Lemos no nono libro dos Gesta Francorum uma muito inesperada história: Quando Antioquia cai, Guido de Taranto desespera e dirige-se a Deus, Deus verus, chama-o, para lhe anunciar algo: se a derrota do seu exército que lhe fora anunciada tiver realmente acontecido, se a expedição feita para liberar o Santo Sepulcro porque Deus vult tiver sido realmente esmagada, eles deixarão de ser cristãos “nós e os outros Cristãos abandonar-te-emos, não mais te celebraremos, e jamais seremos ouvidos a invocar de novo o teu nome.” Este tipo de chantagem com o divino é rara na era cristã – indoctus como sou confesso até ter sido esta a primeira vez que a testemunho–, embora faça todo um maior sentido em tempos mais antigos. Pois então um deus tinha o propósito firme de proteger os seus cultores, fosse de inimigos fosse de si próprio (aquilo a que se chama “ritual apotropáico” não é mais que o taxa de protecção paga ao deus mafioso). A partir do momento em que essa protecção deixava de funcionar, podia pôr-se em causa a validade da religião; um povo vencido podia sentir-se justificado a trocar de deuses, um raciocínio que vemos presente até na christianização da Britânnia (testemunha-o Beda no livro II da Historia Ecclesiastica). Um lateral mas curioso pormenor consiste ainda em notar como a máquina de culto romana assentou em grande força na captação dos deuses vencidos incorporando-os e suplantando-os, numa Aufhebung avant la lettre: vencidos mas nossos.
Esta
mentalidade de infidelidade para com os deuses assenta em dois
fundamentos theológicos: o primeiro é a distinção entre deus
e providência: para conceder aos deuses vontades potentíssimas que
pudessem entre si colidir e ao mesmo tempo conciliar isso com uma
crença no fatum, era impossível que a vontade de um
deus em particular fosse identificada com o destino: a parte de longe
mais interessante da literatura grega, desde a moira de Aquiles à
morte anunciada de Hipólito nascem deste tensão dificílima que
para os gregos jamais foi resolvida e que permite que grande parte
das Eddas narre a saga de Ódin para conhecer o seu próprio destino
e dos restantes deuses. Os romanos acolheram o espírito estóico
dum logos simultaneamente sobrehumano e
sobredivino e conflagraram a sua religião numa
despersonalização progressiva dos deuses, até se chegar ao ponto
onde nem mesmo as forças mais armipontentes como o será a Juno da
Aeneida podem ferir o destino a partir do instante em que sic
volvere Parcae - é ainda graças a esta atitude romana
perante os deuses que permitiu que a Idade Média acolhesse este
paganismo de philósophos, e que os grandes problemas
theológico-poéticos da Renascença começassem aquando da leitura
dos clássicos literários gregos (o syncretismo de Pico jamais
compreenderia Sóphokles). Esta religião romana seguiu o percurso da
despersonalização das divindades e da sua transformação em forças
cósmicas: quando Júpiter fala na Aeneida, não fala com o achego
caloroso do Zeus de Sarpédon, mas sim como alguém que contempla a
História como uma obra de arte, bela até mesmo ou talvez porque
horrível, como Aristóteles. Os grandes gritos de dor de Hipólito
que pergunta a Ártemis porque não salvou o seu cavaleiro não são
respondidos com uma justificação de theodiceia, mas sim com a
vontade contrária de Vénus, mas é ainda assim permitido a Hipólito
receber a fraca consolação de que será vindicado aquando do
assassinato futuro de Adónis às mãos de Ártemis, num dia em que
será a vez de Cípris se ver impotente perante a vontade da deusa
contrária. Os estóicos tomaram a via contrária, a via da
theodiceia absoluta, desumana porque inumana, despreocupada porque
destacada, e onde o sofrimento ou a glória humana carecem de
explicação na mesma medida em que a contracção das forças
físicas carecem de explicação: a diferença entre Epicuro e Zenão,
entre o riso olýmpico e distante dos deuses primeiras e o deus
espinosista do segundo não está tão distante assim.
O Deus estóico, a Razão que vigia, está para além da preocupação e da cura assim como está para além do bem e do mal. Alasdair McIntyre diz no seu After Virtue que a filosofia estóica teria tido uma muito maior força no pensamento ocidental via a sua crença numa Lei suprema a que tudo obedece não tivesse desaguado na grande amálgama que era o império uma corrente legalista ainda mais forte, o hebraísmo de Israel. Israel passa pelas duas correntes aqui nomeadas. No Pentateuco vêmo-la combativa in nomine dei contra povos adversos, em batalhas contra os quais a potência e a legitimidade das divindades viria a ser estabelecida. Sede a dextris meis, donec ponam inimicos scabellum pedum tuorum. Aqui os israelistas não diferem substancialmente dos povos gentios aos quais eu aludia. Narra Freud no Moisés e o Monoteísmo a tensão entre o povo violente dos adoradores de Javeh e a crença theológica e monotheísta que crescera no Egipto sob o nome de Akhenaton. No José e os Seus Irmãos, Thomas Mann antecipa-se a Freud e traça mýthicamente a experiência egíptia de Akhenaton à presença de José enquanto Grão-vizir, mas, a termos que escolher a històricamente mais provável é eligenda a hypóthese de Freud. Mas Freud imagina que a errância dos 40 anos no deserto se deveria à penitência pelo assassinado de Moisés, duma moral demasiado dura e exaltada para que se pudesse verdadeiramente viver com ela sem viver na schizophrenia causada pelas suas exigências sobrehumanas, como mais tarde diagnosticará Luthero no seu Sobre a Liberdade do Christão.
Pelo menos no que eu sou capaz de perceber, identificamos duas correntes na Bíblia hebraica, a primeira uma theologia de força, duma divindade triumphante, que a ter sido seguida nas suas consequências naturais teria relegado o povo judeu para o pó da história, como aconteceu a tantas outras nações. Quando Israel é derrotada pelo império da Babylónia, o templo é destruido, e a fina-flor de Israel é levada no dito 'captiveiro da Babylónia', este podia ter sido o fim: Deus não nos protegeu, a nós o seu povo eleito, logo Deus ou não é deus ou não é o nosso deus. Não foi este o caminho escolhido, mas sim aquele traçado mais notavelmente em Ezequiel, onde a notação dum percurso inescrutável do destino (que teria muito de comum com a noção estóica) se combina com a noção dum deus pessoal, que como deus pessoal e omnipotente teria de ser igualmente justo, e como justo bom. Esta conclusão, a que chegará também por vias tortas Descartes, não carece de incongruências, como Job testemunha mais notavelmente, mas é apesar de tudo aquilo que permitirá ao povo Judeu sobreviver não só ao captiveiro da Babylónia como mais tarde ao falhanço da revolta de Bar Kokhba e à destruição do Segundo Templo, assim como aos séculos de sofrimento e pogrom constantes, à aventura de Sabattai-Sevi, até por fim a ferida se voltar a abrir, como nunca acontecera depois da destruição do Templo, com a poesia negra da Shoah, à qual todas as tentativas de responder falham, como a suposta “theologia do Holocausto” (este falhanço é também o tema do de outro modo medíocre God on Trial (2008), assim como virtualmente os opera omnia do George Steiner).
O Deus estóico, a Razão que vigia, está para além da preocupação e da cura assim como está para além do bem e do mal. Alasdair McIntyre diz no seu After Virtue que a filosofia estóica teria tido uma muito maior força no pensamento ocidental via a sua crença numa Lei suprema a que tudo obedece não tivesse desaguado na grande amálgama que era o império uma corrente legalista ainda mais forte, o hebraísmo de Israel. Israel passa pelas duas correntes aqui nomeadas. No Pentateuco vêmo-la combativa in nomine dei contra povos adversos, em batalhas contra os quais a potência e a legitimidade das divindades viria a ser estabelecida. Sede a dextris meis, donec ponam inimicos scabellum pedum tuorum. Aqui os israelistas não diferem substancialmente dos povos gentios aos quais eu aludia. Narra Freud no Moisés e o Monoteísmo a tensão entre o povo violente dos adoradores de Javeh e a crença theológica e monotheísta que crescera no Egipto sob o nome de Akhenaton. No José e os Seus Irmãos, Thomas Mann antecipa-se a Freud e traça mýthicamente a experiência egíptia de Akhenaton à presença de José enquanto Grão-vizir, mas, a termos que escolher a històricamente mais provável é eligenda a hypóthese de Freud. Mas Freud imagina que a errância dos 40 anos no deserto se deveria à penitência pelo assassinado de Moisés, duma moral demasiado dura e exaltada para que se pudesse verdadeiramente viver com ela sem viver na schizophrenia causada pelas suas exigências sobrehumanas, como mais tarde diagnosticará Luthero no seu Sobre a Liberdade do Christão.
Pelo menos no que eu sou capaz de perceber, identificamos duas correntes na Bíblia hebraica, a primeira uma theologia de força, duma divindade triumphante, que a ter sido seguida nas suas consequências naturais teria relegado o povo judeu para o pó da história, como aconteceu a tantas outras nações. Quando Israel é derrotada pelo império da Babylónia, o templo é destruido, e a fina-flor de Israel é levada no dito 'captiveiro da Babylónia', este podia ter sido o fim: Deus não nos protegeu, a nós o seu povo eleito, logo Deus ou não é deus ou não é o nosso deus. Não foi este o caminho escolhido, mas sim aquele traçado mais notavelmente em Ezequiel, onde a notação dum percurso inescrutável do destino (que teria muito de comum com a noção estóica) se combina com a noção dum deus pessoal, que como deus pessoal e omnipotente teria de ser igualmente justo, e como justo bom. Esta conclusão, a que chegará também por vias tortas Descartes, não carece de incongruências, como Job testemunha mais notavelmente, mas é apesar de tudo aquilo que permitirá ao povo Judeu sobreviver não só ao captiveiro da Babylónia como mais tarde ao falhanço da revolta de Bar Kokhba e à destruição do Segundo Templo, assim como aos séculos de sofrimento e pogrom constantes, à aventura de Sabattai-Sevi, até por fim a ferida se voltar a abrir, como nunca acontecera depois da destruição do Templo, com a poesia negra da Shoah, à qual todas as tentativas de responder falham, como a suposta “theologia do Holocausto” (este falhanço é também o tema do de outro modo medíocre God on Trial (2008), assim como virtualmente os opera omnia do George Steiner).
Esta
maneira de pensar transfere-se para o pensamento theológico da
christandade. Da justiça de Deus, da sua bondade, não faz parte
qualquer concessão à cessação do sofrimento: Christo é aliás
até mesmo entendido ele enquando um sacrifício, algo de
infinitamente bom sacrificado em prol de um bom maior, por muito que
os seus fiéis não compreendessem (e como poderia compreender? O
Messias deveria abrir os céus e fazer de lá marchar doze legiões
de anjos, e ao invés disso acaba pregado a um lenho). O que acontece
é que este destacamento que existe no Christianismo primitivo entre
divindade e vitória, entre sofrimento e justiça, permanece fiel à
letra dos escritos apenas enquanto os Christãos são perseguidos ou
em perigo de vida. Pois que nisso há de coragem, permanecer fiel a
um deus enquanto todos os seus fiéis são trucidados. Tudo isto
termina por culminar, dizem-me (pois nunca a li), na Civitas
Dei, onde não só o sofrimento como também toda a existência
terrena são relegadas à civitati hominis e
portanto consideradas secundárias se não mesmo despiciendas em face
à verdadeira existência, simultaneamente paralela e futura, na
cidade de deus. Mas a partir do momento em que o triumpho do
christianismo se faz político, e o desastre do saque de Roma é
theologicamente compreendido quer no Ocidente quer no Oriente, a
herança derrotista, a herança segunda a qual dar a outra
face era preceito, desaparece, quer no Ocidente onde
a propaganda fides tomará dentro em breve armas,
quer no Oriente onde o Imperador permanecerá até ao fim o sacro
detendor de todos os insignia imperii em nome de
deus. (Os Judeus viviam durante este tempo em humilhação, portanto
não é de admirar que mantivessem a theodiceia viva, como um
instrumento necessário à sua sobrevivência enquanto povo.) A
verdade é que o christianismo é humano, e é portanto de considerar
que o polýtheismo, ou pelo menos a theologica do deus triumphante,
sejam um estado religioso mais natural da humanidade, pois que sempre
que a rédea é soltada, Deus transforma-se em conquistador, Christo
em bandeira, e a propagação da fé do amor faz-se pela via das
armas (em Coimbra há um graffiti bastante engraçado: “lutar pela
paz é a mesma coisa que foder pela virgindade”).
Uma
das peculiaridades mais interessantes do Christianismo é a maneira
como é capaz de, embora na vitória se comporte como qualquer outra
religião triumphante, ou pelo menos a massa de crentes, embora
certamente os theólogos não sejam imunes à loucura da vitória in
signo crucis (dando razão ao platonismo para o
povo do nosso Fred), seja capaz de na derrota ressuscitar a
sua theodiceia latente seja pela via estóica, crendo ser essa via
natural das coisas, a vontade inescrutável de Deus como no-lo diz
Paulo, ou por outro lado pelo caminho da auto-flagelação entrando
em modo socrático de procurar-se a si mesmo, procurando os seus
pecados e atribuindo a Deus a justiça de o ter castigado pelo seu
orgulho, sobérbia, pecados, etc. O que é curioso é que isto
transformaria a fé christiana virtualmente indestructível em
combate, não fosse a mais recente investida não vir de uma outra
religião mas sim da irreligiosidade e do atheísmo militante, embora
mesmo aí haja sinais de punho fechado e estranhas posições de
força.
É
aqui que de certa forma entra em cena a cena dos Gesta
Francorum com que abri este texto, com a posição
profundamente pagã e polytheísta de Guido de Taranto, que decide
pôr de parte o pensamento christão de justificação de deus a todo
o custo para exigir a contrapartida lógica da sua lealdade: se
partir numa expeditio cruce signata não é o
bastante para assegurar a boa-vontade de Deus omnipotente, o que
será? Por descrença ou desespero, Guido está pronto a abandonar
deus. O curioso aqui é que não parece haver aqui qualquer reclame
de glória pessoal, mas sim apenas um grito para que deus se ajude a
si mesmo. Estamos muy longe do do ut des pagão.
Guido não é um mártyr, pois que não exige para si glórias
futuras depois da morte. É uma chantagem problemática, pois que tem
Guido a ganhar com tudo isto? Parece-nos que nada, e a não ser que
queiramos atribuir às suas afirmações um carácter literal –
algo que é, apesar de tudo, possível, especialmente numa sociedade
guerreira, talvez até ainda não totalmente separada do espírito do
combate sem esperança com que Tolkien nos brinda em The
Monsters and the Critics. Mas caso queiramos apostar numa leitura
psychològicamente mais arriscada, podemos tentar acusar o bluff de
Guido: tu amas o teu deus, caso contrário não estarias a lutar sem
recompensas pela sua Jerusalém; não desejas realmente de maneira
alguma abandoná-lo, e portanto a tua ameaça é chantagem. Chantagem
com o quê em vista? Que Deus mude de opinião, e se salve a
si mesmo. Colocar porém Deus entre a espada e a parede, mesmo em
prol da glória do próprio Deus, é algo de muito arriscado. É
preciso um amor muito forte para o fazer. O objectivo aqui é fazer
Deus mover-se, mesmo que para isso seja necessário sacrificar-se a
si mesmo. Nesta troca, depois de dissipada a nuvem da oferenda, Guido
oferece a sua alma em troca de Deus decidir permitir que o Christãos
libertem o Sancto Sepulchrum. Conheço apenas duas outras personagens
em toda a história da litteratura e da theologia que ousaram um tão
grande amor. Uma delas é a Weil, a outra é o seu antecessor
espiritual, Judas Iscariotes. Nem os mártyres, nem mesmo o Christo,
chegaram perto: pois que esses ofereciam o corpo em troca da alma, e
depois de Platão essa é uma escolha fácil, não lhes custa nada. Mas a Weil, o Iscariotes, e agora o Guido, oferecem
aquilo que de mais valioso têm, a alma, por amor. Não há maior
sacrifício.
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