Quando alguém, cujo mão se sobrepõe à tua mão, cujo cérebro ainda brilha com a explosão do magnésio
a cada sinapse do teu cérebro, cujos músculos dos dedos ainda se flectem de
cada vez que traças uma linha, quando esse alguém se recurvou ora, ora elevou o
rosto até às escuras estrelas que brilhavam no tecto da caverna, quando o seu
dedo sujo de ocre empurrou o teu dedo para deixar uma marca na parede, era
realmente ocre? Ou seria o sangue de um deus que, milénios e milénios mais
tarde, os humanos mortais celebrariam enforcado no tronco duma árvore? Ó
teologia, grandes são as tuas aventuras. Como um íbex os teus raciocínios
escapam-nos e atiram-se desdenhosamente contra a parede. Como um mamute os teus
dogmas e os teus conceitos olham para nós, perfuram-nos com o enigma da sua
extinção, e permanecem silenciosos, de perfil, desdenhosos ou sem cuidar da
nossa voz domesticante. Quem entra na caverna é para morrer. Quem dela sai é
para entrar noutra e assim por diante até ao início dos tempos. Os ídolos nunca
foram sombras: os ídolos foram sempre deuses, e o fogo que os projectava e
deixava os seus indícios nas paredes fomos nós quem o trouxe na ponta dos
nossos archotes precisamente porque os queríamos ver, queríamos vê-los e
desenhá-los, gravá-los a pedra no espírito inconstante do grande deus do
esquecimento. Conseguimo-lo? O sangue que pulsamos parece prometer que sim. É
com ele que pintamos. É ele que nos transforma. Que nos transporta. Que permite
que a nossa imagem espere por nós durante milénios: a imagem que alguém gravou,
ou a imagem que nós próprios gravámos como oferenda para nós mesmos que
sabíamos que viria um dia o dia em que iríamos abrir os olhos, adormecer, e
apercebemo-nos de que jamais tínhamos saído da caverna, jamais tínhamos contemplado
a boa luz, e que apenas por instantes as brasas do cérebro nos tinham abstraído
e retirado à tarefa de terminar o cavalo, fechar o circuito, deixar que o bisonte nos espete a lança nas costas.
@ Caverna de Chauvet-Pont-d'Arc
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