13/10/2018

Como traduzir a destruição do Dilúvio?

Na narração do dilúvio, Yahweh refere várias vezes que tipos de animais devem ser recolhidos. Começa por dizer (Gen 6:20) que devem ser recolhidos dois animais de cada espécie. Mais tarde (Gen 7:2) aprendemos que afinal são sete pares de cada espécie pura -- em antecipação do gigantesco churrasco que acontecerá aquando dos sacrifícios de Génesis 8:20 -- enquanto que das espécies impuras bastará apenas um par, visto que não precisarão de ser sacrificados e não é preciso portanto haver suplentes.

A certa altura (Gen 7:4) Yahweh explica que destruirá as demais criaturas da terra. A palavra que aqui é utilizada é uma palavra muito rara, yequm [יְקוּם]. Esta palavra está relacionada com a raiz semítica que indica "levantar-se"; os leitores do Novo Testamento lembrar-se-ão de já a ter encontrado no famoso episódio da filha de Jaíro (Marc 5:41), onde Jesus diz em Siríaco-aramaico Talitha qumi!, "Talitha, levanta-te!"

É uma palavra intrigante. As línguas semíticas têm raízes que indicam o verbo "ser", apesar de este ser prescindível na vasta maioria das circunstâncias. Em Hebraico a raiz é HWH (possivelmente a mesma raiz que aparece no nome de Deus, YAHWEH). Não é a que é usada aqui. O que salta porém à mente é que o uso da palavra "levantar" para querer dizer "ser" traz à mente tanto a língua grega quanto a latina, onde é precisamente de raízes semelhantes que se constroem palavras como, em Latim, substantia e, em Grego, ὑπόστασις/hypostasis (leitores com alguma inclinação teológica precisarão talvez de desaprender algumas coisas, pois apesar de a palavra hypostasis ter adquirido em uma carta teológica específica, referindo-se às 'pessoas' da trindade, a verdade é que essa é uma clarificação cristã que a língua grega até então não suportava).

Isto porque "stare" em Latim quer dizer "estar de pé", enquanto que histánai (a raíz em hypostasis) pode querer dizer "estar de pé" ou então "pôr de pé". De igual forma, sub- e hyp- são a mesma palavra pronunciada de formas diferentes. Consequentemente, substantia e hypostasis são palavras que se ecoam uma à outra de perto. 

A palavra yequm lembra, portanto, as duas palavras acima referidas, mas não se confunde com elas. Para começar, não tem (nem podia ter, dada a natureza da língua hebraica) o prefixo sub. Como foi ela traduzida? Aqui temos a nossa tarefa facilitada, pois como dizia é uma palavra rara, atestada apenas em três passagens da Bíblia Hebraica: na passagem do Génesis acima citada e noutra pouco a seguir (Gen 7:4 e Gen 7:23) e no livro de Deuteronómio (Deut 11:6). Na Vulgata Latina de São Jerónimo aparece vertida, todas as três vezes, como substantia.  Dada a polissemia da palavra substantia em Latim (podendo esta significar tanto "substância" como "posses, propriedade material"), não estranhamos.

Em Grego deparamo-nos com uma surpresa. Para percebermos o alcance da surpresa é preciso citar a passagem do livro de Deuteronómio integralmente:

E o que fez a Datan e a Aviram, filhos de Eliab, filho de Ruben, quando a terra abriu a sua boca, e os engoliu a eles, às suas casas, às suas tendas, e à totalidade de yequm que estava ao pé deles no meio de todo Israel. 
(Deut 11:6) 
  ואשר עשה לדתן ולאבירם בני אליאב בן־ראובן אשר פצתה הארץ את־פיה ותבלעם ואת־בתיהם ואת־אהליהם ואת כל־היקום אשר ברגליהם בקרב כל־ישראל

A tradução portuguesa de Ferreira de Almeida traduz por "tudo o que subsistia" -- uma tradução segura, que tem as mesmas forças e as mesmas fragilidades que a tradução latina. A Bíblia dos Capuchinhos traduz mal (!), interpretando yequm como uma forma da terceira pessoa do verbo laqum, não percebendo que se trata deste substantivo raro, vertendo por "todos os que se levantaram". Em Latim, São Jerónimo escolhe substantia. Em Grego, a Septuaginta opta por hypostasis, lembrando o que dizia acima. 

Quanto à primeira passagem do Génesis,

Daqui a sete dias, eu vou fazer chover sobre a terra quarenta dias e quarenta noites, e arrasarei todo o yequm que criei sobre a superfícia da terra. 
(Gen 7:4)
כי לימים עוד שבעה אנכי ממטיר על־הארץ ארבעים יום וארבעים לילה ומחיתי את־כל־היקום אשר עשיתי מעל פני האדמה  

Não é assim tão óbvio que se esteja a falar de seres vivos, de criaturas, em nenhuma das duas. É possível, mas incerto. É igualmente possível que estivessemos a falar de objectos ou de qualquer outra coisa. Aliás, nesta segunda passagem, embora São Jerónimo mantenha substantia, todas as demais traduções mudam o termo. O texto grego da Septuaginta diz um mirabolante exanastasis/ἐξανάστασις (!), uma palavra de obscura significação. É utilizada uma única vez no Novo Testamento  (em Fil 3:11) onde parece ser um sinónimo do muito mais comum anastasis/ἀνάστασις ("ressurreição"), mas nas demais atestações parece querer dizer uma espécie de "expulsão" (derivada daquele sufixo ex-). O que estariam a pensar os tradutores quando traduziram yequm por exanastasis? É uma pergunta sem resposta, até porque não faz qualquer sentido neste contexto.

Há uma terceira aparição da palavra, a segunda do livro do Génesis, oferece muitos dos mesmos problemas:
E arrasou todo o yequm que havia à face da terra, desde o homem até ao animal, até ao verme, até ao pássaro dos céus. 
(Gen 7:23) 
 וימח את־כל־היקום אשר על־פני האדמה מאדם עד־בהמה עד־רמש ועד־עוף השמים

Aqui estamos num domínio um pouco mais explícito, pois sabemos que yequm se referirá apenas a seres vivos. Contudo, estaria deslocada qualquer fé de que esta passagem pudesse clarificar o sentido da palavra, e que essa clarificação semântica servisse depois para iluminar as outras passagens. Isto porque apesar de neste caso em particular querer dizer, por enumeração, "seres vivos", as outras passagens contrariam explicitamente essa definição possível. Mais uma vez, o Grego é de pouco auxílio. Pelo menos desta vez fica-se pelo campo semântico de levantar, sem ex- de acréscimo, mas mesmo assim a palavra escolhida é, mais uma vez, perplexante: anastema, que significa algo como "protuberância". É de pouco auxílio a entender o sentido do Hebraico; São Jerónimo mantém-se constante, e traduz mais uma vez por substantia. Na prática, portanto, obtemos desta juxtaposição três definições possíveis:

  • Gen 7:4 -- yequm é de sentido vago e não identificável (Grego :: exanastasis)
  • Gen 7:23 -- yequm quer dizer todos os seres vivos, incluindo seres humanos (Grego :: anastema)
  • Deut 11:6 -- yequm quer dizer propriedade privada de seres humanos, incluindo, será de esperar, animais, mas excluindo tendas e casas. (Grego :: hypostasis)

A tradução mais esperada em Grego não teria sido nenhuma das três. Claro que não seria jamais possível prescindir do hypo- de hypostasis, visto que stasis por si só tem em Grego um sentido completamente diferente, indicando "imobilidade", e significando corriqueiramente "guerra civil". Mas havia outra palavra que teria permitido manter a coerência entre as três passagens, ao mesmo tempo que se mantinha a ambiguidade semântica. A palavra ousia é, famosamente, a nominalização do verbo 'ser' em Grego, algo como "sência". Devido à mesma evolução semântica que levou a que substantia quisesse dizer não apenas "substância filosófica" mas também "propriedade  privada", assim também ousia quer dizer as duas coisas. Teria sido a melhor palavra para traduzir, e nunca saberemos o porquê desta oscilação e insegurança.

PS: A palavra hebraica para o dilúvio é mabul. A palavra grega que a traduz é a palavra kataklysmos, cataclismo, que, visto que klysmos indica "ondas", etimologicamente aponta para algo como inundação.


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