23/10/2009

deuses

Hoje quando estava a ler em voz alta a tradução do Ulysses antes de a gravar, parei neste verso.

Algo digno de homens que se bateram com deuses.

Acho que até hoje nunca tinha lido a palavra deuses, ou então que a formuláica pronúncia tinha desgastado a palavra em prol do seu significado quasi-sublime. Penso que isto terá sido derivado de duas coisas: em primeiro lugar não teria sido possível se o que lá estivesse fosse apenas "deus"- é demasiado curto, a palavra acaba logo após começar; e depois eu estava a testar vários pontos de alongar determinadas palavras, e esta arrastou-se tanto (que na métrica da leitura quer dizer uns microsegundos mais) que fiquei petrificado quase um minuto a olhar para ela. O dental d, o ditongo conferiram à palavra o sentido que ela merece, embora a cisão entre a palavra colectiva 'deuses' e aquelas entidades necessariamente implicadas pelo plural seja completa. Não há qualquer relação: a maneira como agora penso a palavra foi muitíssimo elevada, mas o conceito a ela associado não foi tocado sequer.

O Antoine Roquentin de Le Nausée sofre os (agora lugares-comuns) despertares existenciais, a morte de Deus se quisermos, várias vezes ao longo do romance; a maior parte das vezes estão associadas ao modo como a realidade se esvazia da ordenação doada pela linguagem, da estrutura de sentido em que um objecto se inseria por ter um determinado nome, por a ele estar associada uma palavra, por a palavra ser o objecto, ao invés de, o que depois ele se apercebe, de ser uma massa disforme e incongruente, simultaneamente unida e separada, uma pertença que a tudo assimila, opaca e terrível a que ele chama "existência".

Aqui passou-se algo semelhante mas numa frequência drasticamente diferente: a palavra foi retirada do campo do mundo, da relação que poderia ter com objectos que nele existem, neste caso os deuses (e agora de cada vez me custa voltar a empregar a palavra), para ganhar uma desligada sacralidade. Poderia talvez chamar a isto uma simples apreciação estética da sonoridade da palavra, mas isso seria realmente simplificar: muito mais teve que ver com as sílabas saltarem pela primeira vez à vista e ao ouvido tendo ainda a memória esvanecente do que em tempos significaram. Deuses. A palavra deuses deixa de querer dizer "deuses" como comummente o entendemos, deixa de ser plural de deus, deixa de fazer referências a qualquer tipo de ser com conotações religioso-espirituais. É a palavra em si que adquire o peso dessa conotação, embora desligada de toda a possibilidade de referência a Deus. É a conotação pura, por assim dizer, significada por um par de sílabas vazio, vazio.

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