13/12/2009

Poesia, Linguagem, Deus, e Morte



Alguns textos que exploram a construção mútua destas ideias.

Em conclusão, queria voltar ainda por uma última vez à ideia central que desenvolvi nestas páginas. O Nome de Deus é o "Nome essencial", que constitui a origem de todas as línguas. Qualquer que seja o nome pelo qual Deus possa ser chamado ou invocado é sempre ligado a uma actividade determinada, como mostra a etimologia dos nomes bíblicos; apenas este Nome único não se refere a actividade nenhuma. Para os cabalistas este não tem um "significado" na acepção comum, não tem um significado concreto. O facto de que o Nome de Deus não tenha um significado indica a sua posição no centro da revelação, que é nele mesmo fundada. Por detrás de qualquer revelação do sentido na linguagem e, ainda, como notaram os cabalistas, na Torah, há um elemento que vai para além desse mesmo sentido e que, sozinho, o torna possível, um elemento que, sem ter ele mesmo sentido, confere sentido a todas as outras coisas. A palavra de Deus, que nos fala da criação e da revelação, é infinitamente interpretável e reflecte-se na nossa linguagem. Os raios - ou os sons - que nós recebemos dela são menos comunicações do que apelos. Não é a própria palavra a possuir significado, sentido e forma, mas sim a tradição da palavra, o seu mediar-se e reflectir-se no tempo. Esta tradição, que tem a sua própria dialéctica, pode ainda transformar-se e reduzir-se a um leve, imperceptível sussurro, e podem até haver épocas, como a nossa, nas quais nada mais possa ser transmitido, e onde a tradição se silencia.

A grande crise da linguagem que vivemos consiste portanto no facto de que o último pedaço deste mistério - o mistério que em tempos teve morada na linguagem - nos ilude completamente. Os cabalistas insistiam que a língua pudesse ser falada em virtude do Nome que nela está presente. Mas qual será a dignidade de uma linguagem da qual Deus se retirou? Esta é a pergunta que deve ser posta por quem ainda acredita entender na imanência do mundo o eco da palavra da criação, por esta altura já desaparecida. É uma pergunta à qual, no nosso tempo, podem responder talvez apenas os poetas, que não partilham do desespero nutrido por quase todos os místicos nos seus confrontos com a linguagem. Uma coisa, porém, resta necessariamente aos mestres da Qabbalah, até quando lhe recusam as formulações teológicas por serem ainda demasiado explícitas: a fé na linguagem como um absoluto, mesmo que esteja já dialecticamente cortado, a fé naquele mistério que na linguagem se tornou inaudível.

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A afirmação escondida é a que afirma a impossibilidade de escrever poesia depois de Auchswitz. Paul Celan faz um esforço consciente para a refutar. A poesia torna-se uma elegia à própria linguagem. À luz de continuidade temática, cito a este respeito um poema dedicado a Hölderlin.

Tübingen, Janeiro

Olhos con-
vertidos à cegueira.
A sua -- "são
um enigma as puras
origens" --, a sua
memória de
torres de Hölderlin flutuando no esvoaçar
de gaivotas.

Marceneiros afogados visitando
estas
palavras a afundarem-se:

Se viesse,
se viesse um homem,
se viesse um homem ao mundo, hoje, com
a barba de luz dos
patriarcas: só poderia,
se falasse deste
tempo, só
poderia
balbuciar balbuciar
sempre, sempre,
só só

("Pallaksch. Pallaksch.")

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Mas Celan não foi o único, obviamente, a questionar-se acerca da possibilidade da linguagem, da poesia, e por conseguinte do papel dos poetas: aliás Heidegger é famoso por se lançar fortemente ao tema. Aqui um excerto dum seu ensaio sobre Hölderlin, “Hölderlin e a Essência da Poesia”. Juntos formam uma trindade inevitável neste tema.

Hölderlin escreve poesia acerca da essência da poesia - mas não no sentido de um conceito válido intemporalmente. Esta essência da poesia pertence a um tempo determinado. Mas não num modo tal que se conforme meramente a este tempo, como a um tempo que está já em existência. O que se passa é que Hölderlin, no acto de estabelecer a essência da poesia, determina primeiro um novo tempo. É o tempo dos deuses que fugiram e do deus que vem. É o tempo indigente, porque jaz sob uma ausência dupla e sobre um Não duplo: o Já-não dos deuses que fugiram e o Ainda-não do deus que vem.

A essência da poesia, que Hölderlin estabelece, é histórica ao mais alto nível, na medida em que antecipa um tempo histórico; mas como uma essência histórica é a única essência essencial.

O tempo é indigente e portanto o seu poeta é extremamente rico - tão rico que muitas vezes preferiria relaxar nos pensamentos daqueles que já foram e preferiria apenas dormir neste aparente vazio. Mas mantém-se firme no Nada desta noite. Enquanto o poeta permanece assim por ele mesmo no isolamento supremo da sua missão, modela a verdade, indirectamente e portanto verdadeiramente, para o seu povo. A sétima estrofe da elegia "Pão e Vinho" fala-nos disto. O que até agora só nos foi permitido analisar intelectualmente, é nela expresso poeticamente.

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Mas nós, amigo, chegamos demasiado tarde. Certo é que os deuses vivem,
Mas acima de nós, lá em cima, noutro mundo.
Aí o seu domínio é infinito e parecem não se importar
Se estamos vivos, tanto nos querem poupar.
Pois nem sempre pode um frágil vaso contê-los,
O homem apenas algum tempo suporta a plenitude divina.
Depois toda a nossa vida é sonhar com eles. Mas os erros,
Tal como o sono, ajudam, e a necessidade e a noite fortalecem,
Até que haja suficientes heróis, criados em berço de bronze,
De coração corajoso, como dantes, semelhantes aos Celestiais.
Depois eles chegam, trovejantes. Entretanto penso por vezes
Que é melhor dormir do que estar assim sem companheiros,
Nem sei perseverar assim, nem que fazer entretanto,
Nem que dizer, pois para que servem poetas em tempo de indigência?
Mas eles são, dizes, como sacerdotes santos do deus do vinho
Que em noite santa vagueavam de terra em terra.

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e um outro poema,

Os Poetas Hipócritas

Vós frios hipócritas, não falai dos deuses!
Vós sois racionais! Não acreditais em Helios,
Nem no Trovejante, nem no Deus do Mar;
Morta está a Terra, o que temos nós a agradecer-lhe?

Confiai, ó deuses! Vós dais beleza ao canto
mesmo quando do vosso nome a alma já fugiu e se dispersou.
E quando se precisa duma grande palavra,
Mãe Natureza, ainda se pensa em ti.

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Noutro ensaio, “Para que servem poetas?”, Heidegger refere-se uma vez mais ao papel da poesia, embora por um ângulo diferente, mas chegando essencialmente à mesma conclusão.

Os poetas são mortais que, cantando ardentemente o deus do vinho, se apercebem das marcas dos deuses fugitivos, que lhes seguem os vestígios, e que portanto traçam aos restantes mortais o caminho para a viragem. O éther, porém, apenas no qual os deuses são deuses, é a sua divindade. O elemento deste éther, aquele no qual até a própria divindade está presente, é o sagrado. O elemento do éther para o qual a vinda dos deuses fugitivos, o sagrado, são os vestígios dos deuses fugitivos. Mas quem tem o poder de se aperceber, de traçar tal vestígio? Os vestígios a maior parte das vezes não chamam à atenção, e são sempre o legado duma directiva que quase não é adivinhada. Ser poeta em tempo de indigência quer dizer: tratar, cantando, dos vestígios dos deuses fugitivos. É por isso que o poeta no tempo da noite do mundo pronuncia o sagrado.

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E é tudo.


1 - Gershom Scholem, Il nome di Dio e la teoria cabbalistica del linguaggio, Adelphi, tradução para o italiano de Adriano Fabris, para o português minha.

2 - Paul Celan, tradução de João Barrento na antologia Sete Rosas Mais Tarde, edições Cotovia

3- Martin Heidegger, Hölderlin and the Essence of Poetry, na tradução de Werner Broch, na antologia Critical Theory since 1965

4 - Friedrich Hölderlin, Pão e Vinho, sétima estrofe, na tradução de Maria Teresa Dias Furtado, em Elegias, da Assírio e Alvim

5 - Friedrich Hölderlin, Die Scheinheiligen Dichter, tradução minha

6 - Martin Heidegger, “What are Poets For?”, na antologia Poetry Language and Thought, traduzido para inglês por Albert Hofstadter e para português por mim

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