24/12/2009

Natal

Natal
Fernando Pessoa


Nasce um deus. Outros morrem. A Verdade
Nem veio nem se foi: o Erro mudou.
Temos agora uma outra Eternidade,
E era sempre melhor o que passou.

Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.
Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.
Um novo deus é só uma palavra.
Não procures nem creias: tudo é oculto.



Pois também este blog não resiste ao inevitável poema de Natal.

A Happy Birthday

Um Feliz Aniversário
de Ted Kooser

Esta noite, sentei-me ao lado duma janela aberta
e li até já não haver luz e o livro
se ter tornado nada mais que um pedaço das trevas.
Podia ter ligado facilmente um candeeiro,
mas quis levar este dia até ao fundo da noite,
sentar-me sozinho e acariciar a página ilegível
com o fantasma cinzento pálido da minha mão.


A Happy Birthday
by Ted Kooser


This evening, I sat by an open window
and read till the light was gone and the book
was no more than a part of the darkness.
I could easily have switched on a lamp,
but I wanted to ride this day down into night,
to sit alone and smooth the unreadable page
with the pale gray ghost of my hand.


in Delights and Shadows, Ted Kooser, Copper Canyon Press

19/12/2009

Mitologia Clássica

Deixo este blog muito bom sobre Mitologia Clássica.

Príncipe do Egipto


Esta cena, tirada do filme "Príncipe do Egipto", é uma das mais belas cenas animadas que já vi. Justifico essa afirmação com uma citação da Poética (todo o post condigno tem de ter uma citação da Poética), onde o Mr. Tótles afirma que

"As coisas que observamos ao natural e nos fazem pena agradam-nos quando as vemos representadas em imagens muito perfeitas como, por exemplo, as reproduções dos mais repugnantes cadáveres."

Também gosto muito da música, e se calhar ainda mais na versão italiana, aqui.

Geoffrey Hill #1

September Song

born 19.6.32 - deported 24.9.42

Undesirable you may have been, untouchable
you were not. Not forgotten
or passed over at the proper time.

As estimated, you died. Things marched,
sufficient, to that end.
Just so much Zyklon and leather, patented
terror, so many routine cries.

(I have made
an elegy for myself it
is true)

September fattens on vines. Roses
flake from the wall. The smoke
of harmless fires drifts to my eyes.

This is plenty. This is more than enough.


Cântico de Setembro

nascida 19.6.32 - deportada 24.9.42

Indesejada talvez tenhas sido, intocável
não foste. Não esquecida
ou ignorada quando o momento chegou.

Como era de prever, morreste. As coisas foram andando,
de modo adequado, para esse fim.
Só que tanto Zyklon e cabedal, patenteado
terror, tantos gritos de rotina.

(Eu compus
uma elegia para mim é
verdade)

Setembro engorda com as vinhas. Rosas
nevam da parede. O fumo
de fogos inofensivos deriva até aos meus olhos.

Isto é tanto. Isto é mais que suficiente.

18/12/2009

Mármore, Vitral

was bleibet aber


estilhaços de uma mente misturada
com um segundo caos. se houvesse quem
me falasse
da torre de Hölderlin,
da cidade destruída. e sozinho sta.
pois caótica é a ordem até que das janelas
os vitrais brilhem com o Sol. a Grécia
é luz velha. colher flores;
adónises, que importa? o fogo do inferno
na aurora, calmo, tocou-me as pálpebras,
e o valor está na lei — aquilo que restará
não bastaria. é um vidro quebrado
que brilha no chão. A grécia
está longe, do arquipélago, temos os nomes da plêiade
apagada no céu. Nomes nus,
se à distância ainda brilham estilhaços
de belo vitral duma mente,
canto adoneus se
houvesse água duma fonte branca,
recusaria. star sozinho,
a memória do Éden, seja mentira.
é mentira a memória quebrada. Conta-se
que houve uma vez um homem
que se salvou a si próprio do pântano
que se puxou pelos próprios cabelos. E quem
não puxará o mais belo dos retornos? A Grécia
é difícil. cantarolar com uma língua
de fogo, o sonho derrete-se gelado e em luz.


eu digo um nome para dizer
o outro. o que é que eu fiz?
começa, vê quem te acompanha.
onde estão os teus amigos?
escavei uma palavra, podei-lhe a palavra,
corri a via negativa. no fundo
sta o divino vitral. mas
de que profundezas virás tu, Deus-Sol,
quando a neve nos cobre os narcisos
e as nuvens são a noite do mundo?
mas com relâmpagos se queimam retinas.
só há um remédio para os equinócios,
deus-da-Páscoa, cantar a beleza de Chartres,
sub-rosa suspiros fixar nas retinas
dos olhos dos mortos que vêem o nada, dos vivos
que vêem a luz
dos seus deuses e cegam,
que viram ideias no eco das rimas e cantam.

16/12/2009

Lawmaking

I speak the stones, and when your tone
is sorrow, I pin the rain all gravity is slain
tomorrow you'll disbelieve the bridge, your hand
enchant my ribs my larynx' ridge, a wall
of orichalcum round the lungs and salt
is treasure, barren measure keeping hazy
tenure my leal margraves tame
and fend off faithful light, and me you slight
to take a less assurance! the given errands
were to keep the sky, the moves of moons,
a distant sight to drain, make war remain
a tale of apparitions, of manure deep you need to dig
and mix, combine the roots. if what I tell are lies
let lies be blue forever, a sequel worthy of the dust
each whisper tessellae and the brain mosaic;
if speaking you unfound the truth, can no more touch
the ground but rather drown in voices, let me they call
the banquet of the evening, the folly of the fountains;
if what you hear's the silence of the temples,
speak stainèd glass till all their darkness echoes.

Desdizendo os cómicos

Correm por aí os boatos que há quem queira contradizer o Aristófanes, e destronar o monsieur Ésquilo. Eh pá, é fácil descobrir o quanto eu gosto do Sófocles (duh), mas façam-me um favor e metam-me uma cópia da Oresteia nas mãos deste rapaz. Até porque ele faz anos, e dizem que até merece. Parabéns, João!



Tríptico inspirado pela Oresteia, de Francis Bacon. (que só para chatear fui ver hoje).

14/12/2009

Hölderlin & Estética




Já que todos os blogs têm subsecções, este a partir de agora também. Este post é da subsecção Daqui a 2 anos juro que releio no original.

13/12/2009

Poesia, Linguagem, Deus, e Morte



Alguns textos que exploram a construção mútua destas ideias.

Em conclusão, queria voltar ainda por uma última vez à ideia central que desenvolvi nestas páginas. O Nome de Deus é o "Nome essencial", que constitui a origem de todas as línguas. Qualquer que seja o nome pelo qual Deus possa ser chamado ou invocado é sempre ligado a uma actividade determinada, como mostra a etimologia dos nomes bíblicos; apenas este Nome único não se refere a actividade nenhuma. Para os cabalistas este não tem um "significado" na acepção comum, não tem um significado concreto. O facto de que o Nome de Deus não tenha um significado indica a sua posição no centro da revelação, que é nele mesmo fundada. Por detrás de qualquer revelação do sentido na linguagem e, ainda, como notaram os cabalistas, na Torah, há um elemento que vai para além desse mesmo sentido e que, sozinho, o torna possível, um elemento que, sem ter ele mesmo sentido, confere sentido a todas as outras coisas. A palavra de Deus, que nos fala da criação e da revelação, é infinitamente interpretável e reflecte-se na nossa linguagem. Os raios - ou os sons - que nós recebemos dela são menos comunicações do que apelos. Não é a própria palavra a possuir significado, sentido e forma, mas sim a tradição da palavra, o seu mediar-se e reflectir-se no tempo. Esta tradição, que tem a sua própria dialéctica, pode ainda transformar-se e reduzir-se a um leve, imperceptível sussurro, e podem até haver épocas, como a nossa, nas quais nada mais possa ser transmitido, e onde a tradição se silencia.

A grande crise da linguagem que vivemos consiste portanto no facto de que o último pedaço deste mistério - o mistério que em tempos teve morada na linguagem - nos ilude completamente. Os cabalistas insistiam que a língua pudesse ser falada em virtude do Nome que nela está presente. Mas qual será a dignidade de uma linguagem da qual Deus se retirou? Esta é a pergunta que deve ser posta por quem ainda acredita entender na imanência do mundo o eco da palavra da criação, por esta altura já desaparecida. É uma pergunta à qual, no nosso tempo, podem responder talvez apenas os poetas, que não partilham do desespero nutrido por quase todos os místicos nos seus confrontos com a linguagem. Uma coisa, porém, resta necessariamente aos mestres da Qabbalah, até quando lhe recusam as formulações teológicas por serem ainda demasiado explícitas: a fé na linguagem como um absoluto, mesmo que esteja já dialecticamente cortado, a fé naquele mistério que na linguagem se tornou inaudível.

-1

A afirmação escondida é a que afirma a impossibilidade de escrever poesia depois de Auchswitz. Paul Celan faz um esforço consciente para a refutar. A poesia torna-se uma elegia à própria linguagem. À luz de continuidade temática, cito a este respeito um poema dedicado a Hölderlin.

Tübingen, Janeiro

Olhos con-
vertidos à cegueira.
A sua -- "são
um enigma as puras
origens" --, a sua
memória de
torres de Hölderlin flutuando no esvoaçar
de gaivotas.

Marceneiros afogados visitando
estas
palavras a afundarem-se:

Se viesse,
se viesse um homem,
se viesse um homem ao mundo, hoje, com
a barba de luz dos
patriarcas: só poderia,
se falasse deste
tempo, só
poderia
balbuciar balbuciar
sempre, sempre,
só só

("Pallaksch. Pallaksch.")

-2

Mas Celan não foi o único, obviamente, a questionar-se acerca da possibilidade da linguagem, da poesia, e por conseguinte do papel dos poetas: aliás Heidegger é famoso por se lançar fortemente ao tema. Aqui um excerto dum seu ensaio sobre Hölderlin, “Hölderlin e a Essência da Poesia”. Juntos formam uma trindade inevitável neste tema.

Hölderlin escreve poesia acerca da essência da poesia - mas não no sentido de um conceito válido intemporalmente. Esta essência da poesia pertence a um tempo determinado. Mas não num modo tal que se conforme meramente a este tempo, como a um tempo que está já em existência. O que se passa é que Hölderlin, no acto de estabelecer a essência da poesia, determina primeiro um novo tempo. É o tempo dos deuses que fugiram e do deus que vem. É o tempo indigente, porque jaz sob uma ausência dupla e sobre um Não duplo: o Já-não dos deuses que fugiram e o Ainda-não do deus que vem.

A essência da poesia, que Hölderlin estabelece, é histórica ao mais alto nível, na medida em que antecipa um tempo histórico; mas como uma essência histórica é a única essência essencial.

O tempo é indigente e portanto o seu poeta é extremamente rico - tão rico que muitas vezes preferiria relaxar nos pensamentos daqueles que já foram e preferiria apenas dormir neste aparente vazio. Mas mantém-se firme no Nada desta noite. Enquanto o poeta permanece assim por ele mesmo no isolamento supremo da sua missão, modela a verdade, indirectamente e portanto verdadeiramente, para o seu povo. A sétima estrofe da elegia "Pão e Vinho" fala-nos disto. O que até agora só nos foi permitido analisar intelectualmente, é nela expresso poeticamente.

-3

Mas nós, amigo, chegamos demasiado tarde. Certo é que os deuses vivem,
Mas acima de nós, lá em cima, noutro mundo.
Aí o seu domínio é infinito e parecem não se importar
Se estamos vivos, tanto nos querem poupar.
Pois nem sempre pode um frágil vaso contê-los,
O homem apenas algum tempo suporta a plenitude divina.
Depois toda a nossa vida é sonhar com eles. Mas os erros,
Tal como o sono, ajudam, e a necessidade e a noite fortalecem,
Até que haja suficientes heróis, criados em berço de bronze,
De coração corajoso, como dantes, semelhantes aos Celestiais.
Depois eles chegam, trovejantes. Entretanto penso por vezes
Que é melhor dormir do que estar assim sem companheiros,
Nem sei perseverar assim, nem que fazer entretanto,
Nem que dizer, pois para que servem poetas em tempo de indigência?
Mas eles são, dizes, como sacerdotes santos do deus do vinho
Que em noite santa vagueavam de terra em terra.

- 4

e um outro poema,

Os Poetas Hipócritas

Vós frios hipócritas, não falai dos deuses!
Vós sois racionais! Não acreditais em Helios,
Nem no Trovejante, nem no Deus do Mar;
Morta está a Terra, o que temos nós a agradecer-lhe?

Confiai, ó deuses! Vós dais beleza ao canto
mesmo quando do vosso nome a alma já fugiu e se dispersou.
E quando se precisa duma grande palavra,
Mãe Natureza, ainda se pensa em ti.

- 5

Noutro ensaio, “Para que servem poetas?”, Heidegger refere-se uma vez mais ao papel da poesia, embora por um ângulo diferente, mas chegando essencialmente à mesma conclusão.

Os poetas são mortais que, cantando ardentemente o deus do vinho, se apercebem das marcas dos deuses fugitivos, que lhes seguem os vestígios, e que portanto traçam aos restantes mortais o caminho para a viragem. O éther, porém, apenas no qual os deuses são deuses, é a sua divindade. O elemento deste éther, aquele no qual até a própria divindade está presente, é o sagrado. O elemento do éther para o qual a vinda dos deuses fugitivos, o sagrado, são os vestígios dos deuses fugitivos. Mas quem tem o poder de se aperceber, de traçar tal vestígio? Os vestígios a maior parte das vezes não chamam à atenção, e são sempre o legado duma directiva que quase não é adivinhada. Ser poeta em tempo de indigência quer dizer: tratar, cantando, dos vestígios dos deuses fugitivos. É por isso que o poeta no tempo da noite do mundo pronuncia o sagrado.

- 6

E é tudo.


1 - Gershom Scholem, Il nome di Dio e la teoria cabbalistica del linguaggio, Adelphi, tradução para o italiano de Adriano Fabris, para o português minha.

2 - Paul Celan, tradução de João Barrento na antologia Sete Rosas Mais Tarde, edições Cotovia

3- Martin Heidegger, Hölderlin and the Essence of Poetry, na tradução de Werner Broch, na antologia Critical Theory since 1965

4 - Friedrich Hölderlin, Pão e Vinho, sétima estrofe, na tradução de Maria Teresa Dias Furtado, em Elegias, da Assírio e Alvim

5 - Friedrich Hölderlin, Die Scheinheiligen Dichter, tradução minha

6 - Martin Heidegger, “What are Poets For?”, na antologia Poetry Language and Thought, traduzido para inglês por Albert Hofstadter e para português por mim

12/12/2009

Ver a linguagem




A Itália é famosa pelo uso abundante da linguagem gestual, por um acompanhamento quase indispensável da palavra falada por parte da linguagem não falada, da linguagem vista, das mãos que acompanham o ritmo, a emoção e o sentido do que nesse momento está dito. Chega-se até a ver livros de "expansão ao dicionário" que contém os abundantes signos, livros esses que, raiando por certo o humorístico não deixam de ter um certo je ne sais quoi de verdade.

A dialéctica Atenas-Jerusalém fundiu-se, não obstante o famoso grito de revolta de Tertuliano, "Mas o que é que Atenas tem que ver com Jerusalém?!", no império Romano, e por consequência manteve, e mantém creio poder dizer até hoje, a cidade de Roma como um misto sobre-reciclado das duas tradições, pagã ou filohelénica, como centro dum império de deuses, e Judaico-Cristã, como lugar do martírio de Pedro e lugar do trono papal durante séculos.

A mística hebraica é uma de som e de voz, de revelação enquanto palavra, que deve ser entendida como união inseparável de letra e do seu som correspondente. Deus cria as letras, imprime nelas toda a vida de toda a criação possível, e só então mais tarde se pode falar do Seu "Fiat Lux!"- o som vem antes da sequer possibilidade de imagem. Na mística grega, concretamente pegando no exemplo de Platão, é o oposto: a revelação do divino faz-se através do silêncio (ou pelo menos do som como meramente contingente), no momento da contemplação última do Sol, verdadeiro e Belo atingido por fim e assimilado através do momento noético em que se a Verdade.

As duas tradições são inerentemente contraditórias. Mas a Itália, e Roma em concreto, com o que a cidade simboliza, tentou por muito tempo concretizar uma união: daí a Europa gerou a Idade Média e o seu Fides et Ratio, daí o comentário do compositor Giacinto Scelsi, "Roma é a fronteira entre Este e Oste. No Sul de Roma, começa o Este, a Norte de Roma, começa o Oeste. A divisão passa exactamente pelo Fórum Romano. Aí fica a minha casa: Isto explica a minha vida e a minha música", daí também a classificação de George Steiner da "herança repartida de Atenas e Jerusalém" como um dos elementos fundadores da Ideia de Europa.

Roma sempre a entendi como a materialização dessa união. Há duas razões extremas para cá vir: para se estar com os pagãos ou para se estar com os cristãos, mas ninguém se fica por apenas um dos lados. E portanto será talvez uma consequência histórico-linguística deveras apropriada que o italiano seja uma língua conhecida por essa mesma linguagem gestual sempre paralela. Como se até no viver da língua estivessem presentes as duas tradições místicas fundentes, ouvir a língua, ver a língua, Φῶς καὶ Φωνή, Lux et Vox.

11/12/2009

Unificou a Normandia




Também não está com cara de quem ache que tenha sido grande coisa.
Faz suspirar um bocadinho, ou então sorrir com um bocadinho de malevolência, conforme a disposição.

Te Rogere potens, tu maxima gloria regum
Graecia te temet et Syria et te Persa veretur
te dignum imperio solum dijudicat orbis.


Poderoso Roger*, és tu o mais glorioso dos reis
És tu, tu, és tu que a Grécia, Síria e Pártia veneram
e o mundo inteiro reconhece-te como seu único senhor.

* Rogério Segundo da Sicília

09/12/2009

Espaço para livros

You say you're out of book space?
Naturally you're out of book space.
Everyone I know is out of book space.
If you're not out of book space,
You're probably not worth knowing.

08/12/2009

Chaucer e os Livros

Parlamento dos Pássaros

Proémio

A vida breve, a arte tão custosa,
O acto duro, a conquista tão aguda,
O alegre terror, que sempre tanto escapa,
Tudo isto é para mim Amor, que o coração
Espanta com o seu funcionamento
E custa tanto mesmo, que quando penso nele,
Nem sei sequer eu bem se bem vigilo ou sonho.

Pois mesmo se o amor eu não percebo,
Nem à regra com que dá ao povo a paga,
Eu vi contar meus livros tantas vezes
Seus milagres, e sua cruel raiva;
E como dizem que ele será senhor e dono,
Eu nada ouso e digo, por medo dos seus golpes,
Salvo “Salve Deus um tal Senhor!” E nada mais.

Ora meu hábito é buscar prazer ora saber
Nos livros que leio, como já te disse.
Mas porque conto isto? Não há muito tempo
Atrás, calhou descer-me os olhos
Sobre um certo livro, escrito a letra antiga;
E então nele, na certeza de algo aprender lá,
Passei o dia todo na pressa da leitura.

E como dos campos velhos, como sempre contam,
Nos chega o milho novo chegado cada ano;
Assim dos livros velhos, tem-no em boa fé,
Vem todo o saber novo que os homens se aprendem.
Mas agora para propor o tema disto –
Ler avante maravilhou-me tanto,
Que achei até o dia todo demasiado curto.

[...]



The Parliament of Fowles

The Proem

The lyf so short, the craft so long to lerne,
Thassay so hard, so sharp the conquering,
The dredful Ioy, that alwey slit so yerne,
Al this mene I by love, that my feling
Astonyeth with his wonderful worching
So sore y-wis, that whan I on him thinke,
Nat wot I wel wher that I wake or winke.

For al be that I knowe nat love in dede,
Ne wot how that he quyteth folk hir hyre,
Yet happeth me ful ofte in bokes rede
Of his miracles, and his cruel yre;
Ther rede I wel he wol be lord and syre,
I dar not seyn, his strokes been so sore,
But God save swich a lord! I can no more.

Of usage, what for luste what for lore,
On bokes rede I ofte, as I yow tolde.
But wherfor that I speke al this? not yore
Agon, hit happed me for to beholde
Upon a boke, was write with lettres olde;
And ther-upon, a certeyn thing to lerne,
The longe day ful faste I radde and yerne.

For out of olde feldes, as men seith,
Cometh al this newe corn fro yeer to yere;
And out of olde bokes, in good feith,
Cometh al this newe science that men lere.
But now to purpos as of this matere --
To rede forth hit gan me so delyte,
That al the day me thoughte but a lyte.

[...]

Tradução minha, 1-28

Todas as Almas, vertrunken, verträumt

Allerseelen

Was habe ich
getan?
Die Nacht besamt, als könnt es
noch andere geben, nächtiger als
diese.

Vogelflug, Steinflug, tausend
beschriebene Bahnen. Blicke,
geraubt und gepflückt. Das Meer,
gekostet, vertrunken, verträumt. Eine Stunde,
seelenverfinstert. Die nächste, ein Herbstlicht,
dargebracht einem blinden
Gefühl, das des Wegs kam. Andere, viele,
ortlos und schwer aus sich selbst: erblickt und umgangen.
Findlinge, Sterne,
Schwarz und voll Sprache, benannt
nach zerschwiegenem Schwur.

Und einmal (wann? auch dies ist vergessen):
den Widerhaken gefühlt,
wo der Puls den Gegentakt wagte.



All Souls

What did I
do?
Seminated the night, as though
there could be others, more nocturnal than
this one.

Bird flight, stone flight, a thousand
described routes. Glances,
purloined and plucked. The sea,
tasted, drunk away, dreamed away. An hour
soul-eclipsed. The next, an autumn light,
offered up to a blind
feeling which came that way. Others, many,
with no place but their own heavy centres: glimpsed and avoided.
Erratic boulders, stars,
black, full of language: named
after an oath which silence annulled.

And once (when? that too is forgotten):
felt the barb
where my pulse dared the counter-beat.





Paul Celan
em Poems of Paul Celan, traduzidos por Michael Hamburger, Persea Books 2002