Niccolò dell'Arca. Lamento pelo Christo morto (1464). @ Igreja de Santa Maria da Vida, Bolonha.
Desta obra disse o Gabrielle d'Annunzio:
Intravidi nell’ombra non so che agitazione impetuosa di dolore. Piuttosto che intravedere, mi sembrò esser percosso da un vento di dolore, da un nembo di sciagura, da uno schianto di passione selvaggia.
Das duas
figuras presentes (podem ver as restantes aqui), o mais marcante é a reacção
absolutante antitética de ambas. Sente uma mais dor do que a outra? Alguma
delas grita com mais intensidade do que a outra? A resposta parece-me um
decidido não. Ainda assim uma protege-se com
as mãos, como se tentasse evitar que algo de mal lhe acontecesse. Mas
qual é o mal que há na cena? É a morte do Christo. Ela parece estar a tentar
fazer com que a morte do Christo não lhe aconteça — não a sua própria morte,
mas a morte Dele. Porque está escrito: «Quem acredita em mim não morrerá.»
(João 11:26) Ela parece temer pela realidade da Ressurreição (João 11:25),
talvez por ter estado presente na cena anterior, e ter ouvido como Christo
duvidou de si mesmo, e que, tal como o pecador a quem o Viaticum concede
salvação, assim também o Deus, por ter duvidado de si no último instante,
tivesse perdido o acesso à sua própria salvação. E sem a salvação e a
ressurreição do Christo («as primícias dos que dormem»), também a Humanidade
está perdida. Daí a mulher se tentar defender em agonia. Se Christo está morto
também ela o está e para sempre.
A outra
figura responde a esta antes de mais geometricamente. Se alguém as colocasse
frente a frente pareceria que estariam, em vez de no desespero do luto, numa
espécie de beijo macabro: a inclinação do corpo, das mãos, e da cabeça — até
mesmo dos lábios. Inclina-se avante como quem mergulhará. As suas mãos estão
vazias, mas mais do que vazias, vulneráveis e absolutamente dessaranjadas: as
palmas viradas para a figura sem que consigamos daí captar qual a pose ou a
reacção às quais almejaria. Desconhecemos o que pretende. Consolar-se a si
mesmo consolando o morto, adivinhamos. Veio a correr, como no-lo demonstra a
túnica projectada para trás, mas ainda assim toda ela é para nós um enigma.
Porque é que as mãos estão inclinadas para trás, uma delas até mesmo de palma
para cima (na sugestão, rejeitada, duma prece), de maneira a não acompanharem de forma alguma o corpo? Alguém
disposta como ela tem um objectivo que ultrapassa de longe o luto e o
compianto. Está perfeitamente disposta para, ao chegar finalmente ao Christo e
ao curvar-se perante ele, o levantar ou pelo menos tentar levantá-lo ao seu
colo.
É Maria, Mãe
de Deus, no momento que chronologicamente antecede a Pietà, quando o
levantará e o erguerá aproximando-o dos céus. Na Antiguidade dizia-se que os
seres humanos caminham de pé para estarem mais perto dos céus. Na Ode à
Alegria, Schiller-Beethoven perguntam: Ihr stürzt nieder, Millionen? [Curvais-vos, milhões, (em busca do Criador)?] E censura-nos por essa subserviência. Em vez dela imperam: Such' ihn überm Sternenzelt! [Procurai-o no toldo das estrelas!] O acto de Maria é, à escala humana, o
reconhecimento de que o Christo é Deus. É a dramatização gestual do Credo.
Mas, no sentido em a nossa linguagem, ao contrário da de Javeh, raras (se bem
que honrosas) vezes tem carga criadora, o Credo permanece um reconhecimento
ecstático duma realidade transcendente. O gesto de Maria, pelo contrário, não é
um de reconhecimento, é, como lhe quisermos chamar, uma acção. Nesse sentido é
profundamente theológico e nada philosóphico. Quando Maria corre para o Christo
morto com os braços resolvidos a erguê-lo, é porque ele jaz no chão humilde. É
preciso que a Theotokos faça alguma coisa. Se Christo é, como lembrávamos, «as
primícias daqueles que dormem», então a Pietà é as primícias da Ressurreição.
De maneira alguma pode isto ser mais jubilante do que na conclusão de que é
preciso a acção dum ser humano para pôr em efeito a Ascensão do próprio Deus.
Dum ser humano que no sofrimento mais atroz, mais inconcebìvelmente doloroso —
aqueles olhos que, num puro milagre de esculptura, estão simultaneamente
fechados e elevados aos Céus — faz aquilo que, por pouco, por nada que seja,
levantar — como o rito suplicante da Grécia — consegue ser ainda assim o acto
mais poderoso concedido à abandonada raça dos mortais, a apotheose; consegue
tornar-se a causa dessa apotheose, não a própria, mas a de outrém — da apotheose
daquele Deus que ao ser Deus é também Deus Vivo, e que no-la deve.
O Lamento e a
Ressurreição e a Apotheose (talvez também a Jerusalém Celeste) são tudo o mesmo instante.
Isto é constante em todos os grandes Lamentos, algo que Monteverdi, outro
renascentista como Niccolò di dell'Arca, percebeu muito bem, principalmente
quando plagiou a sua composição mais pungente, o Lamento
di Arianna, o momento em que Ariadna ressoa o seu grito de dor antes da
sua própria apotheose na montanha, para o transformar com letra diferente num Lamento della Vergine.
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