23/09/2009

2666


1. A parte sobre não ler o livro
Quando as referências ao 2666 de Roberto Bolaño começaram a abundar na blogosfera, falava-se de uma nova forma de escrever romances, de um clássico imediato (ou instantâneo), tudo isto ao mesmo tempo que se fazia a contagem decrescente para o lançamento da tradução portuguesa, quando então realmente todos os louvores poderiam já ser efectivamente confirmados com as mãos na massa. A minha primeira reacção foi fazer finca-pé, e, just for spite nem lhe tocar. Pensei eu que, se se tornasse realmente num clássico, ainda cá estaria daqui a 10 anos; caso se revelasse fracassado, não teria perdido nada. Passou-se porém que me deparei com a tradução inglesa numa das La Feltrinelli aqui do sítio. O meu idealismo foi inversamente proporcional ao quanto o preço estava jeitoso, uns meros 9 euros (para um livro cuja tradução portuguesa custará 29). Sucumbi. Trouxe-o, e comecei a ler.


2. A parte sobre ler o livro
Quase uma semana depois, terminei. Parece que muitos apontam a cidade de Santa Teresa, lugar de uma lista infinda de mortes de mulheres, como o ponto convergente da série de histórias que ponteiam o livro, mas a mim parece-me que Santa Teresa não é mais que aquilo que ela representa nas cabeças dos seus habitantes e visitantes: a morte, e em certas alturas a possibilidade duma imortalidade materialista através de um legado, do absurdo desejo de deixar alguma marca no mundo quando na realidade a morte tudo pode. As paisagens que se sucedem saltam de ambiente a um ritmo desconcertante, ao mesmo tempo que as longas discursões e os símiles fazem uma palete verbal do cenário: o primeiro livro, possivelmente o mais erudito, abunda em referências literárias directas, etimologia, etc; o quarto, cercado de mortes como um cemitério de 300 páginas, oferece-nos a secura do deserto macabro pautado pelo desespero sem narrativa e sem fio de Ariadne, sem pathos de que tipo seja, como se todas as mulheres mortas que aparecem descritas ao longo do livro “se tivessem deparado com a morte por puro acaso”. Assim como as personagens, em longas discursões, símiles, e aforismos (toda a personagem de Bolaño é um filósofo existencialista), se deparam com o problema do seu “e-depois”, na maior parte das vezes medíocre, precisamente para mostrar que a Morte não é um mero “por acaso”, mas sim o constituinte inevitável (como dizem por estes lados os italianos, Per pagare e morire c’è sempre tempo). O último livro, na minha opinião o mais belo, e o presente que se oferece, o oásis que se segue ao deserto do quarto, o rapaz que mergulha, e cujas algas se contrapõem aos cactos do deserto, é o único que pensa na sua morte mas não a teme. Talvez por a morte ser o último inimigo a ser destruído, e o combate com ela ser necessário, embora como diz um crítico numa das partes, “as obras-primas sobrevivem. o resto é carne para canhão”, num dos excertos mais brilhantes do livro, e onde Bolaño fala pela boca de um velho tal como em tempos Milton falou pela boca de Satã). Ao longo dos cinco livros que compõem as 900 páginas de 2666, apenas os críticos da primeira secção não parecem viver atormentados pelo fim da vida, vivem em vez disso obcecados com o legado da única personagem que ironicamente rejeita fazer esforços para deixar um legado, que escorre e que foge, cuja morada é desconhecida ao mesmo tempo que vê o seu nome citado para grandes prémios, e que é provavelmente a única que sobrevive. Não é tanto pregar uma espécie de karma do estoicismo como que se Bolaño estivesse a tentar escrever uma confissão, um diário, memórias, epístolas, sonhos e solilóquios.


3. A parte sobre a histeria
É certamente um grande livro grande [sic]. Penso apenas que deveria ter sido precedido de um pouco mais de calma nos louvores e nas comparações. Dizer que é o grande livro do ano não torna 2666 paralelo aos marcos da inovação novelística, e essa comparações excessiva e recorrente foi o que inicialmente me pôs de sobre-alerta para com o livro. Penso que o vocabulário utilizado foi francamente imoderado. Em 2666 podemos falar duma grande evolução na arte de narrar, mas não numa revolução (aí penso que ainda ninguém tomou de assalto o bastião daquele Jano kantiano, essas duas caras do tempo e do espaço que são, correspondentemente, o Em Busca do Tempo Perdido, e Ulysses, cada uma contendo em si a totalidade, uma do tempo, a outra do espaço; Proust conta todo o curso duma vida, Joyce todo o espaço duma cidade, ao ponto de ter afirmado que a partir do seu magnum opus se poderia reconstruir Dublin após um terramoto). Bolaño, como dizem muitos críticos, “mostrou que o romance pode fazer tudo” – sim, mas o romance como já o concebíamos, o modelo de romance que tínhamos disponível: isso não é de todo de menosprezar, mas há que questionar a histeria formada à volta dum deste fantasma. A publicação destes livros corre o risco de se tornar, à escala, claro, o equivalente high-culture da histeria resultante da publicação do próximo Harry Potter ou Guerra das Estrelas (ambos já terminados, eu sei. Bear with me.) E algo que deveria ser uma relação pessoal com um tópico individual e, em última instância, existencial, se torne mediado por todo o aparato dos crachás, das capas individuais, da contagem decrescente, dos VIP a lerem passagens. E se tivéssemos todos passado todo este tempo a ler as outras obras de Bolaño, em vez de andarmos a fetishicizar a data de lançamento? Dizia-se que Napoleão, grande génio de estratégia militar e conquistador da Europa, pouco teria inventado no que diz respeito à estratégia de combate, mas que pelo contrário teria levado à perfeição ou ao apogeu as técnicas então conhecidas. Talvez 2666 seja isso, uma espécie Napoleão dos romances, de evolução nesse sentido. O que me livra da hipocrisia de escrever contra a histeria provocada por ele ao mesmo tempo que me lanço num post de +duas páginas (ou pelo menos assim o espero!).


4. A parte sobre a crise pessoal de justiça poética
Quando reflectia nos conteúdos desta parte anterior, e depois durante a sua escrita, vi-me bastantes vezes acossado de problema de consciência. Tal como Zarathustra prega “a virtude que oferece”, e abandona o eremita “para que não lhe tire nada”, atormentei-me muitas vezes com de mortuis nihil nisi bonum, especialmente tendo em conta o carácter de legado final do romance para o escritor, o homem que viveu e que existiu, e que condenou os seus personagens a falar da imortalidade através da abertura e da colonização à força do cânon, tal como o diz Harold Bloom a certa altura no Cânone Ocidental, do fazer-se entrar a si mesmo pelo meio dos milhares ou milhões de escritos menores, do escrever algo que reste e que sobreviva. Não tenho pretensões de que isto que escreva tenha alguma vez algum impacto na recepção de Bolaño, mas aqui trato necessariamente de algo diferente, da continuação-de-si por parte de quem lhe dá alvará, e isso é de novo uma capacidade individual, como se Heidegger tivesse continuado o seu capítulo do Ser e Tempo em que passa por cima das respostas religiosas e espirituais (ou até mesmo artísticas, atrevo-me a dizer) para o que pode acontecer depois da morte, e se foca unicamente na realidade presente e existencial a que o Dasein realmente tem acesso, e portanto não posso deixar de me questionar sobre a sobrevivência de Bolaño-para-mim; e não obstante o próprio sentido negativo que a palavra “crítica” tem para nós (a palavra, não o conceito neste contexto), se por vezes, e neste caso em particular, não deceret um meu presente pessoal, como Ulisses a presentear os mortos com apenas um pouco de sangue, apenas um pouco de vita, para que possam viver de novo? Oferecer uma vitória que a mim nada me custa ofertar, mesmo se não deva por razões críticas, como se mais uma vez houvesse uma suspensão do ético para abrir caminho a um algo outro, desta vez não teologicamente mas sim existencialmente acordado? Aceitar que Bolaño criou uma obra-prima e proustianamente convencer-me a mim mesmo de que realmente é algo a par com os grandes maiores livros? Sobre tudo o que escrevo paira a sombra da morte. E o que pensei já pensei e escrevi, e este parágrafo não sobrevive como menos que os vestígios de um batalha interior travada a campo aberto.


5. A parte sobre as citações
Podia tirar muitas mais. Mas vou ficar-me com uma por cada um dos livros, das que fui marcando ao longo da leitura. A título de curiosidade, fiquei com o quinto livro todo rabiscado, mas penso que copiá-lo na íntegra demoraria tempo demasiado.

I
“Exile must be a terrible thing,” said Norton sympathetically.
“Actually,” said Amalfitano, “now I see it as a natural movement, something that, in its way, helps to abolish fate, or what is generally thought of as fate.”
“But exile,” said Pelletier, “is full of inconveniences, of skips and breaks that essentially keep recurring and interfere with anything you try to do that’s important.”
“That’s just what I mean by abolishing fate,” said Amalfitano. “But again, I beg your pardon.”


II
There was something revelatory about the taste of this bookish young pharmacist, who in another life might have been Trakl or who in this life might still be writing poems as desperate as those of his distant Austrian counterpart, and who clearly and inarguably preferred minor works to major ones. He chose The Metamorphosis over The Trial, he chose Bartleby over Moby-Dick, he chose A Simple Heart over Bouvard and Pécuchet, and A Christmas Carol over A Tale of Two Cities or The Pickwick Papers. What a sad paradox, thought Amalfitano. Now even bookish pharmacists are afraid to take on the great, imperfect, torrential works, books that blaze paths into the unknown. They choose the perfect exercises of the great masters. Or what amounts to the same thing: they want to watch the great masters spar, but they have no interest in real combat, when the great masters struggle against that something, that something that terrifies us all, that something that cows us and spurs us on, amid blood and mortal wounds and stench.


III
The end had begun somewhere, Charly Cruz didn’t care where, maybe in the churches, when the priests stopped celebrating the Mass in Latin, or in families, when the fathers (terrified, believe me, brother) left the mothers. Soon the end of the sacred came to the movies. The big theaters were torn down and up went the hideous boxes called multiplexes, practical, functional. The cathedrals were felled by the wrecking balls of demolition teams. Then the VCR came along. A TV set isn’t the same as a movie screen. Your living room isn’t the same as the old endless rows of seats. But look carefully and you’ll see it’s the closest thing to it. In the first place, because with videos you can watch a movie all by yourself. You close the windows and you turn on the TV. You pop in the video and you sit in a chair. First off: do it alone. No matter how big or small your house is, it feels bigger with no one else there. Second: be prepared. In other words, rent the movie, buy the drinks you want, the snacks you want, decide what time you’re going to sit down in front of the TV. Third: don’t answer the phone, ignore the doorbell, be ready to spend an hour and a half or two hours or an hour and forty-five minutes in complete and utter solitude. Fourth: have the remote control within reach in case you want to see a scene more than once. And that’s it. After that it all depends on the movie and on you. If things work out, and sometimes they don’t, you’re back in the presence of the sacred. You burrow your head into your own chest and open your eyes and watch, pronounced Charly Cruz.


IV
At the end of September, the body of a thirteen-year-old girl was found on the east side of Cerro Estrella. Like Marisa Hernández Silva and the woman by the Santa Teresa-Cananea highway, her right breast had been severed and the nipple of her left breast had been bitten off. She was dressed in Lee jeans, a sweatshirt, and a red vest. She was very thin. She had been raped numerous times and stabbed, and the cause of death was a fracture of the hyoid bone. But what surprised the reporters most was that no one claimed or acknowledged the body. As if the girl had come to Santa Teresa alone and lived there invisibly until the murderer or murderers took notice of her and killer her.


V
“This country has tried to topple any number of countries into the abyss in the name of purity and will. As far as I’m concerned, you understand, purity and will are utter tripe. Thanks to purity and will we’ve all, every one of us, hear me you, become cowards and thugs, which in the end are one and the same. Now we sob and moan and say we didn’t know! we had no idea! it was the Nazis! we never would have done such a thing! We know how to whimper. We know how to drum up sympathy. We don’t care whether we’re mocked so long as they pity u and forgive us. There’ll be plenty of time for us to embark on a long holiday of forgetting. Do you understand me?”
“I understand,” said Archimboldi.

“I was a writer,” said the old man, “but I gave it up. This typewriter was a gift from my father. An affectionate and cultured man who lived to the age of ninety-three. An essentially good man. A man who believed in progress, it goes without saying. My poor father. He believed in progress and of course he believed in the intrinsic goodness of human beings. I too believe in the intrinsic goodness of human beings, but it means nothing. In their hearts, killers are good, as we Germans have reason to know. So what? I might spend a night drinking with a killer, and as the two of us watch the sun come up, perhaps we’ll burst into song or hum some Beethoven. So what? The killer might weep on my shoulder. Naturally, being a killer isn’t easy, as you and I well know. It isn’t easy at all. It requires purity and will, will and purity. Crystalline purity and steel-hard will. And I myself might even weep on the killer’s shoulder and whisper sweet words to him, words like ‘brother’, ‘friend, ‘comrade in misfortune’. At this moment the killer is good, because he’s intrinsically good, and I’m an idiot, because I’m intrinsically an idiot, and we’re both sentimental, because our culture tends inexorably towards sentimentality. But when the performance is over and I’m all alone, the killer will open the window of my room and come tiptoeing in like a nurse and slit my throat, bleed me dry.”

2 comentários:

  1. Excelente post. Também estava um pouco reticente em relação ao livro mas vou comecei a lê-lo e cada vez mais me agrada... Também considero «exuberante» o aparato feito em volta do livro, as festas e leituras por parte de Soraia Chaves e afins até dão má imagem à obra(o que é conhecido é mau), mas não é isso que faz a obra, a avaliação da obra pela acção externa feita em volta dela por outros não tem nenhum fundamento, o que foi escrito é que interessa, ainda para mais sendo o autor tão adverso a estas «coisas sociais e públicas», portanto só se deve falar/escrever depois de ler, sobre o que se leu e nada mais. Excelente post, excelente blog!

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