02/12/2010

haveria um único compasso de Mozart que pudesse exprimir um mal intrínseco?

Para além do verdadeiro e do falso, para além do bem e do mal. Estas dicotomias relacionam-se intimamente, ainda que de formas complexas. A música pode ser usada para maus fins quando é composta e executada para glorificação da tirania política, do kitsch comercial. Pode ser, e já foi, tocada suficientemente alto para abafar os gritos dos torturados. Esses usos, de que é emblemática a exploração da música de Wagner, mas também da Nona de Beethoven (recorde-se o apontamente de Adorno!), são absolutamente contingentes. Não derivam da música em si, não negam a extraterritorialidade ontológica e formal da música relativamente ao bem e ao mal. Avesso a Wagner, Lukács perguntou se haveria um único compasso de Mozart que pudesse ser usado para fins políticos, que pudesse exprimir um mal intrínseco. Quando eu falei deste desafio a Roger Sesssions, o mais gentil dos compositores, este respondeu, sentando-se ao seu piano e tocando a ária ameaçadora da Rainha da Noite na Flauta Mágica. Contudo, acrescentou imediatamente: "Não, Lukács tem razão."

George Steiner, Errata: revisões de uma vida. Margarida Vale de Gato (trad.) Relógio d'Água (1997)

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