12/11/2013

Por amor ao Grego. Notas sobre a aprendizagem das línguas clássicas


O problema da sobrevivência das línguas Clássicas já há muito deixou de ser um problema dos liceus e das escolas secundárias, tendo-se transferido para o coração dos Estudos Clássicos a nível universitário. A escolha estratégica no pós-Guerra de finalmente deixar de ensinar a Literatura Greco-Latina nas línguas originais e passar a ensiná-las em tradução permitiu que os Estudos Clássicos sobrevivessem como disciplina universitária mas, apesar dessa lufada de ar fresco institucional, foram uma pírrica vitória que trouxe consigo um descentrar das atenções e dos esforços académicos para longe do ensino das línguas, que deixaram de ser uma prioridade indispensável para passarem a ser uma bem-vinda (e não raro surpreendente) vantagem. Cada vez mais por todo o mundo Ocidental até mesmo os estudos superiores em Clássicas, como Mestrados e Doutoramentos, vão deixando de exigir o conhecimento prévio das línguas antigas. No mundo anglossaxónico cresce a instituição dos cursos paralelos de Classics e de Classical Studies, onde o segundo dá de caras que tudo será estudado em tradução, podendo assim o apressado discípulo poupar o tempo que gastaria a aprender a ler Tucídides em grego e empregá-lo antes a ler comentários a Tucídides em inglês ou em alemão.

Os avisos contra esta situação já soam há vários anos se não décadas. Chegou-me recentemente às mãos um artigo de 2003 (cuja leitura recomendo vivamente) que lê este problema à luz solar da distinção hegemónica — embora de forma alguma limitada às Clássicas — entre ensino & investigação. Toma como ponto axial o grande pedagogo byzantino Manuel Chrysoloras (1355-1415), ao qual devemos o renascimento do estudo da língua Grega no Ocidente, entendendo por isso a restauração duma tradição escolar que, de mestres a alunos, sobrevive até aos nossos dias. A leitura do autor do tal artigo é que a sobrevivência académica dos Estudos Clássicos, na medida em que teve que se reinventar com base em traduções, não foi de maneira alguma capaz de preservar a tradição didáctica das línguas propriamente ditas, tradição didáctica essa que é necessária para uma continuidade realmente sólida. O conhecimento profundo do grego e do latim é cada vez mais difícil de adquirir, e para isso não contribui pouco o facto de o ensino ser entendido como a função subalterna, claramente depois da investigação académica. O artigo comenta en passant e sem muita ironia que Chrysoloras não conseguiria obter uma cátedra universitária nos dias que correm por lhe faltar curriculum e publicações, e contrasta-o com o exemplo que nele poderíamos seguir : «According to [Chrysoloras'] model, excellent teaching of Greek must be viewed as a culturally significant activity (dare I suggest equally as important) along with research scholarship.»

Como dizia e reconheço, o problema da subvalorização da parte didáctica em favor da numerologia da investigação é, infelizmente, comum a muitas disciplinas. Aquilo que no meu ver exacerba a questão no que diz respeito ao ensino do Grego, e por conseguinte do Latim também, é que é a destreza linguística é um tipo conhecimento que, uma vez não transmitido, apenas a custo se reconquista: disso é testemunho toda a história do século XV e XVI. É muito difícil ganhar a fluidez textual que deveria ter sido conquistada aquando do ensino formal, pois depois desse terminar os estudantes são por norma forçados a virar-se para traduções e não se voltam a engajar com a língua didacticamente; em suma, são confrontados com o facto de que a sua educação linguística formal 'terminou'. (E felizes aqueles que conseguem dar aulas, e que por esse motivo terão que voltar a estudá-la, embora, pelas razões acima descritas, o mais das vezes por essa altura o mal estar já feito, e o resultado é muitas vezes a perpetuação de maus hábitos.)

Cito o artigo: «As research and publication in classics advance vigorously, ironically, at the same time, the basic transmission of the essential linguistic underpinning necessary to continue the authentic classical tradition declines and falters. [...] In respect to Greek, then, it may be only a slight exaggeration to suggest we are returning to a situation very similar to that at the end of the Middle Ages when Greek was almost unknown among educated Westerners.» Não chamo por Mais Chrysoloras e por Menos Wilamowitz por desgostar do Wilamowitz, mas sim porque um Wilamowitz é um sublime cume de ar rarefeito e sem saída, enquanto que um Chrysoloras é a condição de possibilidade para a manutenção e perservação da tradição cultural e textual da qual o Wilamowitz depende. De forma que isto não é um manifesto contra a investigação, e é imperativo que não seja lido como tal. É em vez disso um reconhecimento de que a investigação, que poderíamos definir algo toscamente como a «produção de conhecimento» deve ser tornada dependente, até mesmo hierarquicamente, duma reforma que conceda os privilégios à função educativa das universidades.

Falamos muito do fim do positivismo, e inchamos o peito ao julgarmo-nos tão mais sábios do que os sábios do séc. XIX que acreditavam na cientificidade das Humanidades. Mas, como dizem os ingleses, the joke's on us, pois mantemos o propósito deles na medida em que nos impedimos a nós mesmo de o combater ao mentirmos a nós mesmos e ao fingirmos que já nos libertámos dele. A função duma Universidade — e da educação em geral — não pode ser gerar conhecimento mas sim transmiti-lo. As Universidades são péssimas a gerar aquele conhecimento realmente revolucionário de que sempre carecemos. Antes, é precisamente na sua índole de instituições conservadoras e tradicionalistas que jazem as suas virtudes. Em suma, na transmissão do conhecimento. O abandono desta percepção, e o querer ser simultaneamente dragão e estafeta, condenou o ensino universitário à deriva em que está.

Não vamos ainda demasiado tarde. Naquilo que diz respeito ao ensino das línguas clássicas, é preciso infelizmente abandonar basicamente toda a carga acumulada ao longo de século e meio e voltar aos métodos humanistas, que continuaram a dar frutos até mesmo vários séculos após o fim do Latim como língua franca. Digo isto para refutar a ideia, por vezes proposta, de que uma reforma da pedagogia seria impossível visto que o contexto histórico foi perdido. É claro que estavam ligados ambos, mas eu diria que a relação é outra: o imperativo social de ensinar Latim e Grego a altos níveis fez com que se desenvolvessem métodos altamente avançados, mas apesar de esse imperativo já não estar vigente é possível apesar disso continuar a usar a pedagogia que nesse contexto foi desenvolvida e utilizada.

Voltar portanto a investir na pedagogia, na verdadeira pedagogia linguística, não nas noções absurdas que nas Línguas Clássicas passam por reforma, e que raramente vão além de um novo e recentíssimo método de ensinar o rosa-rosæ. A revolução começa aí. Erradicar finalmente o positivismo wolfiano. Ensinar as línguas, não as linguísticas. Aprender muito da maneira como os nossos pares de outras línguas as transmitem aos seus alunos. Ler os textos, não os comentários nem as traduções. E finalmente: reconhecer que as grandes figuras do intelecto não são mais os escritores de mil páginas do que os educadores de mil alunos, e que enquanto o esforço intelectual esbanjado a fazer comentários e congressos tantas vezes inúteis não for relocalizado para o melhoramento dos métodos de ensino e o seu pragmatismo (pois as línguas, ao contrário do que nos dizem alguns profetas pós-modernos, são o elemento mais pragmático da nossa disciplina, e são sempre um meio; o carácter de sacralidade pode vir, e no meu caso vem, mas apenas a posteriori e mesmo então apenas a cada um individualmente), enquanto essa transferência não for feita continuaremos a ver o conhecimento a diminuir de ano para ano, até que atinja o zero e desistamos durante uns séculos, e tenhamos de esperar por alguém que se lembre de que o nosso amor ao grego é demasiado grande e tente começar de novo, mas aí pode já ser demasiado tarde, pois talvez Renascimento haja só um.

Sem comentários:

Enviar um comentário