31/10/2010

Trevas e não Luz

Ai daqueles que desejam ver o dia do Senhor!
Que será para vós o dia do Senhor?
Trevas e não luz.

Como aquele que escapa de um leão,
mas dá de encontro com um urso;
ou que volta para casa,
mas ao tocar com a mão na parede é mordido pela serpente,

sim, o dia do Senhor será trevas e não claridade,
escuridão, e não luz.

Aborreço as vossas festas; elas desgostam-me;
não sinto gosto algum nos vossos cultos;

quando me ofereceis holocaustos e ofertas,
não encontro neles prazer algum,
e não faço caso dos vossos sacrifícios e animais cevados.

Longe de mim o ruído dos vossos cânticos,
não quero mais ouvir a música das vossas harpas;

mas, antes, que jorre a equidade como uma fonte
e a justiça como uma torrente que não seca.

Amós 5.18-24. Editorial Missões.

The lion hath roared

The lion hath roared, who will not fear?
the Lord GOD hath spoken, who can but prophesy?

Amos 3:8, KJV

28/10/2010

Fala-me da Morte e de Veneza

— De lá o homem parte e cavalga três dias entre o gregal e o Levante… — recomeçava Marco, e a enumerar nomes e costumes e comércios de um grande número de terras. O seu repertório podia dizer-se inesgotável, mas agora foi a sua vez de se render. Era de madrugada quando disse: — Sire, já te falei de todas as cidades que conheço.
— Falta uma de que nunca falas.
Marco Polo baixou a cabeça-
— Veneza — disse o Kan.
Marco sorriu. — E de qual julgavas que eu te falava?
O imperador nem pestanejou. — Mas nunca te ouvi dizer o seu nome.
E Polo: — Sempre que descrevo uma cidade digo qualquer coisa de Veneza.
— Quando te pergunto por outras cidades, quero ouvir-te falar delas. E de Veneza, quando te perguntar por Veneza.
— Para distinguir as qualidades das outras, tenho de partir de uma primeira cidade que está implítica. Para mim é Veneza.
— Deverias então começar todos os relatos das tuas viagens pelo princípio, descrevendo Veneza tal como é, toda, sem omitir nada do que dela recordas.
As águas do lago tinham-se encrespado um pouco; o reflexo dos ramos do antigo palácio dos Sung quebrava-se em reverberações cintilantes como folhas a boiar.
— As imagens da memória, depois de fixadas com as palavras, apagam-se — disse Polo. — Talvez eu tenha medo de perder Veneza toda de uma vez, se falar dela. Ou talvez, ao falar de outras cidades, já venha a perdê-la pouco a pouco.

Italo Calvino. As Cidades Invisíveis. José Barreiros (trad.) Teorema (1990).


They still avoided him as a topic of conversation, because mere words were liable to detract from what they saw as an exalted feeling in their hearts. This reluctance to talk about him meant that they were gradually forgetting him, though they would never have believed it.

Tolstoy. War and Peace. Anthony Briggs (trad.). Penguin. (2006)


27/10/2010

fanatismo

É nos mais cultos que se encontra o fanatismo, porque o homem é culto a partir do momento em que se interessa pelas coisas espirituais, e este interesse pelo espiritual, se for vivo, é precisamente o fanatismo, e tem de o ser: é um interesse fanático pelo sagrado (fanum*).

* Templo, lugar consagrado a uma divindade.


Max Stirner, O Único e a sua Propriedade. João Barrento (trad.) Antígona. (2004)

junho

não direi da morte o súbito rumor
é mais do que isso o que se sente em junho
o estar e não saber onde nos crescem as raízes
que ao olhar não chegam mas a língua invoca

Diogo Pires Aurélio, a herança de hölderlin. Assírio e Alvim.(1978)

26/10/2010

Gonçalo M. Tavares

O GMT é o nosso fuso horário.


Latim Jurídico

Há cerca de 1 ano estive a partilhar um apartamento com um caro colega que estava vindo do Brasil a fazer uma pós-graduação em Direito. Felizmente não nos cruzávamos muitas vezes, mas das poucas em que falámos ficou no ar que ah e tal eu estudava latim e que ele ah e tal me precisava de pedir umas traduções. Tudo muito bem. Assumo eu que se trata de palavras ou expressões técnicas em latim que ele fosse encontrando nos livros. Com o maior gosto. Um dia descubro passada por baixo da porta a seguinte nota (todos os erros são [sic]):


Oi miguel, poderia traduzir essas palavras para o latin?

Grato
[Nome]

Vossa excelência
Peço
Requeiro a vossa/sua excelência
Incontestável
Contestável
Calate!
Obrigado/Desculpa
Amo-te/Odeio-te
Incontestavalmente culpado
Induvidavelmente culpado
Cara a cara
Perguntando lhe a verdade
Que se cumpra a verdade
Verdade acima de tudo


Fiquei assim parvo e durante 2 semanas estive "com algumas dificuldades a traduzir". O que foi excelente, porque depois desse período por alguma razão ele foi-se embora. Não que a ideia de ver um tipo não particularmente inteligente a bradar numa sala de tribunal "FIAT VERITAS" com ar de cólera divina não tenha a sua piada enquanto exercício mental, mas infelizmente o mundo terá de passar sem isso.

o Cardeal Bernardino Spada, por Guido Reni

A Revolução Faz-se Sem Wagner


Wagner is a classic example of someone who, when young, is a passionately committed and active left-wing revolutionary, but then becomes disillusioned with politics and turns away from it altogether in middle age. Former comrades who retain their left-wing commitment usually see such a person as 'moving to the right', and of course some do, they become conservatives. But in most cases this is an uncomprehending way of seeing what is happening. For most such people are not switching from one political allegiance to another, they are becoming disillusioned with politics as such. They are acquiring a different sort of outlook on life, one that does not see politico-social issues as primary. And this is what happened to Wagner.He did not 'move to the right' in the sense of becoming a conservative: never at any time in his life was he conservative in his views or attitudes: to the end of his days he remained radically critical of the society he knew, and never from a right-wing point of view. But he became disillusioned, and bitterly so, with the possibilities of idealistic change. The unforgiving bitterness of the disappointed left-winger is a quite different phenomenon psychologically from the curmudgeonliness of the reactionary, even if in elderly people the two often show some of the same symptoms. One is bitterness at the loss of a past, the other bitterness at the loss of a future. What they have in common is dislike of the present, but in one case this is based on traditional values and in the other on the pain of having relinquised hopes for a radically different future. Be all this as it may, Wagner certainly ceased to be a revolutionary, or a socialist, or anything other than a spasmodic and atavistic devotee of the residual values of failed leftism in the later part of his life, without becoming conservative or right-wing or reactionary — none of the last three epithets ever applied to him. His significant movement was not from left to right but from politics to metaphysics.

Bryan Magee, The Tristan Chord. Metropolitan Books. (2000)

Gary Lehman enquanto Tristão, daqui.

12/10/2010

Amazon e Portugal

bárbaros. bárbaros!

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Fonte.
 

04/10/2010

Duas Esperanças

O facto de não conseguirmos jamais deixar de esperançar das gerações futuras é simultaneamente o nosso grande erro e a nossa única possibilidade de esperança. O que torna a esperança o nosso grande erro, sim, mas isso já Zeus e Pandora sabiam quando esta se apercebeu que, do jarro dos males, apenas a esperança restou segura e pronta. Pronta significa: prestes a dar-se, prestes a oferecer-se como positiva. Ninguém, a não ser num leibnizianismo por vezes tão engenhoso quanto aparentemente tonto, se atreveria a dizer que a guerra é boa porque trará eventualmente consequências --ou resultados matematicamente apurados-- positivas. Ou as doenças, ou as traições. Mas a esperança é a auto-ilusão que permite a nobre mentira de ser auto-causada: a nobre mentira que é a ilusão tão maior quanto mais necessária. Há duas noções de esperança. Uma é a noção latina de esperança enquanto sperantia. A noção grega, a élpis, é helein-pístis, no sentido de tomar a fé enquanto um tomar duplo: eu não me limito a esperar que as coisas aconteçam, tomo também uma acção. Nascemos todos com a maior promessa da humanidade presa dentro de nós. Élpis significa: retirar essa promessa de dentro de nós, assumir a impossibilidade de dela tomarmos conta, de a ela fazermos justiça, e pergar-lhe, transformá-la na fé de quem pega em sementes de mão aberta e espera que a respiração divina as espalhe pelo mundo. Mas este é um dia de verão, e a terra está demasiado quente, não há vento que as leve nem água que as regue se as deixar cair. A élpis é saber que esta terra não dá, mas que talvez outras dêm; é saber que eu não posso chegar a essas terras porque sou apenas humano e não posso atravessar oceanos. Posso apenas ir passado as sementes em sucessão para as aproximar duma terra desconhecida que nem eu sei onde é, mas chegará uma altura em que a mais vindoura das gerações terá de esperar, de mão aberta ao espírito, para que ele espalhe pelo mundo a possibilidade da geração. Os deuses precisam de nós, mais até do que nós precisamos deles. A humanidade pode viver sem esperança, era alguma da humanidade desacreditou esse truísmo, e por muito que os filósofos condenem este estado meramente apetitoso de se Ser humano não há nada que eles possam oferecer como verdadeiro fundamento para uma outra acção -- se somos humanos, tanto podemos ser bestas quanto sobrehumanos, tanto se nos dá, e não é a arrogância do profeta que pode absolutizar: o humano é a extrema liberdade para o auto-inferno ou para o paraíso adiado para além do limite da nossa morte. Mas o deus não pode reagir assim. O deus sem um ser huamano a quem dar futuro é como a palavra de que não nos conseguimos lembrar no momento oportuno da conversa, aquela palavra exacta que traria o logos a bom porto. O deus precisa do ser humano porque precisa de destruir o ser humano para oferecer um novo ser à terra, uma geração futura de criações. Mas a semente dessa nova geração jaz nas mãos do ser que neste momento jaz no meio do deserto com um punhado de sementes dentro da mão cerrada, como um conceito positivo. A ele cabe o futuro do deus. Pode continuar no deserto para sempre, em cujo caso o deus provavelmente morrerá, ou pode ficar no deserto com a mão aberta, como um sacerdote de Athos-- esta é a esperança enquanto sperantia, benevolente e perfeitamente suficiente para uma época que ainda cria na omnipotência de deus; Deus precisaria apenas que o ser humano quisesse que a humanidade fosse salva para que Ele quisesse providenciar. O nosso tempo já não crê nessa omnipotência; quer isso se deva a essa omnipotência ter desaparecido ou nunca ter sequer existido é irrelevante. Agora, o ser humano pode ainda caminhar numa qualquer direcção para tentar ajudar o deus. Claro que não há qualquer garante que esteja sequer a andar numa direcção benfazeja para com os desígnios desse espírito, as pegadas podem até até estar a afastá-lo do oceano, daquele que dá memória do deus e oferece promessas do humano. Mas esse tomar-fé, essa élpis, é também tomar fé de que pode estar a ir na direcção certa, que quando o espírito soprar esse talvez possa até usar as pegadas do caminhante do deserto para se orientar a ele mesmo. Esta é a esperança mais difícil, é a esperança da virtude da dádiva do humano ao deus para a salvação deste e para a destruição de si. Ambas são pesadas como uma respiração ofegante.

Há piores metáforas

Martin Heidegger é o grande mestre do espanto, o homem cujo assombro perante o facto concreto de que somos em vez de não sermos, instalou um obstáculo radiante no caminho do óbvio. O seu pensamento é um pensamento que torna imperdoável a condescendência, mesmo momentânea, para com o facto da existência. Na clareira da floresta a que conduzem os seus caminhos circulares, embora não a alcancem, postulou Heidegger a unidade do pensamento, da poesia, e desse acto qe é o acto mais elevado de orgulho mortal e de celebração, que é o dar graças. Há piores metáforas segundo as quais podemos viver.

George Steiner, Heidegger. João Paz (trad), Dom Quixote. 1990.