16/10/2018

A ideia de progresso

Ludwig Edelstein orna o seu livro 'A Ideia de Progresso na Antiguidade Clássica' (1967) com um prefácio sobre a forma como os estudos do século XIX e da primeira metade do século XX olharam para a questão da existência ou ausência do conceito de progresso no mundo Greco-Romano. Segundo ele, estes estudiosos falharam por completo na sua leitura errónea das passagens de escritores que tocam no assunto.

O seu argumento é que existia de facto uma noção de progresso que pode ser estudada à luz duma análise de história das ideias. Como bom colega, em casa no mais amplo território dos estudos humanísticos e da investigação científica, faz a seguinte ressalva: "Se naquilo que estou prestes a dizer encontrarem mais críticas do trabalho prévio de colegas do que encontrarão louvores, note-se que nunca perdi o horizonte daquilo que até mesmo os autores antigos favoráveis à noção de progresso reconheceram: que estamos em dívida para com os que nos precederam tanto por aquilo que nas suas opiniões aceitámos quanto por aquilo que rejeitámos."

Insere neste ponto uma nota de rodapé indicando a Metafísica de Aristóteles (II,1, 933[993]b 11-14). Ora essa indicação leva à seguinte passagem: "É justo que não estejamos gratos apenas para com aqueles cujas opiniões partilhamos, mas também para com os que se ficaram pela superfície [do assunto]. Também estes contribuíram alguma coisa: deram-nos a oportunidade de exercitar o nosso engenho."*

Lembrando que a afirmação é feita num contexto duma discussão sobre o conceito de progresso. Por conseguinte, o que ele está a fazer é citar uma passagem que, pela sua mera existência (e pelo facto de falar de implicitamente de avanços científicos sem precisar de se justificar) afirma a existência do conceito de progresso, ao mesmo tempo que classifica o trabalho dos seus antecessores como 'superficial'. Deve ser raro farpas deste género conseguirem ser simultaneamente tão bem espetadas e tão mesquinhinhas.

* οὐ μόνον δὲ χάριν ἔχειν δίκαιον τούτοις ὧν ἄν τις κοινώσαιτο ταῖς δόξαις, ἀλλὰ καὶ τοῖς ἐπιπολαιότερον ἀποφηναμένοις: καὶ γὰρ οὗτοι συνεβάλοντό τι: τὴν γὰρ ἕξιν προήσκησαν ἡμῶν

13/10/2018

Como traduzir a destruição do Dilúvio?

Na narração do dilúvio, Yahweh refere várias vezes que tipos de animais devem ser recolhidos. Começa por dizer (Gen 6:20) que devem ser recolhidos dois animais de cada espécie. Mais tarde (Gen 7:2) aprendemos que afinal são sete pares de cada espécie pura -- em antecipação do gigantesco churrasco que acontecerá aquando dos sacrifícios de Génesis 8:20 -- enquanto que das espécies impuras bastará apenas um par, visto que não precisarão de ser sacrificados e não é preciso portanto haver suplentes.

A certa altura (Gen 7:4) Yahweh explica que destruirá as demais criaturas da terra. A palavra que aqui é utilizada é uma palavra muito rara, yequm [יְקוּם]. Esta palavra está relacionada com a raiz semítica que indica "levantar-se"; os leitores do Novo Testamento lembrar-se-ão de já a ter encontrado no famoso episódio da filha de Jaíro (Marc 5:41), onde Jesus diz em Siríaco-aramaico Talitha qumi!, "Talitha, levanta-te!"

É uma palavra intrigante. As línguas semíticas têm raízes que indicam o verbo "ser", apesar de este ser prescindível na vasta maioria das circunstâncias. Em Hebraico a raiz é HWH (possivelmente a mesma raiz que aparece no nome de Deus, YAHWEH). Não é a que é usada aqui. O que salta porém à mente é que o uso da palavra "levantar" para querer dizer "ser" traz à mente tanto a língua grega quanto a latina, onde é precisamente de raízes semelhantes que se constroem palavras como, em Latim, substantia e, em Grego, ὑπόστασις/hypostasis (leitores com alguma inclinação teológica precisarão talvez de desaprender algumas coisas, pois apesar de a palavra hypostasis ter adquirido em uma carta teológica específica, referindo-se às 'pessoas' da trindade, a verdade é que essa é uma clarificação cristã que a língua grega até então não suportava).

Isto porque "stare" em Latim quer dizer "estar de pé", enquanto que histánai (a raíz em hypostasis) pode querer dizer "estar de pé" ou então "pôr de pé". De igual forma, sub- e hyp- são a mesma palavra pronunciada de formas diferentes. Consequentemente, substantia e hypostasis são palavras que se ecoam uma à outra de perto. 

A palavra yequm lembra, portanto, as duas palavras acima referidas, mas não se confunde com elas. Para começar, não tem (nem podia ter, dada a natureza da língua hebraica) o prefixo sub. Como foi ela traduzida? Aqui temos a nossa tarefa facilitada, pois como dizia é uma palavra rara, atestada apenas em três passagens da Bíblia Hebraica: na passagem do Génesis acima citada e noutra pouco a seguir (Gen 7:4 e Gen 7:23) e no livro de Deuteronómio (Deut 11:6). Na Vulgata Latina de São Jerónimo aparece vertida, todas as três vezes, como substantia.  Dada a polissemia da palavra substantia em Latim (podendo esta significar tanto "substância" como "posses, propriedade material"), não estranhamos.

Em Grego deparamo-nos com uma surpresa. Para percebermos o alcance da surpresa é preciso citar a passagem do livro de Deuteronómio integralmente:

E o que fez a Datan e a Aviram, filhos de Eliab, filho de Ruben, quando a terra abriu a sua boca, e os engoliu a eles, às suas casas, às suas tendas, e à totalidade de yequm que estava ao pé deles no meio de todo Israel. 
(Deut 11:6) 
  ואשר עשה לדתן ולאבירם בני אליאב בן־ראובן אשר פצתה הארץ את־פיה ותבלעם ואת־בתיהם ואת־אהליהם ואת כל־היקום אשר ברגליהם בקרב כל־ישראל

A tradução portuguesa de Ferreira de Almeida traduz por "tudo o que subsistia" -- uma tradução segura, que tem as mesmas forças e as mesmas fragilidades que a tradução latina. A Bíblia dos Capuchinhos traduz mal (!), interpretando yequm como uma forma da terceira pessoa do verbo laqum, não percebendo que se trata deste substantivo raro, vertendo por "todos os que se levantaram". Em Latim, São Jerónimo escolhe substantia. Em Grego, a Septuaginta opta por hypostasis, lembrando o que dizia acima. 

Quanto à primeira passagem do Génesis,

Daqui a sete dias, eu vou fazer chover sobre a terra quarenta dias e quarenta noites, e arrasarei todo o yequm que criei sobre a superfícia da terra. 
(Gen 7:4)
כי לימים עוד שבעה אנכי ממטיר על־הארץ ארבעים יום וארבעים לילה ומחיתי את־כל־היקום אשר עשיתי מעל פני האדמה  

Não é assim tão óbvio que se esteja a falar de seres vivos, de criaturas, em nenhuma das duas. É possível, mas incerto. É igualmente possível que estivessemos a falar de objectos ou de qualquer outra coisa. Aliás, nesta segunda passagem, embora São Jerónimo mantenha substantia, todas as demais traduções mudam o termo. O texto grego da Septuaginta diz um mirabolante exanastasis/ἐξανάστασις (!), uma palavra de obscura significação. É utilizada uma única vez no Novo Testamento  (em Fil 3:11) onde parece ser um sinónimo do muito mais comum anastasis/ἀνάστασις ("ressurreição"), mas nas demais atestações parece querer dizer uma espécie de "expulsão" (derivada daquele sufixo ex-). O que estariam a pensar os tradutores quando traduziram yequm por exanastasis? É uma pergunta sem resposta, até porque não faz qualquer sentido neste contexto.

Há uma terceira aparição da palavra, a segunda do livro do Génesis, oferece muitos dos mesmos problemas:
E arrasou todo o yequm que havia à face da terra, desde o homem até ao animal, até ao verme, até ao pássaro dos céus. 
(Gen 7:23) 
 וימח את־כל־היקום אשר על־פני האדמה מאדם עד־בהמה עד־רמש ועד־עוף השמים

Aqui estamos num domínio um pouco mais explícito, pois sabemos que yequm se referirá apenas a seres vivos. Contudo, estaria deslocada qualquer fé de que esta passagem pudesse clarificar o sentido da palavra, e que essa clarificação semântica servisse depois para iluminar as outras passagens. Isto porque apesar de neste caso em particular querer dizer, por enumeração, "seres vivos", as outras passagens contrariam explicitamente essa definição possível. Mais uma vez, o Grego é de pouco auxílio. Pelo menos desta vez fica-se pelo campo semântico de levantar, sem ex- de acréscimo, mas mesmo assim a palavra escolhida é, mais uma vez, perplexante: anastema, que significa algo como "protuberância". É de pouco auxílio a entender o sentido do Hebraico; São Jerónimo mantém-se constante, e traduz mais uma vez por substantia. Na prática, portanto, obtemos desta juxtaposição três definições possíveis:

  • Gen 7:4 -- yequm é de sentido vago e não identificável (Grego :: exanastasis)
  • Gen 7:23 -- yequm quer dizer todos os seres vivos, incluindo seres humanos (Grego :: anastema)
  • Deut 11:6 -- yequm quer dizer propriedade privada de seres humanos, incluindo, será de esperar, animais, mas excluindo tendas e casas. (Grego :: hypostasis)

A tradução mais esperada em Grego não teria sido nenhuma das três. Claro que não seria jamais possível prescindir do hypo- de hypostasis, visto que stasis por si só tem em Grego um sentido completamente diferente, indicando "imobilidade", e significando corriqueiramente "guerra civil". Mas havia outra palavra que teria permitido manter a coerência entre as três passagens, ao mesmo tempo que se mantinha a ambiguidade semântica. A palavra ousia é, famosamente, a nominalização do verbo 'ser' em Grego, algo como "sência". Devido à mesma evolução semântica que levou a que substantia quisesse dizer não apenas "substância filosófica" mas também "propriedade  privada", assim também ousia quer dizer as duas coisas. Teria sido a melhor palavra para traduzir, e nunca saberemos o porquê desta oscilação e insegurança.

PS: A palavra hebraica para o dilúvio é mabul. A palavra grega que a traduz é a palavra kataklysmos, cataclismo, que, visto que klysmos indica "ondas", etimologicamente aponta para algo como inundação.


04/10/2018

Sobre os Querubins do Jardim do Éden

Quando Yahweh-Elohim expulsa Adão e Eva do Jardim do Éden, fá-lo num momento dramático, precipitado, num esforço de contenção de danos. Adão já se tornara "como um de nós" [כאחד ממנו Gen. 3:22] (numa sobrevivência relativamente transparente que se refere ao politeísmo israelita, de tradição mesopotâmica, que antecede a redação final da Bíblia Hebraica), na medida em que já sabe o que é o Bem e o Mal. Parece, contudo, que há um outro prémio. Embora para ser "um de nós" baste esse conhecimento, há ainda a árvore da Vida, que lhe permitiria viver para sempre.

Yahweh-Elohim quer impedir isto, e precipita-se para expulsar Adão do Jardim do Éden. Fá-lo, entregando-o ao castigo que estabelecera anteriormente na história: cultivar a terra. Para impedir o casal de voltar, Yahweh-Elohim coloca antes de mais querubins "a leste do Jardim do Éden [...] para guardar a árvore da vida]". O sentido exacto da palavra 'querubim' é incerto. Provavelmente, dizem-nos estudos de mitologia comparada, é o mesmo tipo de ente que no meio mesopotâmico se chamava em Sumério e Acádico lamassu, shedu, ou (atente-se) kirubu, as estranhas figuras esfíngicas que adornavam os palácios imperiais da Babilónia e da Assíria. Hoje em dia os mais famosos são certamente os do palácio do rei Sargão II em Dur-Sharrukin, que abrem a secção mesopotâmica do Louvre [ilustração abaixo].

Ao contrário do que a iconografia dita e da imagem mental que costumamos ter, os querubins que defendem o Jardim não empunham espadas de fogo. Aquilo que o texto diz é: "Colocou a leste do Jardim do Éden os querubins e o fogo da espada (i.e., a espada de fogo) giratória" [Gen 3:24 וישכן מקדם לגן־עדן את־הכרבים ואת להט החרב המתהפכת]. Que os Querubins estão a empunhar a espada de fogo giratória não é algo que apareça no texto. O argumento, simples e cândido, de que essa seja uma dedução lícita tendo em conta a parcimónia do texto, não se aguenta com muita força se admitirmos que os Querubins sejam as tais criaturas descritas acima, pelo motivo honesto de que não penso que seja muito simples segurar uma espada com aquilo que são, na prática, cascos de vaca.

O Hebraico possui apenas dois géneros, masculino e feminino. Em Grego há o terceiro, o género neutro. A versão grega do texto refere-se aos Querubins com um artigo neutro ["τὰ χερουβιμ"], indicando que, pelo menos aquando da tradução para Grego, estes Querubins estão entendidos como seres não necessariamente antropomórficos. Algo que um estudioso de Grego achará estranho, visto que a língua grega não tem pudor em designar criaturas, mesmo híbridas, com os géneros outros que não sejam o neutro. São as sereias (feminino), são os centauros (masculino), não o neutro. É certo devemos dizer que o tratamento linguístico que a Bíblia Grega faz dos Querubins é ambíguo. No livro do Êxodo, nas passagens sobre os Querubins que adornam a Arca da Aliança, o género masculino e o neutro intercalam-se, assim como nos querubins da quadriga de Deus na visão mística do livro de Ezequiel, mas o neutro tende a predominar.

É ainda de notar que a espada de fogo é definida individualmente - é A espada de fogo giratória. A imagem que portanto se desenha é que, a proteger o Jardim do Éden, há não só os Querubins - gado bovino com cara de gente - como também uma espada em chamas a girar em alta velocidade no perímetro do lugar.