, a imagem é de Shelley na Defense of Poetry, o material bruto que, em contacto com o "Espírito", a "Natureza", ou qualquer que fosse o nome atribuído a essa noção de indomável physis, e que gerava a reacção chamada Poesia sem que houvesse qualquer efeito no poeta propriamente dito.

Poetry, in a general sense, may be defined to be “the expression of the imagination”: and poetry is connate with the origin of man. Man is an instrument over which a series of external and internal impressions are driven, like the alternations of an ever-changing wind over an Æolian lyre, which move it by their motion to ever-changing melody.

Mas o que me interessou para isto não foi essa noção da chamada "harpa eólica", que de qualquer modo não é assim tão simples, mas a legitimidade da reacção da teoria mimética. Ora se o Romantismo se desfaz do carácter de imitação como definidor da sua poesia, e se a arte se assume como baseada unicamente em expressão dessa força dæmonica, então chegamos a uma encruzilhada. Temos a possibilidade de assumir que a arte, e a poesia em particular, é consubstancial ao às forças caóticas que possibilitaram essa criação, que a poesia é "os deuses", o que por muito poético que soe não me parece que tenha sido a intenção, pois levanta demasiados problemas, ou então, o que me parece muito mais sensível, a poesia é expressão divina, é o "soar da harpa eólica", é a marca que os deuses deixam no mundo através da mão do poeta. Mas não é isto ainda assim μίμησις? Platão em alguns diálogos rejeita a poesia como sendo imitação do mundo físico, sendo portanto censurável na medida em que estaria duplamente afastada do mundo imaterial das Idéias. A imitação da natureza, como a defende Aristóteles, não faz mais que afastar daquilo que realmente importa. Não será que a a concepção Romântica assume mais paralelos com uma teoria poético-moral platónica do que com a mais bem-sucedida teoria aristotélica? Pois não é o deixar os deuses falar e deixar marcas 'apenas' mais um capítulo da teoria mimética, na medida em que continua a não haver espaço teórico para a criatividade individual, para uma poesia ex nihilo, enquanto a poesia continuar a ser uma expressão mais fiel possível das forças que estão em jogo? A diferença é que o mimêta deixa de ser o poeta, e passam a ser os deuses propriamente ditos, com a ressalva de que agora, em vez de a physis ser imitada por outrém, está a expresar-se e a imitar-se a si mesma, numa mimesis sui que é ainda assim mimesis. Se o poeta não fôr 'reduzido' ao estatuto de "harpa eólica" ou de "catalizador", então a physis está necessariamente a exprimir-se a si mesma. Se assim não fôr, e mesmo que aceitarmos uma poética menos de-autoral que a de Shelley, em que o poeta ainda tenha alguma função activa, então ainda assim é o poeta a 'mimar' aquilo que lhe é confiado pelos deuses.

O que Shelley diz em relação a isso é formidável: se o poeta ao escrever não consegue atingir as alturas que a insuflação divina lhe permitia, é porque existe um vazio temporal gigantesco entre o momento da inspiração e o da escrita: a possessão do humano pelo divino é breve, e no momento em que é passada a poema resta apenas uma sombra pálida; curioso é o modo como prossegue a desmantelar um dos mitos que ainda se ouvem de bocas de poetas (principalmente principiantes, mas não só), de que "aquilo veio no momento, [moralmente] não o posso editar"; o que Shelley diz é que a contínua revisão não só é lícita como aliás é moralmente certa: editar o poema fruto de inspiração divina é dar côr à palidez, é aproximar a sombra do poema inspirado daquela idéia que o Espírito lhe houvera revelado. -- enquanto existe uma força que se fala e que consegue com maior ou menor sucesso ser passada para papel, então o pressuposto é que há algo a atingir, um ideal platónico a tocar, que está a ser imitado. Não é mais a imitação aristotélica, mas continua a ser muito derivativo, parece-me.

Escusado será dizer que tudo isto é uma reflexão, de largo a largo muito básica e muito possivelmente já desmantelada em muitos sítios: quer tenha sido quer não é muito um esboço. Convidaria comentários que me mostrassem como estou completamente errado, ou que me mostrassem livros onde pudesse eu descobrir como estou completamente errado, ou então discussão para continuar esta reflexão a mais cabeças (para descobrirmos o quanto estou errado!).


PS: Noutras notícias, embora tenha sido isso que encorajou este post, o Shelley continua a resistir à tradução.

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