26/01/2010

Sócrates e Zarathustra





"Fico continuamente espantado com quão mal conheço Platão e com o quanto Zarathustra platonizei!"
- Nietzsche

Que Zarathustra é uma máscara de Nietzsche é um facto tão básico que dificilmente valeria a pena apontar. Por máscara é importante que se perceba que o que está em jogo é uma distanciação da personagem poiética do poiêtes enquanto actor do mundo. Interessa também que a revelação total, o desmascaramento completo, ou é absolutamente destrutivo ou absolutamente impossível. Camadas sobre camadas que dão forma cósmica à personalidade, como se no fundo não encontrássemos nada mais que aquele Eu kantiano ou, o que é o mesmo, o Espírito de Hegel, ambos desprovidos da ordenação e da distinção que só Apolo é capaz de conceder.

Zarathustra é então uma máscara, então, mas é apenas a máscara dominante. Não é a única, sendo a primeira aquela que se impõe entre a personalidade e a capacidade de expressão dessa mesma personalidade. E cada vez mais à medida que se mergulha no poço da expressão escrita, e ainda mais naquele que é o mais alienante das técnicas de expressão, a mais obscura, a poesia. Assim também com Platão é um erro de sobremaneira descobrir em Sócrates um caminho progressivo de uma representação do Sócrates histórico na direcção de uma purificação platonizante deste. O Sócrates dos diálogos seria portanto o Sócrates histórico inicialmente tal qual (assim como surge nos diálogos aporéticos da juventude platónica com o famoso " que é...? (τι εστίν...?"), que provavelmente seria o comportamento histórico de Sócrates, a mosca que espicaça os atenienses. E à medida que o próprio Platão amadurece, transformar-se-ia Sócrates num avatar do próprio Platão, como na República, a expor as ideias que Platão exporia. Falo disto porque desejo atacar. Porque também Sócrates é apenas o avatar dominante, mas de maneira nenhuma o único. E fala tanto Platão, nas suas dúvidas e nas suas incertezas, nas suas convicções alternativas, e até nos seus triunfos contra si (pensemos no Parménides, onde o parricídio do mestre se conjuga com o suicídio).

Platão é, como Nietzsche, um poeta. São ambos filósofos-poetas, certo, os maiores de sempre, mas por muito que sejamos tentados quando os vemos nas prateleiras de Filosofia, pergunto-me por vezes quão mais justamente não seria dada a sua preeminência na outra, na Poesia. Os poetas que se dividem em mil nomes. A diferença é que Platão fá-lo abertamente de modo dramático: mil personagens que surgem que falam, que combatem umas com as outras na arena da filosofia-que-é-poesia. Nietzsche fá-lo de outra maneira, recuando, contradizendo-se, desfazendo o seu próprio nome em paroxismos que atacam a própria posição.

Mas não nos iludamos: o jogo é o mesmo. Até o próprio avatar dominante, como vimos Zarathustra num caso, Sócrates no outro, tantas vezes se confundem nas suas agendas e nas suas coincidências parecem revelar a chave para a necessidade de todo este vitral de luzes que se batem. Pois as figuras são como idênticas, dois mestres, nenhum deles profeta, e ambos estilhaçadores de dogmas. Zarathustra sabe que apenas quando os seus discípulos o conseguirem renegar a sua doutrina se completará. Sócrates apela ao poder persuasivo da verdade mesmo em sacrifício daquilo que ele oferece: a ordenação por mérito de Zarathustra é o equivalente possível depois da morte de Deus à dialéctica socrática; é pouco de surpreender que sejam ambas noções profundamente apolíneas. E ambos são os sacerdotes do Deus-Sol, ambos metaxu: Sócrates, o daemon a meio caminho entre a humanidade e o divino; Zarathustra, a meio caminho entre humano e sobrehumano. E as suas lições assentam-se sempre sob hipóteses dianoéticas: os “e se…” desenvolvidos como possibilidades constructivas nas quais a verdade se construirá; para além dessas hipóteses, que Sócrates chama por exemplo as potencialidades matemáticas que na República demonstra serem bases falsas sobre as quais construir um conhecimento, isto é, que em última instância são humanamente feitas, que é o mesmo que dizer que são poesia, e que no caso de Sócrates só poderão ser substituídas no momento da contemplação final da verdade, que proporcionará o conhecimento absoluto; e que no caso de Zarathustra, que, como moderno que é, sabe já que essa contemplação aniquila, permanecem o ponto de partida suficiente, o que explica a sua afirmação na Vontade de Poder que a arte vale mais que a verdade: porque a arte é constructiva, enquanto que a verdade destrói pois encontra o vazio do Divino, que tem portanto que ser mascarado. Porém convergem ainda, pois no momento em que a educação ainda é possível, ambos ensinam a o valor imprescindível das mentiras nobres, pois são os corifeus do theatrum mundi.

E isto mantém-se verdade mesmo quando as máscaras oficiais começam a cair. Pois a máscara só funciona na perfeição quando se confunde com a potencialidade da personagem que esconde. E é assim que Sócrates vai decaindo, e os estrangeiros entram em cena; é assim também que Nietzsche pode escrever, após terminar o Assim Falava Zarathustra, "Preciso de falar. Chegou a minha vez, e basta de Zarathustra!"

Mas certamente iludir-nos-íamos caso acreditássemos verdadeiramente que toda a produção de Nietzsche a partir do excerto que se precedeu se possa fazer coincidir numa visão coerente e unitária. Tal afirmação é de novo de tal modo ludibriosa que dificilmente careceria de constatação. Basta lembrar que, mesmo descontando Para Além do Bem e do Mal como uma reelaboração do Zarathustra, temos ainda que contar com a produção daquele ano explosivo de 1888, onde Nietzsche faz uso dum estratagema semelhante a Platão, que parece desfazer a máscara quando nas Leis põe em cena o Estrangeiro Ateniense: falar com a própria voz é apenas mais uma ilusão, como famosamente nos surge o mais misterioso dos heterónimos de Pessoa, a saber o ortónimo.

Porque esta voz una não faz mais que ser a mais coberta de máscaras, e deste modo a mais humana, na medida em que ironicamente não utiliza o recurso literário da máscara propriamente dita. O Estrangeiro Ateniense pretende mostrar-se como a identificação de Platão, assim como Nietzsche pretende falar pela boca de Nietzsche. Mas nenhum pode ser a realidade profunda, pois essa só pode ser acedida mediante essas máscaras. As máscaras caem apenas com a morte. Antes disso, sob elas há o caos inescrutável, e o total dionisíaco: Platão chamar-lhe-ia o fluxo e a physis que, dada preeminência na convivência e no discurso humano, acabaria por destruir a possibilidade de exibir uma realidade coerente, e daí a sua guerra eterna contra Heraclito e os seus herdeiros cosmológicos, os sofistas. A diferença então entre esta aproximação é que Nietzsche é mais está disposto a dar um passo à frente, na medida em que para ele não há um Logos a proteger, a partir do momento em que oscilação entre o Cosmos e o Chaos deixa de ser uma opção onde escolher um Logos ordenador seja uma escolha ética, como o fora para Platão, e passar a ser uma escolha estética. Por Logos ordenador entendo a faculdade apolínea da ordenação por mérito necessária pela Vontade de Poder. Nietzsche compreende a importância de aceitar essa faculdade apolínea como uma máscara, e compreende também a sua função na ordenação da Vontade de Poder como aquilo que esconde a Verdade física de fluxo, o Chaos. Entra portanto no jogo do mundo.

Platão, para quem o chaos é algo a conquistar logicamente mais que a reconhecer tapando, paradoxalmente acaba por reconhecer a sua presença quando se recusa à confissão que seria um mostrar-se absoluto. Isto é melhor reconhecido quando substituímos a chamada Questão Socrática por uma suposta Questão Platónica: já não “quando, nos diálogos platónicos, é que Sócrates nos fala?” ou “quem é Sócrates?” mas mais importantemente, “quando, nos diálogos platónicos, é que Platão nos fala?” e “quem é Platão?” A resposta, ontem como hoje, para Platão e para Nietzsche igualmente, é o mais ulíssico Ninguém.

Imagem da esquerda, detalhe de A Morte de Sócrates, por Jacques-Louis David. Imagem da direita, detalhe de Zarathustra, por Setsuko Aihara.

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