22/11/2010

O Génio em Chamas - Thomas Bernhard e O Náufrago


Três pianistas encontram-se e estudam juntos em Viena. Um deles é Glenn Gould, os outros dois não interessam, porque um deles é Glenn Gould. A natureza humana tem o limite da técnica, o do suor até às 4 da manhã, o do isolamento obcedado de quem tudo sacrifica em prol de um pouco mais de virtuosismo; e o do génio, que potencia todo o esforço que lhe é dedicado mil níveis além e que condena todo aquele que não é génio —mesmo que à arte tenha dedicado quatro vidas, mesmo que lhe tenha sacrificado o amor, a família, a humanidade— o génio que condena todo o não-génio à mediocridade. E a única opção solenemente possível para o artista autêntico, autêntico e medíocre, é destapar-se do véu tonto e retirar-se da arte.

Um desses pianistas é destruido pela acusação passageira de Glenn Gould, que lhe chama "náufrago", e que lhe toca as Variações de Goldberg de maneira veramente sobrehumana. A semente da arte de Glenn Gould não é vida para os seus antigos companheiros, não os potencia à sobrevivência, alimenta-lhes obcedamente a sua própria potência, corrompe-os, e é o delírio auto-destructivo que acaba por ser a manifestação última da influência do génio naqueles cuja alma era humana demasiado humana para conter sequer a possibilidade da existência dum génio daquela estatura. Um suicida-se. O outro passa o resto da vida a escrever um suposto mega-ensaio "Sobre Glenn Gould".

Suspeitamos que é o livro que lemos. Tal como nos promete, é menos sobre Glenn do que sobre a influência superlativa e quase hierática que a mera existência dele significa para o mundo. É um projecto falhado, tal como a Eneida d'A Morte de Vergílio é um projecto falhado, tal como a própria Morte de Vergílio é um projecto falhado, um alcance que contém em si o podre da própria inconsistência ontológica da arte que não pode existir, que não deve mortalmente existir. As Variações de Goldberg de Gould são aqui esse verme gigantesco, uma Medusa que aqueles não fadados a destruí-lo só podem olhar de relance e mesmo assim o risco é gigantesco. O autor não pode mais tocar piano, pode apenas, e rasteiramente, tentar chegar a alguma distância visível da interpretação das Variações, mas tal pode apenas ousá-lo projectando-se através da literatura, deste livro que é ele mesmo "Variações", numa falsidade e cobardia que só poderia ter uma saída. Poderíamos dizer, "Variações de Glenn Gould", ou mais concrectamente, "Variações sobre o Génio Destruidor de Glenn Gould". Só pode ser apenas mais um projecto falhado, porque não é uma expressão individual do génio em questão, é uma tentativa ressentida de alguém que vive de reflexos e de podre inveja: a única reacção possível, a única reacção humana verdadeiramente humana em confronto com uma perícia heróica que a transcende.

O tema desta "variação literária" é essa tarde em que Wertheimer, o amigo suicida do autor, ouve Glenn a tocar, e a percepção de que toda a sua vida culminará em desgraça. É esse tema diacrónico, trágico, que vai ecoando páginas contínuas do livro como uma sinfonia de morte. Temas menores vão-se desenvolvendo, enquanto a variação  se mantém, a tentativa de Joyce de transpor medidas musicais para a literatura no seu capítulo musical, na sua fuga per canonem, chega aqui a um ponto notável. Virá a morte e será uma variação musical sobre todos os teus falhanços, todas as provas de que terias sempre de ficar aquém, que não poderias jamais ser o melhor —sua, labora, virá a morte e o génio rir-se-á na tua cara.

O Náufrago, Thomas Bernhard. Relógio d'Água. Leopoldina Almeida (trad.)

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