20/04/2018

Fogo, Fogo

FOGO, FOGO
Adam Zagajewski
(Marco Bruno trad.)

Fogo de Descartes, fogo de Pascal,
cinza, centelha.
Durante a noite arde uma invisível fogueira,
um fogo que ao arder não destrói
mas cria, como se quisesse devolver
num só momento tudo aquilo que as chamas
subtraíram em vários continentes,
a biblioteca de Alexandria, a fé
dos Romanos e a angústia duma rapariguinha
algures na Nova Zelândia.
                 O fogo como os exércitos
Mongóis assola as cidades feitas de madeira
e de pedra, e em seguida ergue
casas arejadas e palácios nunca vistos,
impõe a Descartes
que destrua a filosofia e construa outra nova,
metamorfoseia-se numa sarça-ardente,
desperta Pascal, põe os sinos a repicar
e derrete-os com o excesso de fervor.
Já reparaste na maneira como ele lê
os livros? Folha a folha, devagar,
como alguém que mal aprendeu
a soletrar.
                  Fogo, fogo, eterno
fogo de Heraclito, voraz mensageiro,
rapaz com a boca negra de bagas.


(In 'sombras de sombras', Tinta da China, 2018)

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