Ainda estou por conhecer alguém de sábios conselhos que leve a sério a tradução da Comédia do Vasco Graça Moura, embora deixe em aberto a possibilidade de existirem bem escondidos. Entre uma syntaxe convoluta quando não mesmo hermética, usos injustificados de vocabulário antiquado, e deturpações gratuitas do sentido que vão muito além da licensa poética que um projecto como este se propõe, resta-nos esperar que o deus a que Graça Moura tudo isto sacrificou — a Sancta Dýade Métrica-Rima — se sinta honrado e apaziguado. Para nós restantes mortais resta-nos concluir com pesar que a única tradução do épico de Dante existente no mercado é francamente má. Volta e meia dou por mim a tirar de novo essa triste conclusão - de cada vez que caio no oblívio e volto por alguma razão a folhear o tomo - algo tornado fácil por algo que é uma das poucas virtudes do livro, a saber a presença bilingue do original italiano.
O catalysador foi desta leva este post n'
a namorada de wittgenstein. Instintivamente lembrei-me do canto XXVII do
Inferno, aquele que é, na sequência do anterior XXVI onde se narra a ousadia de Ulisses, sem sombra de dúvida um dos mais belos cantos do primeiro terço da
Comédia. T.S. Eliot parece ter concordado, pois que escolheu abrir
The Love Song of J. Alfred Prufrock com versos de lá tirados - que foram, aliás, com grande probabilidade as primeiras palavras que alguma vez li em italiano.
S'io credesse che mia risposta fosse
a persona che mai tornasse al mondo,
questa fiamma saria senza più scosse.*
Ma perciò che giammai di questo fondo
Non tornò vivo alcun, s'io od' il vero,
Senza tema d'infamia ti rispondo.
Inferno XXVII 61-66
Pudesse eu crer minha resposta fosse
a pessoa que um dia torne ao mundo,
não daria esta chama tanto couce;*
mas dado que jamais cá deste fundo
vivo se regressou, se és verdadeiro,
sem ter medo de infâmia te secundo.
(VGM)
Se eu acreditasse que estaria a responder
A alguém que voltaria um dia ao mundo,
Esta chama não se voltaria a agitar.*
Mas visto que nunca antes deste fundo
Regressou alguém vivo, se o que eu ouço é verdade,
Sem temor de infâmia te respondo.
(Tradução minha mais literal.)
* Neste círculo do inferno descrevem-se os mortos envoltos em chamas que, ao falar, tremeluzem.
Quem continua a falar é o maravilhoso Guido da Montefeltro, monge-mercenário, que após se arrepender da sua carreira de bandido e de malfeitor decide assumir ordens e tornar-se monge franciscano. A sua salvação estaria garantida, não fosse pelo momento em que o Papa Bonifácio VIII lhe exige que lhe revele as insídias necessárias para deitar por terra Penestrino. Guido hesita, mas o papa termina
"Lo ciel poss'io serrare e diserrare,
come tu sai; però son due le chiavi
che 'l mio antecessor non ebbe care."
Allor mi pinser li argomenti gravi
là 've 'tacer mi fu avviso 'l peggio,
e dissi: "Padre, da che tu mi vali
di quel peccato ov'io mo cader deggio,
lunga promessa con l'attender coro
ti farà trïunfar ne l'alto seggio."
103-111
O céu posso eu cerrar e descessar,
como sabes; a tal há duas chaves
que o meu antecessor não quis guardar."
Então me levam argumentos graves
a pensar que calar-me era o pior,
e disse: "Padre, desde que me vales
desse pecado onde ora eu cair for,
longa promessa e curto desconforto
na alta sede em triunfo de hão-de pôr."
(Tradução de VGM, com a qual não tenho grandes problemas fora o bizarro "curto desconforto" onde o italiano tem "l'attender corto", ou seja, algo como "cumprir apenas a curto prazo", referindo-se a quebrar juras, algo ao qual na tradução do VGM nem se alude.)
Fiando-se portanto nos poderes divinos do trono papal, Guido da Montefeltro ajuda o Papa. Eis se não quando falece, e quando S. Francisco está para o carregar até aos céus aparece um demónio que o nega, com o argumento mathemático de que
"ch'assolver non si può chi non si pente,
ne pentere e volere insime puossi
per la contradizion che non consente." 118-120
"não há perdão sem arrependimento,
nem vontade a remorso junta é dado,
não dá a contradição consentimento"
(VGM)
"não se ponde absolver quem se não arrepende,
nem se pode arrepender e querer ao mesmo tempo
pois não a contradição não o consente."
(Minha)
E no pasmo de Guido quando se apercebe que o diabo usava um argumento escolástico e espacial, remata
"Forse
tu non pensavi ch'io löico fossi!"
122-123
"Talvez
lógico não me penses consumado!"
(VGM - frase absolutamente incompreensível - para mim ao menos, fatebor enim, - sem o recurso ao italiano, que é simples e cristalino e sem qualquer ambiguidade.)
"Talvez
não julgasses que eu fosse um lógico!"
O que para além de anunciar o malogro dos truque do Guido da Montefeltro, sugere que possa haver algo de veramente diabólico na lógica, que na era de Dante, com o nascimento do escolasticismo, estava a fazer o seu retorno pela pena de Aristóteles. Não sei como é que vou dizer isto aos professores de Lógica Simbólica.