O facto de não conseguirmos jamais deixar de esperançar das gerações futuras é simultaneamente o nosso grande erro e a nossa única possibilidade de esperança. O que torna a esperança o nosso grande erro, sim, mas isso já Zeus e Pandora sabiam quando esta se apercebeu que, do jarro dos males, apenas a esperança restou segura e pronta. Pronta significa: prestes a dar-se, prestes a oferecer-se como positiva. Ninguém, a não ser num leibnizianismo por vezes tão engenhoso quanto aparentemente tonto, se atreveria a dizer que a guerra é boa porque trará eventualmente consequências --ou resultados matematicamente apurados-- positivas. Ou as doenças, ou as traições. Mas a esperança é a auto-ilusão que permite a nobre mentira de ser auto-causada: a nobre mentira que é a ilusão tão maior quanto mais necessária. Há duas noções de esperança. Uma é a noção latina de esperança enquanto sperantia. A noção grega, a élpis, é helein-pístis, no sentido de tomar a fé enquanto um tomar duplo: eu não me limito a esperar que as coisas aconteçam, tomo também uma acção. Nascemos todos com a maior promessa da humanidade presa dentro de nós. Élpis significa: retirar essa promessa de dentro de nós, assumir a impossibilidade de dela tomarmos conta, de a ela fazermos justiça, e pergar-lhe, transformá-la na fé de quem pega em sementes de mão aberta e espera que a respiração divina as espalhe pelo mundo. Mas este é um dia de verão, e a terra está demasiado quente, não há vento que as leve nem água que as regue se as deixar cair. A élpis é saber que esta terra não dá, mas que talvez outras dêm; é saber que eu não posso chegar a essas terras porque sou apenas humano e não posso atravessar oceanos. Posso apenas ir passado as sementes em sucessão para as aproximar duma terra desconhecida que nem eu sei onde é, mas chegará uma altura em que a mais vindoura das gerações terá de esperar, de mão aberta ao espírito, para que ele espalhe pelo mundo a possibilidade da geração. Os deuses precisam de nós, mais até do que nós precisamos deles. A humanidade pode viver sem esperança, era alguma da humanidade desacreditou esse truísmo, e por muito que os filósofos condenem este estado meramente apetitoso de se Ser humano não há nada que eles possam oferecer como verdadeiro fundamento para uma outra acção -- se somos humanos, tanto podemos ser bestas quanto sobrehumanos, tanto se nos dá, e não é a arrogância do profeta que pode absolutizar: o humano é a extrema liberdade para o auto-inferno ou para o paraíso adiado para além do limite da nossa morte. Mas o deus não pode reagir assim. O deus sem um ser huamano a quem dar futuro é como a palavra de que não nos conseguimos lembrar no momento oportuno da conversa, aquela palavra exacta que traria o logos a bom porto. O deus precisa do ser humano porque precisa de destruir o ser humano para oferecer um novo ser à terra, uma geração futura de criações. Mas a semente dessa nova geração jaz nas mãos do ser que neste momento jaz no meio do deserto com um punhado de sementes dentro da mão cerrada, como um conceito positivo. A ele cabe o futuro do deus. Pode continuar no deserto para sempre, em cujo caso o deus provavelmente morrerá, ou pode ficar no deserto com a mão aberta, como um sacerdote de Athos-- esta é a esperança enquanto sperantia, benevolente e perfeitamente suficiente para uma época que ainda cria na omnipotência de deus; Deus precisaria apenas que o ser humano quisesse que a humanidade fosse salva para que Ele quisesse providenciar. O nosso tempo já não crê nessa omnipotência; quer isso se deva a essa omnipotência ter desaparecido ou nunca ter sequer existido é irrelevante. Agora, o ser humano pode ainda caminhar numa qualquer direcção para tentar ajudar o deus. Claro que não há qualquer garante que esteja sequer a andar numa direcção benfazeja para com os desígnios desse espírito, as pegadas podem até até estar a afastá-lo do oceano, daquele que dá memória do deus e oferece promessas do humano. Mas esse tomar-fé, essa élpis, é também tomar fé de que pode estar a ir na direcção certa, que quando o espírito soprar esse talvez possa até usar as pegadas do caminhante do deserto para se orientar a ele mesmo. Esta é a esperança mais difícil, é a esperança da virtude da dádiva do humano ao deus para a salvação deste e para a destruição de si. Ambas são pesadas como uma respiração ofegante.
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