A ópera é sincronização de tudo o que nela entra: o drama complemente o texto que complementa a música (que no entanto assume o papel preponderante, são "As Bodas de Fígaro" de Mozart e não de Lorenzo della Ponte, por exemplo). Quando isso não acontece, poderíamos dizer que a falha em algum aspecto: o equilíbrio que une os elementos deixa de existir, a colagem torna-se frágil, e a música passa a tornar-se uma simples desculpa para o teatro, ou o teatro uma simples desculpa para a música coral. Quando Verdi recebeu a notícia de que uma cantora sua favorita iria estrear o papel de Lady Macbeth, escreveu até uma carta a protestar, "ela canta demasiado bem [...] Lady Macbeth é maléfica, devia cantar mal, até não cantar de todo".
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A Flauta Mágica tem apenas uma vilã significativa, a Rainha da Noite. Que quando não está a enviar cavaleiros incautos para servir inconscientemente os seus desígnios está a ordenar à filha que assassine o pai: este paragono do mal que não pode ser refutado: Como é que se poderia ser pior que isto?
A vingança infernal arde no meu peito,
Morte e desespero incendiam-se à minha volta!
Se Sarástro não sentir graças a ti a dor da morte,
Deixarás para sempre de ser a minha filha
Deserdada serás para sempre
Abandonada serás para sempre
Destruída serás para sempre
Todos os laços da natureza
Se não fizeres Sarástro empalicer!
Ouvi, deuses da Vingança, ouvi o juramento duma mãe!
Apresentada aqui, a partir de 2:02
O culminar da ária está entre a linha 4 e 5 (a linha que ela repete é "So bist du meine Tochter nimmermehr", "Deixarás para sempre de ser a minha filha", mas aqueles Sis não são verbalmente articulados), ou seja, precisamente na linha onde se condensam todos os pecados dramáticos da Rainha, que mete lá para o meio satanismo, parricídio, filicídio, e sei lá eu mais o quê, Mozart (à revelia claro do texto do libretto) escreve uma profunda elevação musical. O mal aqui é redimido pela sua beleza estética, e sendo esteticamente superior é portanto moralmente superior.
Não se pode ler a ópera toda a partir deste passo — de qualquer modo, logo a seguir à saída da Rainha entra Sarastro, que consola a filha explicando-lhe quão maléfica a mãe é — mas se Mozart pretendeu escrever a música para um mundo de bem/mal (e seríamos levados a crer que sim), o seu génio traiu-o: se a invocação às divindades da Rainha da Noite é de este poder, o de Sarastro, um hino a Ísis e a Osíris, a torcer pelo lado da iluminação e do esclarecimento [maçónico], apesar de majestoso, não pode deixar de ser um bocadinho pãozinho sem sal quando comparado. Até na memória duma civilização, a Rainha vencida triunfou sobre o seu luminoso vencedor.
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