28/10/2010

Fala-me da Morte e de Veneza

— De lá o homem parte e cavalga três dias entre o gregal e o Levante… — recomeçava Marco, e a enumerar nomes e costumes e comércios de um grande número de terras. O seu repertório podia dizer-se inesgotável, mas agora foi a sua vez de se render. Era de madrugada quando disse: — Sire, já te falei de todas as cidades que conheço.
— Falta uma de que nunca falas.
Marco Polo baixou a cabeça-
— Veneza — disse o Kan.
Marco sorriu. — E de qual julgavas que eu te falava?
O imperador nem pestanejou. — Mas nunca te ouvi dizer o seu nome.
E Polo: — Sempre que descrevo uma cidade digo qualquer coisa de Veneza.
— Quando te pergunto por outras cidades, quero ouvir-te falar delas. E de Veneza, quando te perguntar por Veneza.
— Para distinguir as qualidades das outras, tenho de partir de uma primeira cidade que está implítica. Para mim é Veneza.
— Deverias então começar todos os relatos das tuas viagens pelo princípio, descrevendo Veneza tal como é, toda, sem omitir nada do que dela recordas.
As águas do lago tinham-se encrespado um pouco; o reflexo dos ramos do antigo palácio dos Sung quebrava-se em reverberações cintilantes como folhas a boiar.
— As imagens da memória, depois de fixadas com as palavras, apagam-se — disse Polo. — Talvez eu tenha medo de perder Veneza toda de uma vez, se falar dela. Ou talvez, ao falar de outras cidades, já venha a perdê-la pouco a pouco.

Italo Calvino. As Cidades Invisíveis. José Barreiros (trad.) Teorema (1990).


They still avoided him as a topic of conversation, because mere words were liable to detract from what they saw as an exalted feeling in their hearts. This reluctance to talk about him meant that they were gradually forgetting him, though they would never have believed it.

Tolstoy. War and Peace. Anthony Briggs (trad.). Penguin. (2006)


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