30/04/2015

Notas Práticas sobre Misticismo e Sincretismo Religioso


A realidade fáctica de que os diversos tipos de misticismo existem sempre ancorados num tipo particular de religião faz ainda mais urgir ao tipo de sincretismo religioso de que havemos anteriormente falado – pode-se falar de sincretismo antropológico – entendendo-se por isso o sincretismo que combina elementos de diversos tipos de religiões numa só, e em que, na maior parte das vezes por conseguinte, o todo é menor do que as partes. Mas por sincretismo aqui refiro-me a algo psicológico e quiçá mais incoerente ainda. Claro que esta incoerência aparentemente bizarra e estilhaçadora é derivada dum escalão profundamente conservador e tradicional: parte do princípio de que as diversas tradições religiosas foram no mais das vezes capazes de chegar a uma síntese completa das suas partes e que, onde falham, se falham, é ao nível axiomático e filosófico (o Pico tentará aproveitar este recesso). Assim sendo, procurar combiná-las, na medida em que tal deturpa o seu carácter consistente, é um crime contra a tradição não em si mas apenas porque é um crime contra a coerência interna de cada uma – e.g., não posso acrescentar a história da paixão, tão fulcral para a devoção cristã, ao Judaísmo, sem com isso o everter. Ao caminho que resta àqueles que desejariam não obstante ter acesso directo às várias correntes do pensamento religioso globais não serve nem a mono-religiosidade nem o sincretismo. Como obedecer então à injunção do Pessoa de “aumentar sem combater nunca”? Urge uma psicologia diversa da que temos até agora. As camadas de consciente e inconsciente legadas pelo Freud são inúteis, pois outra coisa não fazem que colocar as esferas do inconsciente fora do nosso domínio – é preciso sim, num primeiro momento, uma divisão do consciente em duas camadas, aquela que poderíamos chamar activa e a outra latente. A camada latente, ou camadas, seria onde estaria repousante toda a recolecção das nossas predilecções religiosas – onde jaz o meu xamanismo, o meu politeísmo, os meus monoteísmos, acessíveis mas fundamentalmente inoperantes. A camada activa do consciente será aquela detentora das crenças no momento cridas. Esta exposição e proposição coloca problemas por duas frentes. A primeira diz respeito á activação e desactivação da fase consciente. Relacionado com isto está também o valor da realidade ou ficção das crenças esposadas enquanto neste estado, e portanto da relevância deste projecto e deste texto propriamente ditos.

קדוש קדוש קדוש יהוה צבאות
קדוש קדוש קדוש יהוה צבאות
קדוש קדוש קדוש יהוה צבאות

O problema da activação e da desactivação diz naturalmente respeito ao problema da manutenção duma crença verdadeira nos princípios de fé em questão. Sendo o nosso objectivo final a aspiração à experiência mística particular às várias religiões, e não apenas uma humana empatia com os seus princípios, servir-nos-ia de pouco uma mera familiaridade e simpatia para com eles que estivesse não obstante constantemente consciente da sua caducidade. O princípio de fé tem de se tornar nesses instantes tão sólido e inamovível como os princípios do mais fervoroso dos crentes monolíticos. Isto obriga ao esquecimento da sua (hipotética) limitação temporal – consciente activo, ou seja eu, não posso saber que os meus princípios são desligáveis. O problema renasce portante pela desactivação: se os princípios são inabaláveis, então o seu desligamento é certamente uma forma de violência extrema infligida por (já vamos ver) sobre o consciente activo. Ao arrancar violento das crenças espirituais mais profundas não erraríamos muito se déssemos o nome de suicídio espiritual.

Vimos no entretanto nascer também o problema da unidade, ou melhor dizendo da soberania presente no consciente latente. Este tem de possuir várias qualidades. Antes de mais tem de conter em si as outras possíveis configurações de crença a cuja experiência mística se quiser aceder. Quer estas sejam concebidas unitariamente – como “as outras” – ou particuladamente, é irrelevante. Bem mais importante é a necessidade da existência do seguinte facto: o consciente latente tem de querer trocar uma das fases por outra. Ou seja, em maior ou menor grau, tem de as querer a todas, mas tem de ter o auto-domínio necessário para não as querer todas ao mesmo tempo – em cujo caso perderíamos a coerência conservadora que anteriormente louvávamos, e provavelmente cairíamos no sincretismo antropológico que censurámos, ou que pelo menos depusemos. Ademais, tem de saber também durante quanto tempo é que quereria conceder a preeminência a cada uma delas. Não pode deixar essa decisão às fés pois estas, como seria de esperar, quereriam como um perfeita cancro apoderar-se de tudo e viver para sempre. Reflectindo nesta linha arriscaríamos cometer uma grande confusão. Arriscaríamos pensar que esta parte do consciente latente (cuja natureza ainda está por indagar e que se nos aparece cada vez menos como algo latente!) fosse de certa forma o nosso verdadeiro eu, que a identidade pessoal lhe fossem em última instância redutível, que o consciente latente derivasse a sua autoridade e o seu poder de infligir violência ao consciente activo por virtude de lhe ser superior. Essa opinião é necessariamente falsa precisamente pois a sua veracidade refutaria a realidade da experiência mística por parte do consciente activo. Para a ocorrência da unio mystica ou devekut é força pensemos que a parte mais apta para isso fosse a mais preparada, e não uma subalterna – não porque o divino não condescendesse em relacionar-se com um subordinado (pois afirmar isso seria uma afirmação que roçaria o arianismo), mas meramente porque essa parte da alma não estaria concentrada suficientemente para o tolerar. Antes, segundo a mesma lógica, não só é crível que o consciente latente não lhe seja superior, como seria até mesmo perfeitamente concebível que a seria o consciente activo o superior, por ser ele o inaugurador e o sustentáculo da experiência mística. A falsidade desta sugestão fica patente por tudo que foi dito anteriormente.

Resta elaborar duas questões: qual o papel ou a natureza da parte deliberativa do consciente latente, e qual o principium individuationis, o princípio da individuação, nesta salganhada toda. Aquilo que urge dizer em primeiro lugar da parte deliberativa do consciente latente é que é essencial não deixar jamais de a considerar latente. Se por um instante que for lhe for concedida uma simultaneidade operativa com o consciente activo, o poder religioso deste último seria imediatamente diminuído, se bem que não aniquilado, invalidando assim a possibilidade da experiência mística. O que na realidade acontece é que ela está latente mas funcional da mesma forma que um despertador está funcional ou um temporizador. O sono não é minimamente afectado pelo facto de o despertador estar activo, e aliás este poderá estar activo tempos imensos sem que tal tenha o menor impacto no decorrer do sono. Para clarificar a metáfora: dir-se-ia que alguém dormiria de forma diferente se soubesse que haveria um despertador para o acordar, que sentiria o seu sono como condicionado. Mas o despertador pode ter sido programado sem que eu o soubesse, por outra pessoa por exemplo, e a ideia do consciente activo funcionar de maneira análoga como algo estanque é precisamente o argumento que estou a sugerir. Poder-se-ia dizer também que para o despertador funcionar correctamente teria de estar a observar a operação do consciente activo para decidir baseada na vida espiritual deste quando desactivar a presente fé e activar outra. Isso porém é um entendimento deficiente desta realidade: nós impomos a nós mesmos uma certa narrativa das oscilações de crença por que passámos, mas isso não implica de forma alguma que essas transições estivessem determinadas ou sequer articuladas entre si: a ideia de que acontecem pelo nosso melhor interesse é animadora mas antropocêntrica, e a mística tem pouco que ver com isso. Muitas pessoas conhecem várias religiões sem jamais se desligarem da primeira, mesmo que um observador exterior gostasse de dizer que tê-lo feito teria sido a seu favor.

ἅγιος ἅγιος ἅγιος κύριος σαβαώθ
ἅγιος ἅγιος ἅγιος κύριος σαβαώθ
ἅγιος ἅγιος ἅγιος κύριος σαβαώθ

a pergunta principal jaz com o princípio da individuação, a pergunta da qual tudo deriva. Como teremos de a formular para o encontrar? Já sabemos de que forma temos acesso às experiências mística: as religiões. Sabemos de que forma as religiões são escolhidas: violentamente, e arbitrariamente. Mas este tempo todo temos vindo a falar de consciente, e no meio disso, devido em grande parte ao uso da palavra activo e latente, podermos ter parecido dizer que em algum momento não estamos nós em controlo. Ora este texto foi predicado anunciando desde o princípio a oposição às diversas noções de inconsciente, ou pelo menos a sua irrelevância para as matérias em discussão. Só uma coisa escapa, que é a ânsia pelo divino cuja origem não havíamos sido capazes de desvendar. Ela parece de facto ser a raiz, o fundamento que unifica todas as outras. É ela que deseja aceder ao divino, é com esse objectivo que transmite ao consciente latente esse mesmo desejo. Numa outra perspectiva, transmite ao consciente activo a capacidade de pôr em ato o processo extático por meio das religiões. Que nome não lhe daremos? Qualquer que fosse o nome finalmente escolhido esconder-se-ia atrás de mais uma distância e deixar-nos-ia irredutivelmente insatisfeitos. Serão então os deuses, o seu terrível númen, que se esconde dentro do mais fundo eu e que como uma cria abandonada pela mãe nos tenta obrigar, e aliás construi-nos de tal forma que o nosso esqueleto espiritual estivesse de tal forma elaborado que tudo nele se encaminhasse para que a devolvêssemos à sua origem? E se sim, será essa centelha nos mesmos anelantes pelo retorno à realidade do divino? Sempre achei que o gnosticismo era uma fraude.

Mas então e se não somos nós uma centelha de deus, e se é o divino mesmo que fez a sua toca no fundo das nossas profundezas infinitas? O problema primeiro duma afirmação monumental como essa parte do sabotar do princípio da individuação. Como serei eu eu, se no fundo de mim eu sou Deus? Assumamos isto: que carrego Deus em mim como a semente carrega a flor. A primavera é o extático. Mesmo que isso fosse verdade, não estaria a dar como ponto de partida aquilo que deveria ser o objectivo final? Em outras circunstâncias acrescentaria ainda que seria blasfémia afirmá-lo; aqui porém não o é, pois estamos ainda longe das verdades das religiões, face às quais, ou melhor, graças às quais, temos ortodoxia e heresia, magnificat e blasfémia. O que é então esse grande abismo? E por é que ele anseia? Com a repetição da pergunta descobrimos mais uma vez a resposta, agora modulada: se não é uma cria perdida a ansiar pela mãe, então também não pode ser o próprio divino que se esconde. Estaria a ansiar por si mesmo, e nesse caso quase onanístico de amor sui não precisaria de nós que o reconduzíssemos a ele. O grande sábio grego, Plotino, transmite-nos que o Um se desfez devido a um acto de arrogância, mas mesmo que isso fosse verdade, que devido a esse pecado original por parte da própria divindade esta se tivesse tornado incapaz de restabelecer o seu círculo perfeito, longe mesmo assim estaríamos, e nada justificaria o facto de se ter refugiado dentro de cada um de nós apenas para voltar para próprio.

Dentro de nós há um imenso vazio. Podemos imaginá-lo como um grande túnel, de cujas trevas sai a enorme ânsia de ser preenchido. No fundo não há nada; ou, se preferirem, para me apropriar ilicitamente da linguagem dos místicos, no fundo desse infinito túnel está o nada. No momento da união mística o túnel deixa-se preencher pelo óleo de fogo do divino. Apercebemo-nos de que o fosso não ansiava em particular pelo divino, mas só que o divino, como o grande deus Thor, era o único capaz de aguentar, ainda que solamente por brevíssimos instantes, o líquido à superfície antes de escorrer para as profundezas, como água num tubo demasiado estreito para ela. Mas descer ela desce. O motivo pelo qual acedemos às exigências do fosso do nosso íntimo é porque entendemos que estamos simultaneamente a aceder àquilo que há de mais tenebroso e terrível sim, mas também mais nosso, e esse instante da exaustão corresponde a uma, talvez a última, obediência ao império de Delfos. Quanto ao divino, bem, não quero com isto dizer que é unicamente instrumentalizado e utilizado como um pretexto, mas o seu papel é certamente paragonável ao do açúcar no copo amargo do conhecimento de nós mesmos.

Sanctus Sanctus Sanctus Dominus Sabaoth
Sanctus Sanctus Sanctus Dominus Sabaoth
Sanctus Sanctus Sanctus Dominus Sabaoth

Quererá isto ao fim de contas significar uma recantação daquilo que fora dito em torno do conservadorismo das religiões e da especificidade de cada uma delas para a experiência mística, tudo em favor duma exaltação do misticismo anárquico contra o qual eu próprio avisara? Só se pensarmos que a forma é maior que a substância sem compreender que a experiência acima descrita é possível apenas no contexto de cada uma das fés e dos seus preceitos ou lassitudes. A anelação pela unio mystica sem a preparação concedida pelas técnicas tramandadas pela tradição é, como as histórias no-lo recordam constantemente e como a experiência no-lo testemunha, perigosa e possivelmente mortal. Fora isso, a situação acima descrita, embora tenha sempre de se enquadrar numa religião em específico, é finalmente aquilo que dá coerência lexical á palavra misticismo, e que permite que nos entendamos, venhamos seja de que tradição for e sendo cultores de ritos ou técnicas tão díspares como o sufismo ou os mistérios gregos. Tudo isto que disse pode ser também lido numa chave política.

Santo Santo Santo é o Senhor dos Exércitos
Santo Santo Santo é o Senhor dos Exércitos
Santo Santo Santo é o Senhor dos Exércitos

29/04/2015

Occhi miei, se mirar più [Monteverdi]



Occhi miei se mirar piu non debb'io.
La vostra luce a me tanto gradita.
Toglietemi la vita.

Se'l mio cor lasso abandonato resta
Dal tuo bel sol ond'havra lume e vita
Toglietemi la vita.

Se gia son di dolor empio ricetto
Ne pieta mi soccorre o porge aita
Toglietemi la vita.

Ma se pur vive ancor qualche speranza
Di riveder la luce gia smarrita
Conservatemi in vita.


Claudio Monteverdi. Tradução minha.


Olhos meus, se mais não posso olhar
A vossa luz que me é tão grata,
Levem de mim minha vida.

Se o meu coração cansado foi abandonado
Plo teu belo sol onde teria luz e vida,
Levem de mim minha vida.

Se me tornei num ímpio refúgio da dor
E nem piedade me acode ou dá ajuda,
Levem de mim minha vida.

Mas se vive ainda alguma esperança
De ver de novo a luz perdida
Sustenham a minha vida!

27/04/2015

Filosofia & Mythologia

Um caso paradigmático do bom uso do mito é o do Thomas Mann, que encarou o mito como um símbolo. Enquanto símbolo, o mito é capaz de se tornar transparente & de potenciar uma realidade à escolha a um nível inefável. Aquilo que o torna digno, aquilo que o torna num "Homem em tempos sombrios" (ein Mensch in finsteren Zeiten) é a escolha corajosa de ter tornado essa realidade simbólica em algo que é anti-irracional.

Não digo racional, pois isso iria essencialmente contra a escolha de a) o fazer por meio da literatura e b) de o fazer por meio de um símbolo, ou seja, de um mito. Mas anti-irracional porque escolheu fazer com que esse símbolo fosse uma contra-força contra si mesmo. Escolheu fazer do simbolizado uma resistência contra o mito propriamente dito. Assim o mito torna-se um acto de resistência, antes de mais política. A dignidade e a integridade da natureza humana são preservadas pelo facto de, precisamente por essa escolha dos meios (a literatura e o símbolo), ele estar implìcitamente a reconhecer o estatuto fundamental do elemento mítico no espírito humano.

Mas a transformação do mito em mitologia sabota o gesto totalitário & obscurantista, e concede-nos a possibilidade de auto-crítica, de profanação do mito, que de outra forma seria algo exclusivamente sagrado (e com o qual nos seria portanto permitido ligar através da adoração ou da violência — tanto uma como a outra destructivas, a uma de si mesmo, a outra de todos).

A transformação do mito em mitologia inaugura a possibilidade da discussão aberta dos pressupostos simbólicos da natureza humana ao mesmo tempo sem os fortalecer nem debilitar em excesso. Settembrini, o humanista da Montanha Mágica, triunfa inesperadamente, mas também José (de José e os Seus Irmãos) transforma-se no Providenciador (der Ernäher). A interpretação dos sonhos, comunicados por linguagem, traduz-se em conselhia política pautada pela mediação entre onirologia e sagacidade; não, urge dizê-lo, por vaticínio. Numa escala maior, a descida aos Infernos (Höllenfahrt, o primeiro capítulo do José e os seus irmãos) é contraposta ao Prólogo nos Graus Maiores (Vorspiel in oberen Rängen, o último).

O argumento final extrai-se da escolha propriamente dita dos argumentos dos romances, como seja o Fausto (no Doktor Faustus), São Gregório/Édipo (no Der Erwählte [O Eleito]), a lenda bíblica de José (em José e os Seus Irmãos). Face ao poder do mito entendeu que o melhor era encará-lo numa pose combativa, com as suas próprias armas: virar o mito racional contra o mito irracional, pois só o primeiro aceita o ser humano na sua natureza dupla, e antes de mais, só o primeiro lhe concede armas de auto-defesa e não o deixa exposto à manipulação — que é, especialmente quando aparenta ser meramente filosófica, ou artística, sempre e implacàvelmente manipulação política.

A ausência do tipo de coragem necessária para aceitar a razão como uma virtude, a disponibilidade para aceitar as trevas da inteligência como uma medalha de honra, tem sido uma constante no último século. Grandes culpados, embora não os únicos, são os nietzscheanos de confissão (que confundem força com idolatria, e estimam a fraqueza taoísta como algo condenável). A falência do projecto do Iluminismo, perpètuamente anunciada por quem tem interesse em que ela realmente aconteça, há muitos anos que tem trazido a destruição dos diques que a civilização construíra contra a barbárie. Mas não é inevitável. O Thomas Mann é um dos grandes archotes que poderá evitá-la.

Filosofia & Mysticismo

The dangers which myth and magic present to the religious consciousness, including that of the mystic, are clearly shown in the development of Kabbalism. If one turns to the writings of great Kabbalists one seldom fails to be torn between alternate admiration and disgust. There is need for being quite clear about this in a time like ours, when the fashion of uncritical and superficial condemnation of even the most valuable elements of mysticism threatens to be replaced by an equally uncritical and obscurantist glorification of the Kabbalah. I have said before that Jewish philosophy had to pay a high price for its escape from the pressing questions of real life. But Kabbalism, too, has had to pay for its success. Philosophy came dangerously near to losing the living God; Kabbalism, which set out to preserve Him, to blaze a new and glorious trail to Him, encountered mythology on its way and was tempted to lose itself in the labyrinth.
Gershom Scholem. Major Trends in Jewish Mysticism. Schoken Books (1974)

Palavras necessárias, especialmente quando transpostas fora do domínio estreito da Cabala e reaplicadas aos domínios mais irracionais do pensamento humano. A ânsia que tantos hoje têm de desejar, até mesmo de ansiar, pelo irracional, pelo emotivo, pelo ilógico, em prejuízo hostil dos seus opostos — seja isso na filosofia, na arte, ou, no caso que conheço melhor, no idolatrar tolo de certas forças supostamente libertadoras da poesia & da linguagem, é uma ânsia que deveria ser denunciada.

26/04/2015

Judas & Pedro

Il s'en est fallu de très peu que les larmes de Judas ne fussent confondues dans le souvenir des hommes avec celles de Pierre. Il aurait pu devenir un saint, le patron de nous tous qui ne cessons de trahir. Le repentir l'étouffait: l’Évangile précise qu'il se repentit. Judas fut au bord de la contrition parfaite. Dieu aurait eu tout de même le traître nécessaire à la Rédemption, et un saint de surcroît.
François Mauriac. Vie de Jesus. Seuil (1999)

um poema (+música) do Nikos Gátsos



A lua míngua como espuma viva
e esse lótus de pedra, o tempo, parte e desaparece ·
tempo pesado, tempo agreste e amargo,
como um cervo no Hades ·

No teu olhar cinzento
conquisto o meu corpo e perco a minha alma ·
na tempestade eu jamais vi a chuva verde

A lua míngua
como espuma viva
fecha dentro de si
ó, aquilo que resta do nosso amor

Nikos Gátsos. Tradução minha.

Μικραίνει το φεγγάρι σαν ζωντανό σφουγγάρι
και πέτρινος λωτός φεύγει και χάνεται ο καιρός,
βαρύς καιρός, δριμύς καιρός πικρός,
σαν ζαρκάδι μες στον Άδη.

Στο βλέμμα σου το γκρίζο
το σώμα μου κερδίζω και χάνω την ψυχή·
ποτέ δεν είδα στην καταιγίδα μια πράσινη βροχή.

Μικραίνει το φεγγάρι
σα ζωντανό σφουγγάρι
μέσα του κλείνει
ό, τι έχει μείνει απ’ την αγάπη μας.

25/04/2015

Notas sobre o Mistério

§1

Mistério

Nem sempre o Mistério
         está fora do alcance da mão, como
o país estrangeiro. Por vezes ele viaja para cá,
encosta-se às decisões materiais de
                                             um dia vulgar;
e surge, súbita e absurdamente,
no meio de uma acção do quotidiano.
Descuidados, nessa altura, chamamos ao mistério erro,
e rapidamente o eliminados.


Gonçalo M. Tavares. 1 Relógio d'Água (2004)



§2

[1.16]
SIM, a Sabedoria.
Mas primeiro respeitar o Mistério.

[2.26]
E o Mais Desaparecido é o que Aparecerá com mais força.


Gonçalo M. Tavares. Investigações. Novalis. Difel (2002).

22/04/2015

Antíoco IV

A Hildegaarda numa mão. Na outra o Ovídio, mas não os Amores ou as Metamorfoses, — os Fastos: a obra em que os meses do ano, as datas sagradas, são dispostas em dísticos involuntariamente cheios de eros. Aqui aparecem como a patina ou a semelhança de ordem imposta ao caos biforme. Não serve este prelúdio bíblico para reinstaurar a querela e suscitar séculos de filosofia & bem-intencionada concórdia. Serve sim para eu vestir a máscara de prata de Antíoco IV Epífanes, famoso por Vos enxertar os deuses no templo e regar as escadas do Santo dos Santos com o sangue dos sacrifícios. Blasfémia,  dizíeis; sim, talvez, mas também no santo dos santos do meu peito que tu eternamente a ti sagraste desejo plantar a estátua titânica do Pai Tonitruante, anelar pela sua mão a chispar com o fogo da justiça. E no altar que sou para Ti fazer escorrer sacrifícios de sangue. Como tudo o que é humano, não os aceitarás. Não obstante beberás, Jeová, e serás sofregamente um deles. Ensinarás o deserto àqueles a quem apenas no horizonte da nossa morte era concedido cavalgar. Fundir-te-ás com eles até que aprendam também eles como fulminar o ar do deserto numa noite sem chuva. Quanto a ti, aprenderás a amar sem intermediários. Aprenderás e substituirás os teus patriarcas pelo mistério tremendo da paternidade com mortais. O sangue diluído dos deuses engrossar-se-á mais uma vez nas nossas veias, e a salvação tornar-se-á para nós numa coisa supérflua.

18/04/2015

um poema do Paul Klee



Há duas montanhas
em que tudo é claro e brilhante,

a montanha dos animais e
a montanha dos deuses.

Enquanto no meio fica o
vale crepuscular dos humanos.

Quando alguém olha para cima,
apodera-se dele uma perturbadora
e implacável nostalgia,
dele, que sabe que não sabe,
por eles, que não sabem que não sabem,
e por eles, que sabem que sabem.


(1903) Tradução minha


Zwei Berge gibt es,
auf denen es hell ist und klar,

den Berg der Tiere und
den Berg der Götter.

Dazwischen aber liegt das
dämmerige Tal der Menschen.

Wenn einer einmal nach oben sieht,
erfaßt ihn ahnend
eine unstillbare Sehnsucht,
ihn, der weiß, daß er nicht weiß,
nach ihnen, die nicht wissen, daß sie nicht wissen,
und nach ihnen, die wissen, daß sie wissen.


imagem: Paul Klee, Bunter Blitz (Relâmpago Colorido), 1927

14/04/2015

die Titanen

wiewohl sie weder in mir
noch ich in ihnen wohne,
mein Blut heißt das,
was sie, nicht ich, es nennen.
freiwillig fließt es heim.
und sie, die umgezogen, hören
nicht auf aufzustehen.
hören nicht auf
laut zu nennen, aber
wen? und warum sieht niemand aus
den Ruf zu grüßen?
einer von denen wär ich auch,
einer von den zahm gennanten,
würden sie nur sich beugen
uns unser Gemüt zu lassen.
getröst! die sind nicht weg, und wir
sind noch nicht spät. wer aber sprach von
"mindestens"? von Pflichten
geht's hier nicht. da wann du stehst
auf sie stützen, und wann
du schläfst sie wachen.

09/04/2015

the burly air

não, pois eles ouvem bem
aquilo que acusas e pedes
não falam de volta pois têm
medo de nós:

daquilo que somos capaz,
da nossa alta virtude,
e mais da tua, sim, quietude
com que escreves
e apagas a ardósia

da alma, da metamorfose
da carne em titânica vela
(aquela que apagam no mar),

do facto que quando morremos
sofre mais o algoz
do que eu e tu.

sofre a água
na expectativa da barragem
sofre o músculo do espírito

quando o contraio
em teu nome.

repito o exercício
tantas vezes quantas os teus nomes.

ludibriados pelos gregos reduzimos
deuses à estatura dos homens. quanto
às mulheres, cresceram tanto
que se ficasses acordado
na vigília da noite,
se emudecesses a prece e o canto,
podias ouvir-nos a ocupar
o peristilo e o templo,
por fim o umbigo do mundo,
quiçá até mesmo
várias das ilhas.

mas cederam, uniram, partiram de novo.
e a cada alma deram do homem, da mulher,
e do deus deram o coração heróico,
ou velocidade,
ou uma cicatriz em forma de ombro de prata.
não serve como desculpa mas como dádiva
aceito.

eu sei que foi assim porque eu vi.
se caminhares a meu lado
podemos voltar lá e chamando
sᴇɴʜᴏʀ prestar contas
de todos os anos do mundo.

ou dando-me
as mãos salta para as
trevas,

não sabes o que lá há,
não se vê
nada,
mas também a vela,
que não leva a lado nenhum,
sempre que arde é por amor.