Li uma vez uma
interpretação herética e certamente falsa da narrativa da emergência da Alma
nas Enéades do Plotino. Segundo essa, o acto de tolma
(ousadia) da Alma, que dá origem à mais fundamental das quebras entre a Deidade
e as demais emanações, seria impugnável à Deidade em si mesma - ao Um - (ao invés de,
segundo a narrativa habitual, ser explicada precisamente
pela distância existente entre essa e as emanações inferiores). Essa conclusão leva à posição misteriosa de que a
existência do mundo se deve a uma hybris de Deus. Uma tal posição é certamente
assustadora para qualquer ouvido treinado nas corriqueiras definições de
hybris, que tendem a associá-la a uma tentativa de violação da esfera divina
por mãos e mentes humanas. Deus cometer hybris é um paradoxo. Tão paradoxal,
suponho, como a existência do mundo, de forma que as justificações de ambas
podem assentar em argumentos da mesma ordem do paradoxal. É a pergunta
pré-socrática, por um lado, que mais uma vez desperta inquieta, mas também uma tentativa supra-gnóstica de estabelecer uma theodiceia: os gnósticos afirmam que o mundo é mau porque o seu criador é mau, que portanto o verdadeiro Deus está inocente de qualquer colaboração na criação. Esta visão é supra-gnóstica porque atribui o acto de ousadia ao Um, culpando-o, e definindo com referência não à Criatura mas sim ao Criador todo o percurso subsequente do Bem e do Mal.
O Spírito do Senhor
achegava-se cada vez mais da beira das águas, mergulhava por alguns instantes e
depois sempre por mais algums instantes, até que ousou descer fundo demais: a
Hybris de Deus desembainhou as asas e cravou-as fundo no coração do Cristo.
Esse, morto pelo desejo do amor aos Homens, tornou-se um deles e renegou o
Altíssimo Amor. Amen.
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