20/05/2010

Teologia positiva

When Zorba returned one evening, he asked me anxiously:
'Is there a God - yes or no? What d'you think, boss? And if there is one - anything's possible - what d'you think he looks like?'
I shrugged my shoulders.
'I'm not joking, boss. I think of God as being exactly like me. Only bigger, stronger, crazier. And immortal, into the bargain. He's sitting on a pile of soft sheep-skins and his hut's the sky. It isn't made out of old petrol-cans, like ours is, but clouds. In his right hand he's holding not a knife or a pair of scales - those damned instruments are meant for butchers and grocers - no, he's holding a large sponge full of water, like a rain-cloud. On his right is Paradise, on his left Hell. Here comes a soul; the poor little thing's quite naked, because it's lost its cloak - its body, I mean- and it's shivering. God looks at it, laughing up his sleeve, but he plays the bogy man: "Come here," he roars, "come here, you miserable wretch!"
"And he begins his questioning. The naked soul throws itself at God's feet. "Mercy!" it cries. "I have sinned." And away it goes reciting its sins. It receites a whole rigmarole and there's no end to it. God thinks this is too much of a good thing. He yawns. "For heaven's sake stop!" he shouts. "I've heard enough of all that!" Flap! Slap! a wipe of the sponge, and he washes out all the sins, "Away with you clear out, run off to Paradise!" he says to the sou. "Peterkin, let this poor little creature in, too!"

Nikos KazantzakisZorba the Greek, Carl Widman (trad), faber and faber (2005)


A imagem é do filme inspirado no livro, Alexis Zorba, de 1964



04/05/2010

Is it possible that spring could be / once more approaching?

Alcove

Is it possible that spring could be
once more approaching? We forget each time
what a mindless business it is, porous like sleep,
adrift on the horizon, refusing to take sides, "mugwump
of the final hour," lest an agenda—horrors!—be imputed to it,
and the whole point of its being spring collapse
like a hole dug in sand. It's breathy, though,
you have to say that for it.
And should further seasons coagulate
into years, like spilled, dried paint, why,
who's to say we weren't provident? We indeed
looked out for others as though they mattered, and they,
catching the spirit, came home with us, spent the night
in an alcove from which their breathing could be heard clearly.
But it's not over yet. Terrible incidents happen
daily. That's how we get around obstacles.


Alcova

Será possível que a primavera esteja
uma vez mais a chegar? De cada vez esquecemos
o seu trato descuidado, porosa como o sono,
a flutuar no horizonte, sem dar a cara por ninguém, "apartidária
da hora final", com medo que segundas intenções —medo!—lhe sejam imputadas,
e que todo o propósito de ser primavera se afunde
como um buraco cavado na areia. Mas bem que respira,
isso tens de aceitar.
E caso as estações que se seguem se coagularem
em anos, como tinta derramada e seca, porquê,
e quem é haveria de dizer que não tivemos cuidado? Na verdade nós
cuidámos dos outros como se eles importassem, e eles,
apanhando o espírito, voltaram para casa connosco, passaram a noite
numa alcova donde a sua respiração se ouvia com clareza.
Mas ainda não acabou. Acidentes terríveis acontecem
diariamente. É assim que ultrapassamos os obstáculos.



John Ashbery

02/05/2010

Definição de ser humano

Apesar de não estar sempre a rir, a gargalhada faz parte da sua natureza. Porque o que quer que tenha piada diz respeito ao ser humano, e tudo o que diz respeito ao ser humano tem piada. O ser humano é um animal racional, mortal, e capaz de se rir.

Quamvis non semper rideat, tamen naturam habeat ridendi. quia quicquid risibile est, homo est, et quicquid homo est risibile est. Homo est animal rationale, mortale, risus capax.

Notker Labeo



Oh não é ele de novo.


Nikos Kazantzakis

O material de que são feitos os clássicos é algo erecto que sobrevive às intempéries, e mais que isso: ao aborrecimento.
Todo o verso escrito por um Grego tem arquitectura no modo como se instala na folha, e tem o sentido da geografia do mundo.
São versos que conhecem os mapas, a extensão do país em metros quadrados, o número de filósofos por habitante.
Mais um nome que sozinho é um verso: Nikos Kazantzakis.

Gonçalo M. Tavares, Biblioteca, Campo das Letras (2004)


Nomes nus

Quando vejo do céu descer a Aurora
com a fronte de rosas, crina de ouro,
Amor me assalta; e então me descoloro,
e já suspiro: – Ali é tal aura ora.

Ó Títono feliz!, sabes a hora
para recuperar o teu tesouro;
mas que devo eu fazer do doce louro?
que se o vou rever, convém que moura.

O vosso separar não é tão duro;
que à noite ao menos sói voltar aquela
que ante a tua alva crina não se some;

a mim faz noite triste e o dia escuro
a que levou o meu cuidar com ela,
nem de si me deixou mais do que o nome.



Quand'io veggio dal ciel scender l'Aurora
co la fronte di ròse e co' crin d'oro,
Amor m'assale; ond'io mi discoloro,
e dico sospirando: – Ivi è l'aura ora.

O felice Titon, tu sai ben l'ora
da ricobrare il tuo caro tesoro;
ma io che debbo far del dolce alloro?
Che se 'l vo riveder,conven ch'io mora.

I vostri dipartir non son sí duri;
ch'almen di notte suol tornar colei
che non ha schifo le tue bianche chiome:

le mie notti fa triste, e i giorni oscuri,
quella che n'ha portato i pensèr miei,
né di sé mi ha lasciato altro che 'l nome.



Petrarca, Rerum Vulgarium Fragmenta, 291, Vasco Graça Moura (trad.), Bertrand (2003)



A Filípica voz onde sôa divina a de Cícero ainda?
E a paz à cidade e a ira de Catão à facção desavinda?
E onde está Régulus e onde está Rómulus e onde está Remus?
A antiga Roma subsiste no nome, nomes são tudo o que temos.


Diva Philippica vox ubi coelica nunc Ciceronis?
Pax ubi civibus atque rebellibus ira Catonis?
Nunc ubi Regulus aut ubi Romulus aut ubi Remus?
Stat Roma pristina nomine, nomina nuda tenemus.


Bernard de Cluny, De Contemptu Mundi I.949-952, tradução minha


01/05/2010

Sobrevivência de textos

Há dias em que penso que deveria fazer o download de todas os livros dos Classica Digitalia, de todo o Project Gutenberg, etcetera. Depois lembro-me de que se chegasse o dia em que eu deixasse de ter acesso a tudo isso provavelmente teria coisas mais urgentes a ocupar-me o espírito do que ter à disposição os obras completas dos Românticos. Mas depois volto-me a lembrar que é à conta de muita gente ter pensado como eu que a quantidade de textos antigos que nos chegou é ínfima, e fico com problemas de consciência por não fazer nada.
O que eu aprendi hoje: se pegarem numa folha A4, preferencialmente contendo meia página duma má tradução de Latim, e a atirarem ao ar para depois a agarrarem em pleno vôo, amachucando-a assimetricamente, e depois a voltarem a atirar ao ar, muito dificilmente serão capazes de a agarrar de novo: a aerodinâmica da coisa deve ser dramaticamente alterada e ela não cairá na trajectória esperada, mas sim noutras completamente imprevisíveis. Tenho a certeza de que considerações poéticas fecundas e profundas em abundância poderiam ser feitas sobre isto.


ó santo enorme esforço dos poetas! ao destino tudo
arrancas e aos povos mortais ofereces a eternidade.
não te deixes atingir, César, por ciúmes dessa santa fama,
pois se as Musas do Lácio têm o poder de algo prometer,
enquanto durarem as honras prestadas ao poeta do Esmirno,
os vindouros hão-de nos ler a ti e a mim; a nossa Farsália
sobreviverá, e idade alguma nos condenará ao esquecimento.


o sacer et magnus vatum labor! omnia fato
eripis et populis donas mortalibus aevum.
invidia sacrae, Caesar, ne tangere famae;
nam, si quid Latiis fas est promittere Musis,
quantum Zmyrnaei durabunt vatis honores,
venturi me teque legent; Pharsalia nostra
vivet, et a nullo tenebris damabimur aevo.


Lucano, Pharsalia, 960-968

Não estou a ler, muito infelizmente, a Farsália. Descobri estes versos fortuitamente: uma versão ligeiramente adaptada dos primeiros servem de lema gravado na fachada da Faculdade de Letras e Filosofia da Universidade La Sapienza em Roma, onde estive há alguns meses. Fui procurar mais, registei-os.

Dear wife,

The thresher slowly gathered then his holy flock,
his two exhausted ox, his goats, his sheep, his dogs,
and all in sluggish kinship moved towards their poor hut.
His humble bedmate lit the oil-lamp in the hearth
then spread the low stool for their supper silently
and brought the lukewarm water to wash her husband's knees.
Mother by mother taught, their wives had knelt like slaves
to wash the hairy knees of their task-weary lords
who rested and rejoiced like gods in their own yards.
But as the plowman sat that night on his low wall
and watched his plucky wife kneel down to wash his feet,
he suddenly kicked the tub and sent the water splashing.
"Dear wife", he cried, "you're not a slave to kneel before me!
Know that from this time forth I'll wash my feet myself."
He spoke, and with his words slew an ancestral ghost.

Nikos Kazantzakis, Odysseia, VI.612-626, Kimon Friar (trad)