Os meus conhecimentos de música são extremamente parcos, e será certamente esse uma das causas para eu não
conhecer ópera mais corajosa que a Na Casa dos Mortos do Janáček. Nem alguém que jamais tenha música composto
que a iguale em heroísmo. O possível concorrente, naturalmente Beethoven, está
ainda presente num mundo onde esse heroísmo, mesmo se por 'heroísmo'
entendermos o do herói isolado, mesmo que o heroísmo dum mundo que funcione a
contra-corrente, que não o "aprecie", suscita ainda uma resposta da
parte do mundo, seja de avassalação seja de rejeição: o heroísmo é ainda parte
activa ou reactiva do mundo.
Janáček já
não é capaz de viver esse mundo; aqui o titanismo das Symphonias, de algumas das Sonatas
para Piano (do Fidelio?),
deixou de se conseguir inserir. Aqui não não há mundo para o combate do
espírito, talvez por o mundo estar desencantado ou talvez por desencantado
estar o próprio herói. Mas aqui entra o paradoxo de Na Casa dos Mortos, algo extremamente evocativo do conceito
que Tolkien exprime no ensaio Beowulf: The Monsters and the Critics: o do
heroísmo pagão, algo que em termos de sheer nobility ultrapassa em muito o Übermensch nietzscheano — na medida em que este último está
dependente do Eterno
Retorno do Mesmo para dele
derivar a sua valorização refundada, que de outro modo ameaçaria ser
despedaçado pela inversão de todos os valores da qual ele próprio é origem e
consequência.
O
conceito de nobreza de Tolkienano tem então Beowulf, o rei do poema, como
expoente máximo, pois por muito que o próprio Tolkien o tentasse transferir
para a sua saga, em última instância falha — se ele foi tão bom em auto-crítica
quanto o foi em filologia, teria sido capaz de apontar a si mesmo que tentara
recriar uma éthica pagã num mundo impregnado de Christianismo. So win, who may, glory
ere death. Esta nobreza é o
beco-sem-saída da glória pessoal que não espera testemunhas, não espera
recompensas, não espera agradecimentos, e certamente não espera vida eterna. O
Christianismo levou isto apenas até um ponto quando Mateus sugere que a mão esquerda esconda da
direita o bem que fizer [MT
6:3]; tivesse ficado por aqui e estaríamos ao mesmo nível absurdo da Edda Poética e do Beowulf. Mas, como a Hannah Arendt rectamente
aponta, o Christianismo entendeu que a virtude praticada a tão alto nível seria
insuportável não houvesse o garante mýstico de que Deus está a ver as nossas boas acções, mesmo quando
(ou se calhar apenas quando) ninguém está a ver. Depende da visão de Deus, da
companhia solitária da divindade.
Beowulf
não pretende glória depois da morte. Pretende glória até à [usque
ad ] morte. Daí a coroa da sua vida não ser
um monumentum
aere perennius, não ser a
colinha vislumbrada à distância com que os navegantes se lembrariam delemas sim uma pira — como a de Aquiles e a de
Pátroklo (cuja glória também não é o enterro mas sim os jogos, como o souberam
Alexandre e Ájax). A música que exprime isto não pode ser a música desesperada
dum Bartok nem a desistência perante a dignidade humana dum John Cage, mas sim
a música que olhe o abysmo nos olhos, e que apesar de nele reconhecer os seus
próprios traços se recusar a incorporar-se nele — antes de chegada a hora.
Daí
ser também extremamente congruente que a obra que dê expressão musical a esta
ideia seja baseada num texto de Dostoyevsky. Quem mais que Dostoyevsky
compreendeu avant-la-lettre o dito de Simone Weil que "Deus é, portanto
não pode existir"? Quem mais foi christão com essa coragem? Mas para o
Christianismo de Dostoyevsky se tornar heróico precisou de perder a fé,
precisou de perder Deus - e para isto foi preciso a música. Janáček toma-o,
assume-o e esmaga-o, o seu atheísmo é o medium perfeito para
compreender o mais perfeito christão que alguma vez viveu. É desta união
perfeita que nascerá também a Missa Glagolítica, que como tal jamais poderia
ter sido escrita por alguém ainda em posse de fé, mas também jamais poderia ter
sido escrita por alguém a quem a dignidade humana, a quem ouso aqui
chamar heroísmo, se tivesse tornado já inexistente ou até
mesmo indiferente. Estas obras de arte nascem não do desencantamento do mundo
mas sim dá paganização das virtudes theologais: Aquelas esperança fé e graça
que seriam permitidas a um Lucrécio, a um Vergílio dolente; a nós.
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