27/04/2015

Filosofia & Mythologia

Um caso paradigmático do bom uso do mito é o do Thomas Mann, que encarou o mito como um símbolo. Enquanto símbolo, o mito é capaz de se tornar transparente & de potenciar uma realidade à escolha a um nível inefável. Aquilo que o torna digno, aquilo que o torna num "Homem em tempos sombrios" (ein Mensch in finsteren Zeiten) é a escolha corajosa de ter tornado essa realidade simbólica em algo que é anti-irracional.

Não digo racional, pois isso iria essencialmente contra a escolha de a) o fazer por meio da literatura e b) de o fazer por meio de um símbolo, ou seja, de um mito. Mas anti-irracional porque escolheu fazer com que esse símbolo fosse uma contra-força contra si mesmo. Escolheu fazer do simbolizado uma resistência contra o mito propriamente dito. Assim o mito torna-se um acto de resistência, antes de mais política. A dignidade e a integridade da natureza humana são preservadas pelo facto de, precisamente por essa escolha dos meios (a literatura e o símbolo), ele estar implìcitamente a reconhecer o estatuto fundamental do elemento mítico no espírito humano.

Mas a transformação do mito em mitologia sabota o gesto totalitário & obscurantista, e concede-nos a possibilidade de auto-crítica, de profanação do mito, que de outra forma seria algo exclusivamente sagrado (e com o qual nos seria portanto permitido ligar através da adoração ou da violência — tanto uma como a outra destructivas, a uma de si mesmo, a outra de todos).

A transformação do mito em mitologia inaugura a possibilidade da discussão aberta dos pressupostos simbólicos da natureza humana ao mesmo tempo sem os fortalecer nem debilitar em excesso. Settembrini, o humanista da Montanha Mágica, triunfa inesperadamente, mas também José (de José e os Seus Irmãos) transforma-se no Providenciador (der Ernäher). A interpretação dos sonhos, comunicados por linguagem, traduz-se em conselhia política pautada pela mediação entre onirologia e sagacidade; não, urge dizê-lo, por vaticínio. Numa escala maior, a descida aos Infernos (Höllenfahrt, o primeiro capítulo do José e os seus irmãos) é contraposta ao Prólogo nos Graus Maiores (Vorspiel in oberen Rängen, o último).

O argumento final extrai-se da escolha propriamente dita dos argumentos dos romances, como seja o Fausto (no Doktor Faustus), São Gregório/Édipo (no Der Erwählte [O Eleito]), a lenda bíblica de José (em José e os Seus Irmãos). Face ao poder do mito entendeu que o melhor era encará-lo numa pose combativa, com as suas próprias armas: virar o mito racional contra o mito irracional, pois só o primeiro aceita o ser humano na sua natureza dupla, e antes de mais, só o primeiro lhe concede armas de auto-defesa e não o deixa exposto à manipulação — que é, especialmente quando aparenta ser meramente filosófica, ou artística, sempre e implacàvelmente manipulação política.

A ausência do tipo de coragem necessária para aceitar a razão como uma virtude, a disponibilidade para aceitar as trevas da inteligência como uma medalha de honra, tem sido uma constante no último século. Grandes culpados, embora não os únicos, são os nietzscheanos de confissão (que confundem força com idolatria, e estimam a fraqueza taoísta como algo condenável). A falência do projecto do Iluminismo, perpètuamente anunciada por quem tem interesse em que ela realmente aconteça, há muitos anos que tem trazido a destruição dos diques que a civilização construíra contra a barbárie. Mas não é inevitável. O Thomas Mann é um dos grandes archotes que poderá evitá-la.

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