25/01/2016

Caverna

Quando alguém, cujo mão se sobrepõe à tua mão, cujo cérebro ainda brilha com a explosão do magnésio a cada sinapse do teu cérebro, cujos músculos dos dedos ainda se flectem de cada vez que traças uma linha, quando esse alguém se recurvou ora, ora elevou o rosto até às escuras estrelas que brilhavam no tecto da caverna, quando o seu dedo sujo de ocre empurrou o teu dedo para deixar uma marca na parede, era realmente ocre? Ou seria o sangue de um deus que, milénios e milénios mais tarde, os humanos mortais celebrariam enforcado no tronco duma árvore? Ó teologia, grandes são as tuas aventuras. Como um íbex os teus raciocínios escapam-nos e atiram-se desdenhosamente contra a parede. Como um mamute os teus dogmas e os teus conceitos olham para nós, perfuram-nos com o enigma da sua extinção, e permanecem silenciosos, de perfil, desdenhosos ou sem cuidar da nossa voz domesticante. Quem entra na caverna é para morrer. Quem dela sai é para entrar noutra e assim por diante até ao início dos tempos. Os ídolos nunca foram sombras: os ídolos foram sempre deuses, e o fogo que os projectava e deixava os seus indícios nas paredes fomos nós quem o trouxe na ponta dos nossos archotes precisamente porque os queríamos ver, queríamos vê-los e desenhá-los, gravá-los a pedra no espírito inconstante do grande deus do esquecimento. Conseguimo-lo? O sangue que pulsamos parece prometer que sim. É com ele que pintamos. É ele que nos transforma. Que nos transporta. Que permite que a nossa imagem espere por nós durante milénios: a imagem que alguém gravou, ou a imagem que nós próprios gravámos como oferenda para nós mesmos que sabíamos que viria um dia o dia em que iríamos abrir os olhos, adormecer, e apercebemo-nos de que jamais tínhamos saído da caverna, jamais tínhamos contemplado a boa luz, e que apenas por instantes as brasas do cérebro nos tinham abstraído e retirado à tarefa de terminar o cavalo, fechar o circuito, deixar que o bisonte nos espete a lança nas costas.




@ Caverna de Chauvet-Pont-d'Arc

22/01/2016

Selanik // um poema

E chorando acocorados à distância
os Turcos
e os filhos dos Turcos
fecham os olhos
e murmuram Selanik

saberás tu, aceitarás acaso
os pactos que forjámos com a memória
e que permanecem secretos
deles e de nós mesmos?

as suas pálpebras batem em seco
e na linguagem do pequeno vento enunciam Selanik.

ah, os olhos, obturadores morais.






(imagem: Criança turca espreita para o fotógrafo escondida atrás dum túmulo islâmico em Selanik, aka Thessaloniki. 1915.)


17/01/2016

Coup-de-grâce

Coup-de-grâce

1. Saint Paul

granite graceful gift
august kept me going
must drenched my eyesockets
and I would have my blood
melt coldly
into light.

the time it took for me to harden
broke the seal. the souls I take
leave quietly their blood.

my guise is that of treason proud
I am the dawn I am the blind that see
my light my chosen sight melts coldly.


2. Apotheosis of Julian the Apostate

I touch your spine of ivory to become
totem I carve on myrrh my fingernails to

become temple I push you through gold-leafed papyri
coating beast-blue blood and a relic-branch of the first lit tree

in creation I made things both from hewn-rock
and milk rained on daisies growing on marble

to become oracle I murmured glyphed fires to marauders
and made them speechless vases overflowing with purple smoke

from the dome above an obelisk's tip I forced my own leap
upon the open-mouths and thunderbolt ambrosia to become


2. Elegy of Julian the Apostate

down under to find you buried all-
god singing lowering arpeggi meeting
none at all? I say a name just to say
the other. none at all inside the chamber of my skull.
skylight of names, o Sun, great eastern prince,
I stop the world in stone.


3. Theodosius the Great

Your hand is a block of granite. And mine?
The sun's face. Smoke from Delos. Greece
is distant. And taking back Jerusalem
like seeing the Light locked in the stone.


(2009)

14/01/2016

Tenebrae & Fala também tu // dois poemas do Paul Celan

TENEBRAE



Estamos perto, Senhor,
perto e agarráveis.

Já agarrados, Senhor,
dilacerados uns nos outros, como se
o corpo de cada um de nós fosse
o teu corpo, Senhor.

Reza, Senhor,
reza a nós,
nós estamos perto.

Vimos aqui inclinados,
vimos até aqui para nos curvamos
perto de covas e crateras.

Viemos para beber, Senhor.

Houve sangue, houve,
que tu derramaste, Senhor,

Brilhava.

Atirou-nos a tua imagem aos olhos, Senhor.
Olhos e boca estavam tão abertos e vazios, Senhor,
Nós bebemos, Senhor,
O sangue e a imagem que estava no sangue, Senhor.

Reza, Senhor.
Nós estamos perto.




§



FALA TAMBÉM TU



Fala tu também,
Fala por último,
diz a tua frase.

Fala -
Mas não separes o Não do Sim.
Dá à tua frase também o sentido:
dá-lhe a sombra.


Dá-lhe sombra bastante,
dá-lhe tanto,
como se te soubesses dividir entre
Meia-noite e meio-dia e meia-noite.

Olha em volta:

vê, como tudo luta tão vividamente -
Na morte! Vividamente!
Quem diz a sombra diz a verdade.

Mas agora encolhe-se o lugar onde tu estás:
Para onde agora, revelador de sombras, para onde?
Trepa. Toca acima.
Ficas mais magro, irreconhecível, mais fino!
Mais fino: um fio,
por onde pode descer, que
para nadar até ao fundo, ao fundo,
onde repara que brilha: no avolumar
de palavras errantes.




Paul Celan. Tradução minha.




TENEBRAE



Nah sind wir, Herr,
nahe und greifbar.

Gegriffen schon, Herr,
ineinander verkrallt, als wär
der Leib eines jeden von uns
dein Leib, Herr.

Bete, Herr,
bete zu uns,
wir sind nah.

Windschief gingen wir hin,
gingen wir hin, uns zu bücken
nah Mulde und Maar.

Zur Tränke gingenwir, Herr.

Es war Blut, es war,
was du vergossen, Herr.

Es glänzte.

Es warf uns dein Bild in die Augen, Herr.
Augen und Mund stehn so offen und leer, Herr.
Wir haben getrunken, Herr.
Das Blut und das Bild, das im Blut war, Herr.

Bete, Herr.
Wir sind nah.




§




SPRICH AUCH DU


Sprich auch du,
sprich als letzter,
sag deinen Spruch.

Sprich -
Doch scheide das Nein nicht vom Ja.
Gib deinem Spruch auch den Sinn:
gib ihm den Schatten.


Gib ihm Schatten genug,
gib ihm so viel,
als du um dich verteilt weißt zwischen
Mittnacht und Mittag und Mittnacht.

Blicke umher:
sieh, wie's lebendig wird rings -
Beim Tode! Lebendig!
Wahr spricht, wer Schatten spricht.


Nun aber schrumpft der Ort, wo du stehst:
Wohin jetzt, Schattenentblößter, wohin?
Steige. Taste empor.
Dünner wirst du, unkenntlicher, feiner!
Feiner: ein Faden,
an dem er herabwill, der
um unten zu schwimmen, unten,
wo er sich schimmern sieht: in der Dünung
wandernder Worte.

13/01/2016

Água e Fogo // um poema do Paul Celan

Água e Fogo

Então mandei-te para a torre e disse uma palavra aos teixos,
daí surgiu uma chama que te pôs um vestido, o teu vestido de noiva:

Clara é a noite,
clara é a noite, que nos inventou corações
clara é a noite!

Ela brilhou longe sobre o mar,
acordou as luas no estreito e ergueu-as sobre mesas de espuma
ela limpa de mim o tempo:
Prata morta, vive, sê chave e concha como o mexilhão!

A mesa ondula hora acima hora abaixo,
o vento enche os copos,
o mar dança em torno da refeição:
o olho com cauda, o ouvido tempesteante,
o peixe e a serpente –

A mesa ondula noite fora noite dentro,
e sobre mim tremulam as bandeiras dos povos,
e perto de mim as pessoas remam os caixões até terra,
e sob mim céua-se e estrela-se como lá na terra no São João!

E eu olho acima para ti,
a quem o fogo transformou em Sol:
Pensa no tempo em que a noite subiu connosco à montanha,
pensa no tempo,
pensa que eu fui o que sou:
um mestre de cárceres e torres,

um sopro entre os teixos, um folião no mar,
uma palavra até ao fundo da qual tu te ardes.




Paul Celan
. Tradução minha.




Wasser und Feuer


So warf ich dich denn in den Turm und sprach ein Wort zu den Eiben,
draus sprang eine Flamme, die maß dir ein Kleid an, dein Brautkleid:

Hell ist die Nacht,
hell ist die Nacht, die uns Herzen erfand
hell ist die Nacht!

Sie leuchtet weit übers Meer,
sie weckt die Monde im Sund und hebt sie auf gischtende Tische,
sie wäscht sie mir rein von der Zeit:
Totes Silber, leb auf, sei Schüssel und Napf wie die Muschel!

Der Tisch wogt stundauf und stundab,
der Wind füllt die Becher,
das Meer wälzt die Speise heran:
das schweifende Aug, das gewitternde Ohr,
den Fisch und die Schlange –

Der Tisch wogt nachtaus und nachtein,
und über mir fluten die Fahnen der Völker,
und neben mir rudern die Menschen die Särge an Land,
und unter mir himmelts und sternts wie daheim um Johanni!

Und ich blick hinüber zu dir,
Feuerumsonnte:
Denk an die Zeit, da die Nacht mit uns auf den Berg stieg,
denk an die Zeit,
denk, daß ich war, was ich bin:
ein Meister der Kerker und Türme,

ein Hauch in den Eiben, ein Zecher im Meer,
ein Wort, zu dem du herabbrennst.

02/01/2016

A ousadia de Deus

Li uma vez uma interpretação herética e certamente falsa da narrativa da emergência da Alma nas Enéades do Plotino. Segundo essa, o acto de tolma (ousadia) da Alma, que dá origem à mais fundamental das quebras entre a Deidade e as demais emanações, seria impugnável à Deidade em si mesma - ao Um - (ao invés de, segundo a narrativa habitual, ser explicada precisamente pela distância existente entre essa e as emanações inferiores). Essa conclusão leva à posição misteriosa de que a existência do mundo se deve a uma hybris de Deus. Uma tal posição é certamente assustadora para qualquer ouvido treinado nas corriqueiras definições de hybris, que tendem a associá-la a uma tentativa de violação da esfera divina por mãos e mentes humanas. Deus cometer hybris é um paradoxo. Tão paradoxal, suponho, como a existência do mundo, de forma que as justificações de ambas podem assentar em argumentos da mesma ordem do paradoxal. É a pergunta pré-socrática, por um lado, que mais uma vez desperta inquieta, mas também uma tentativa supra-gnóstica de estabelecer uma theodiceia: os gnósticos afirmam que o mundo é mau porque o seu criador é mau, que portanto o verdadeiro Deus está inocente de qualquer colaboração na criação. Esta visão é supra-gnóstica porque atribui o acto de ousadia ao Um, culpando-o, e definindo com referência não à Criatura mas sim ao Criador todo o percurso subsequente do Bem e do Mal.

O Spírito do Senhor achegava-se cada vez mais da beira das águas, mergulhava por alguns instantes e depois sempre por mais algums instantes, até que ousou descer fundo demais: a Hybris de Deus desembainhou as asas e cravou-as fundo no coração do Cristo. Esse, morto pelo desejo do amor aos Homens, tornou-se um deles e renegou o Altíssimo Amor. Amen.

02/12/2015

Shibboleth // um poema do Paul Celan

Shibboleth


Junto das minhas pedras
grandes de tanto chorar
por detrás das grades
arrastaram-me
para o meio do mercado,
para lá,
onde se desfralda a bandeira
à qual eu não eu prestei juramento.

Flauta,
Flauta-dupla da noite:
pensa na negra
roda dupla
em Viena e Madrid.

Põe a tua bandeira a meia haste,
Memória.
A meia haste
hoje e para sempre.

Coração:

dá-te também aqui a conhecer,
aqui, no meio do mercado,
Convida-o, ao Shibboleth,
para a estranheza do lar:
Fevereiro. No pasarán.

Unicórnio:

tu sabes das pedras,
tu sabes das águas,
vem,
que eu levo-te para longe
para as vozes
da Estremadura.


Paul Celan. Tradução minha.


Schibboleth

Mitsamt meinen Steinen,
den großgeweinten
hinter den Gittern,
schleiften sie mich
in die Mitte des Marktes,
dorthin,
wo die Fahne sich aufrollt, der ich
keinerlei Eid schwor.

Flöte,
Doppelflöte der Nacht:
denke der dunklen
Zwillingsröte
in Wien und Madrid.

Setz deine Fahne auf Halbmast,
Erinnrung.
Auf Halbmast
für heute und immer.

Herz:

gib dich auch hier zu erkennen,
hier, in der Mitte des Marktes.
Ruf's, das Schibboleth, hinaus
in die Fremde der Heimat:
Februar. No pasaran.

Einhorn:

du weißt um die Steine,
du weißt um die Wasser,
komm,
ich führ dich hinweg
zu den Stimmen
von Estremadura.

30/11/2015

It is with them a war or a revolution, or it is nothing.

It was in the most patient period of Roman servitude that themes of tyrannicide made the ordinary exercise of boys at school — quum perimit sævos classis numerosa tyrannos. In the ordinary state of things, it produces in a country like ours the worst effects, even on the cause of that liberty which it abuses with the dissoluteness of an extravagant speculation. Almost all the high-bred republicans of my time have, after a short space, become the most decided, thorough-paced courtiers; they soon left the business of a tedious, moderate, but practical resistance to those of us whom, in the pride and intoxication of their theories, they have slighted as not much better than Tories. Hypocrisy, of course, delights in the most sublime speculations, for, never intending to go beyond speculation, it costs nothing to have it magnificent. But even in cases where rather levity than fraud was to be suspected in these ranting speculations, the issue has been much the same. These professors, finding their extreme principles not applicable to cases which call only for a qualified or, as I may say, civil and legal resistance, in such cases employ no resistance at all. It is with them a war or a revolution, or it is nothing. Finding their schemes of politics not adapted to the state of the world in which they live, they often come to think lightly of all public principle, and are ready, on their part, to abandon for a very trivial interest what they find of very trivial value. Some, indeed, are of more steady and persevering natures, but these are eager politicians out of parliament who have little to tempt them to abandon their favorite projects. They have some change in the church or state, or both, constantly in their view. When that is the case, they are always bad citizens and perfectly unsure connections. For, considering their speculative designs as of infinite value, and the actual arrangement of the state as of no estimation, they are at best indifferent about it. They see no merit in the good, and no fault in the vicious, management of public affairs; they rather rejoice in the latter, as more propitious to revolution. They see no merit or demerit in any man, or any action, or any political principle any further than as they may forward or retard their design of change; they therefore take up, one day, the most violent and stretched prerogative, and another time the wildest democratic ideas of freedom, and pass from one to the other without any sort of regard to cause, to person, or to party.
Edmund Burke, Reflections on the Revolution in France.

24/11/2015

TS Eliot e o Renascimento

What happens is not, to be sure, always just what the author intends. It is fatally easy, under the conditions of the modern world, for a writer of genius to conceive of himself as a Messiah. Other writers, indeed, may have had profound insights before him; but we readily believe that everything is relative to its period of society, and that these insights have now lost their validity; a new generation is a new world, so there is always a chance, if not of delivering a wholly new gospel, of delivering one as good as new. Or the messiahship may take the form of revealing for the first time the gospel of some dead sage, which no one has understood before; which owing to the backward and confused state of men's minds has lain unknown to this very moment; or it may even go back to the lost Atlantis and the ineffable wisdom of primitive peoples. A writer who is fired with such a conviction is likely to have some devoted disciples; but for posterity he is liable to become, what he will be for the majority of his contemporaries, merely one among many entertainers. And the pity is that the man may have had something to say of the greatest importance: but to announce, as your own discovery, some truth long known to mankind, is to secure immediate attention at the price of ultimate neglect.
T.S. Eliot. After Strange Gods: A Primer of Modern Heresy.