23/09/2009
Odisseia – Não, a outra
Foi um amigo meu grego que pela primeira vez me falou de Kavafy, mas só anos mais tarde o li, muito embora a completa dificuldade em encontrá-lo traduzido (entre ir a Lisboa comprar uma edição preferi optar pela Amazon. Não sou economicamente patriota) me tenha acordado para uma realidade maior e mais tenebrosa: o número quase raso das traduções presentes de escritores gregos contemporâneos em português. Cafavy ainda fui encontrando (apesar de nenhuma livraria em Coimbra o ter em stock), mas e Seferis? Odysseas Elytis? E isto sem sair dos tipos que ganharam o Nobel, minha gente! Não creio que não exista nenhuma tradução. Mas as traduções que eventualmente existam são por certo insuficientes e difíceis de encontrar. E na boa tradição empirista anglo-saxónica, o que não vejo não existe.
Mas mais que a deles, incomoda-me a ausência de Nikolas Kazantzakis (este não teve Nobel nenhum), apesar de nunca ter lido nenhum dos seus romances(working on it). Mas li partes da sua obra magistral, uma Odisseia, traduzida para Inglês como "The Odyssey: A Modern Sequel", em que Kazantzakis narra o que acontece a Ulisses -- numa sequência quase se não mesmo imediata à Odisseia antiga, como se fosse possível colar os dois poemas juntos -- depois da chegada a Ítaca, numa trama relativamente semelhante ao Ulisses de Tennyson, cuja proposição e invocação penso poder afirmar sem erros de maior serem talvez as melhores alguma vez produzidas para um épico. Quanto ao resto da epopeia ainda não sei, estou a ler aos poucos, mas se a qualidade se manter... (e é grande- a sério: 33.333 linhas. para referência, é apenas ligeiramente menor que o Orlando Furioso, 38k; enquanto as nossas bem amadas Ilíada e Odisseia sem ficam à volta das 14k).
Without further ado, o primeiro canto, ou Prólogo, na versão inglesa, que é o que teremos até alguém o verter para a lusa língua.
*must: n, Grape juice before or during fermentation
PROLOGUE
O Sun, great Oriental, my proud mind's golden cap,
I love to wear you cocked askew, to play and burst
in song throughout our lives, and so rejoice our hearts.
Good is this earth, it suits us! Like the global grape
it hangs, dear God, in the blue air and sways in the gale,
nibbled by all the birds and spirits of the four winds.
Come, let's start nibbling too and so refresh our minds!
Between two throbbing temples in the mind's great wine vats
I tread on the crisp grapes until the wild must boils
and my mind laughs and steams within the upright day.
Has the earth sprouted wings and sails, has my mind swayed
until black-eyed Necessity got drunk and burst in song?
Above me spreads the raging sky, below me swoops
my belly, a white gull that breasts the cooling waves;
my nostrils fill with salty spray, the billows burst
swiftly against my back, rush on, and I rush after.
Great Sun, who pass on high yet watch all things below,
I see the sun-drenched cap of the great castle-wrecker:
let's kick and scuff it round to see where it will take us!
Learn, lads, that Time has cycles and that Fate has wheels
and that the mind of man sits high and twirls them round;
come quick, let's spin the world about and send it tumbling!
O Sun, my quick coquetting eye, my red-haired hound,
sniff out all quarries that I love, give them swift chase,
tell me all that you've seen on earth, all that you've heard
and I shall pass them through my entrails' secret forge
till slowly, with profound caresses, play and laughter,
stones, water, fire, and earth shall be transformed to spirit,
and the mud-winged and heavy soul, freed of its flesh,
shall like a flame serene ascend and fade in sun.
You've drunk and eaten well, my lads, on festive shores,
until the feast within you turned to dance and laughter,
love-bites and idle chatter that dissolved in flesh;
but in myself the meat turned monstrous, the wine rose,
a sea-chant leapt within me, rushed to knock me down,
until I longed to sing this song—make way, my brothers!
Oho, the festival lasts long, the place is small;
make way, let me have air, give me a ring to stretch in,
a place to spread my shinbones, to kick up my heels,
so that my giddiness won't wound your wives and children.
As soon as I let loose my words along the shore
to hunt all mankind down, I know they'll choke my throat,
and when my full neck smothers and my pain grows vast
I shall rise up—make way!—to dance on raging shores.
Snatch prudence from me, God, burst my brows wide, fling far
the trap doors of my mind, let the world breathe awhile.
Ho, workers, peasants, you ant-swarms, carters of grain,
I fling red poppies down, may the world burst in flames!
Maidens, with wild doves fluttering in your soothing breasts,
brave lads, with your black-hilted swords thrust in your belts,
no matter how you strive, earth's but a barren tree,
but I, ahoy, with my salt songs shall force the flower!
Fold up your aprons, craftsmen, cast your tools away,
fling off Necessity's firm yoke, for Freedom calls.
Freedom, my lads, is neither wine nor a sweet maid,
not goods stacked in vast cellars, no, nor sons in cradles;
it's but a scornful, lonely song the wind has taken . . .
Come, drink of Lethe's brackish spring to cleanse your minds,
forget your cares, your poisons, your ignoble profits,
and make your hearts as babes, unburdened, pure and light.
O brain, be flowers that nightingales may come to sing!
Old men, howl all you can to bring your white teeth back,
to make your hair crow-black, your youthful wits go wild,
for by our Lady Moon and our Lord Sun, I swear
old age is a false dream and Death but fantasy,
all playthings of the brain and the soul's affectations,
all but a mistral's blast that blows the temples wide;
the dream was lightly dreamt and thus the earth was made;
let's take possession of the world with song, my lads!
Aye, fellow craftsmen, seize your oars, the Captain comes;
and mothers, give your sweet babes suck to stop their wailing!
Ahoy, cast wretched sorrow out, prick up your ears—
I sing the sufferings and the torments of renowned Odysseus!
(e já agora, eu em certos casos sou a favor de piratear livros: aqui)
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O Gonçalo M. Tavares, nas 'Breves Notas Sobre As Ligações', escreve:
ResponderEliminar"Qualquer localidade, qualquer país, nenhum sítio está mais afastado do que a página que leio. A página a vinte centímetros dos meus olhos está, afinal, a uma distância bem maior, depende da minha vontade de a perceber, isto é: de a percorrer. Perceber uma coisa é percorrer essa coisa, per-correr: correr à volta, perceber uma página é correr a toda a volta dessa página: ficámos cansados, andámos de mais. «Ao nível de movimento», diz MGL (Maria Gabriela Llansol), «fui a Sintra, li Hölderlin»."
Antes de vir aqui, esta manhã, li o ensaio do Steiner que a Tatiana, no Lavorare Stanca, recomendava no outro dia: 'Ten (Possible) Reasons for the Sadness of Thought'. Fiquei cansado: fui pelo menos até à Universidade a pé, a partir de minha casa (nada de comboio). Senti que devia parar por ali, hoje. Mas já andava a adiar a leitura do Kazantzakis, que te prometera, há muito, pelo que, depois de uma pequena pausa, retomei a marcha: estou agora, vá lá, na Figueira (a ver o mar a pensar no Ulisses, na expectativa de avistar o navio dele). Não consigo dar mais um passo que seja e as pessoas aqui na praia olham para mim com estranheza, porque não me movo, caído na areia, como morto depois de anunciar a vitória de Maratona.
Este início é verdadeiramente fabuloso: por ele valia a pena aprender grego moderno. O texto irradia uma luminosidade a tempos quase ofuscante (e até podemos ficar incinerados, como Sémele ante Zeus). Há imagens, como a do mundo como uva debicada, a mente como kratêr, as palavras que vão à caça da humanidade toda, o mundo como um tronco morto de que se arranca uma flor pelo canto (à la Orfeu), a ordem à mãe para que amamente o filho para o calar — estas imagens possuem um homem como um homem possui uma mulher. Que força tremenda no poema todo, que alegria! Faz-me, por causa disso, lembrar o 'Song of Myself', do Whitman, que li este Verão. Ao mesmo tempo, sente-se ali um peito inflamado, que tem um canto a gritar ao mundo, que quer espaço, que irrompe, másculo (isto vai soar estranho, mas talvez tenha experimentado um pouco aquele sentimento de "poder" que tu dizias sentir emanar de Roma inteira e dos vários membros do seu corpo, mais conhecidos como monumentos).
Não se põe um texto destes nas mãos de quem vai começar um ano lectivo: o que eu queria agora aventurar-me dentro dele!