04/11/2012

Tolkien e Janáček

Os meus conhecimentos de música são extremamente parcos, e será certamente esse uma das causas para eu não conhecer ópera mais corajosa que a Na Casa dos Mortos do Janáček. Nem alguém que jamais tenha música composto que a iguale em heroísmo. O possível concorrente, naturalmente Beethoven, está ainda presente num mundo onde esse heroísmo, mesmo se por 'heroísmo' entendermos o do herói isolado, mesmo que o heroísmo dum mundo que funcione a contra-corrente, que não o "aprecie", suscita ainda uma resposta da parte do mundo, seja de avassalação seja de rejeição: o heroísmo é ainda parte activa ou reactiva do mundo.

Janáček já não é capaz de viver esse mundo; aqui o titanismo das Symphonias, de algumas das Sonatas para Piano (do Fidelio?), deixou de se conseguir inserir. Aqui não não há mundo para o combate do espírito, talvez por o mundo estar desencantado ou talvez por desencantado estar o próprio herói. Mas aqui entra o paradoxo de Na Casa dos Mortos, algo extremamente evocativo do conceito que Tolkien exprime no ensaio Beowulf: The Monsters and the Critics: o do heroísmo pagão, algo que em termos de sheer nobility ultrapassa em muito o Übermensch nietzscheano — na medida em que este último está dependente do Eterno Retorno do Mesmo para dele derivar a sua valorização refundada, que de outro modo ameaçaria ser despedaçado pela inversão de todos os valores da qual ele próprio é origem e consequência.

O conceito de nobreza de Tolkienano tem então Beowulf, o rei do poema, como expoente máximo, pois por muito que o próprio Tolkien o tentasse transferir para a sua saga, em última instância falha — se ele foi tão bom em auto-crítica quanto o foi em filologia, teria sido capaz de apontar a si mesmo que tentara recriar uma éthica pagã num mundo impregnado de Christianismo. So win, who may, glory ere death. Esta nobreza é o beco-sem-saída da glória pessoal que não espera testemunhas, não espera recompensas, não espera agradecimentos, e certamente não espera vida eterna. O Christianismo levou isto apenas até um ponto quando Mateus sugere que a mão esquerda esconda da direita o bem que fizer [MT 6:3]; tivesse ficado por aqui e estaríamos ao mesmo nível absurdo da Edda Poética e do Beowulf. Mas, como a Hannah Arendt rectamente aponta, o Christianismo entendeu que a virtude praticada a tão alto nível seria insuportável não houvesse o garante mýstico de que Deus está a ver as nossas boas acções, mesmo quando (ou se calhar apenas quando) ninguém está a ver. Depende da visão de Deus, da companhia solitária da divindade.

Beowulf não pretende glória depois da morte. Pretende glória até à [usque ad ] morte. Daí a coroa da sua vida não ser um monumentum aere perennius, não ser a colinha vislumbrada à distância com que os navegantes se lembrariam delemas sim uma pira — como a de Aquiles e a de Pátroklo (cuja glória também não é o enterro mas sim os jogos, como o souberam Alexandre e Ájax). A música que exprime isto não pode ser a música desesperada dum Bartok nem a desistência perante a dignidade humana dum John Cage, mas sim a música que olhe o abysmo nos olhos, e que apesar de nele reconhecer os seus próprios traços se recusar a incorporar-se nele — antes de chegada a hora.

Daí ser também extremamente congruente que a obra que dê expressão musical a esta ideia seja baseada num texto de Dostoyevsky. Quem mais que Dostoyevsky compreendeu avant-la-lettre o dito de Simone Weil que "Deus é, portanto não pode existir"? Quem mais foi christão com essa coragem? Mas para o Christianismo de Dostoyevsky se tornar heróico precisou de perder a fé, precisou de perder Deus - e para isto foi preciso a música. Janáček toma-o, assume-o  e esmaga-o, o seu atheísmo é o medium perfeito para compreender o mais perfeito christão que alguma vez viveu. É desta união perfeita que nascerá também a Missa Glagolítica, que como tal jamais poderia ter sido escrita por alguém ainda em posse de fé, mas também jamais poderia ter sido escrita por alguém a quem a dignidade humana, a quem ouso aqui chamar heroísmo, se tivesse tornado já inexistente ou até mesmo indiferente. Estas obras de arte nascem não do desencantamento do mundo mas sim dá paganização das virtudes theologais: Aquelas esperança fé e graça que seriam permitidas a um Lucrécio, a um Vergílio dolente; a nós. 





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