29/09/2009

Don Carlos

FILIPE
É verdade que fui traído?
LERMA (chocado) 
Majestade 
FILIPE (amargo e irónico)
Majestade, Majestade e de novo Majestade!
Será que não há resposta que me chegue
aos ouvidos que não seja só o eco vazio de quem sou?
Bato na pedra para obter água, compreendeis?
Água para saciar a minha sede febril.
E a pedra em vez de água dá-me ouro,
ouro e mais ouro!


Friedrich Schiller, Don Carlos, recriação poética de Frederico Loureço, Livros Cotovia

6 comentários:

  1. Recriação poética. Nota como o termo /recriação/ lembra /recreação/: no traduzir assim, do coração, e o Frederico embalava este texto há já muitos anos no corpo, o texto tatuava-o por dentro, se consegues conceber essa imagem; no traduzir assim, dizia, há também um prazer enorme, infantil, o prazer do jogo: a tradução como uma brincadeira.

    Recriação poética. A propósito desse termo tão do agrado do Frederico Lourenço, que ele aplicou também a versão da 'Medeia' pela Sophia, que ele editou, lancei uma mini-discussão na aula anterior de Teorias da Tradução: quando é que um texto deixa de ser tradução para passar a ser algo outro? É o carme 52 de Catulo uma tradução ou um original?

    Recriação poética. Posso ter dúvidas se é tradução ou recriação, não posso duvidar que é poética. Que belo trecho, e violento. Se não houvesse uma outra razão, estes versos, por si, seriam suficientes para eu querer ver a peça. Efectivamente, eu amo o teatro, mas tenho de o amar mais. Inveja de ti que lês isto.

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  2. Outra recriação poética do Frederico: 'Ifigénia na Táurida', do Goethe. Mas esta, se tudo se acertar para isso, a Sophia e eu iremos ver agora no próximo mês a Lisboa.

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  3. Estou bem ciente dos perigos de me lançar nesta discussão contigo... Daqui a algumas semanas já deves ter armas para desfazer todos os meus argumentos! (e eu vou cobrar-te longas conversas à conta desta história toda das Teorias da Tradução: ficas avisado;— caveat discipulus!)

    A minha questão é até que ponto é que na tradução posso fazer alguma coisa que não seja, pela própria definição de termos, uma recriação? Na medida em que, muito mais do que na simples leitura — que é ela própria já impossível de ser lida com olhos neutros, ou 'sub specie aeternitatis' — na tradução é forçada uma manifestação do tradutor que, como diz o Ricoeur a certa altura, "serve dois senhores": serve o texto e a língua original, e serve o texto e a língua da tradução, e tem por vezes de fugir aos castigos e censuras de um, e por vezes aos do outro.

    Poderíamos falar por certo de gradações. Um texto é uma recriação se as preocupações com fidelidade textual são /menos/ do que numa tradução comum. Um texto é uma tradução "normal" se se tenta fazer com que veramente haja uma correspondência. Mas isto parece-me uma posição cheia de buracos. A fidelidade afunda-se inevitavelmente. Um Vasco Graça Moura que traduz a Divina Commedia com preocupações incisivas de métrica e de rima acaba com um monstro que nada se assemelha à fluidez do italiano. Uma tradução da Eneida em prosa mantém a narrativa mas perde o lavoro técnico. Claro que me dirás que isto são truísmos: certo, são-o, mas a questão é que são ambas recriações de uma forma ou de outra, se assumimos como recriação um desvio intencional face à peça original.

    Se pelo contrário definirmos uma tradução como aquela em que o tradutor põe "mais de si", efectivamente tornando-se então no terceiro mestre contra os dois do Ricoeur, talvez essa posição seja defensível. Mas não é comum. Lembro-me dos Cantos de Pound que abertamente se assumiam como tal (uma condensação do melhor que a literatura tem para oferecer, as made stoop pelo génio do mister Ezra). Na maior parte das vezes o que vemos é que o tradutor traduz abertamente para melhor chegar àquilo que considera ser "o espírito da obra", como se defendia Hölderlin nas suas traduções de Sófocles. Ou agora saltando para o caso em questão do Frederico Loureço nesta tradução de Schiller, muito embora esta edição tenha de ter o salvaguardo adicional de que foi desenhada não com propósitos primariamente literários mas sim de servir uma "que fosse ajustada às especificades do Teatro da Cornucópia". Mas isso não é esmagador: o princípio é o mesmo; cito-te de novo do posfácio: "Em suma, se é verdade que, em muitos casos, desisti de procurar reproduzir a letra do Don Carlos do Schiller, não é menos verdade que procurei sempre reproduzir a sua estética."

    Correndo o risco de abrir o caminho para a resposta lugar-comum, se entendermos o epicentro duma obra no efeito, no prazer estético e literário, na legibilidade, não serão quiçá as traduções mais fiéis as que voluntariamente fogem do texto-a-traduzir com o propósito de o perseguir de mais perto naquilo que mais nele interessa? Não serão as chamadas recriações as que menos recriam, e que mais da beleza do texto original nos dão? Em certos casos, assumindo que o tradutor é ele mesmo capaz e digno da confiança (não me lembro quem disse que "apenas poetas deveriam traduzir outros poetas"), a resposta poderá talvez ser sim. E a não esquecer que já dizia o mister Eliot que "Immature poets immitate, mature poets steal. Bad poets deface what they take, while good poets turn it into something better, or at least something different."

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  4. Que é o mesmo que dizer: se queres o original vai ler o original!

    Que é o mesmo que dizer que quero mesmo aprender Germão.

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  5. ubi "Se pelo contrário definirmos uma |tradução|" legatur "Se pelo contrário definirmos uma |recriação|"

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  6. Aproveito para te dizer que penso nunca ter reparado no valor imenso do "ponto final" como no antepenúltimo verso deste trecho. Na minha imaturidade se fosse eu o mais provável era ter repetido aí o ponto de exclamação, mas parece-me quase incomensurável o quão aumentado fica o texto por aí se fugir a essa escolha fácil.

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