30/08/2020

Joy is the full sun and the half shadow. [um poema do Geoffrey Hill]

A alegria é o sol inteiro e a sombra a meio.
Doze parece pouco equilibrado, não há dúvida —
a cidade tem cá uns patriarcas! Mas desequilíbrio

há por toda a parte. Nas placas tectónicas
que despedaçam a Islândia, só para começar.
Não sou um tipo muito de Fortuna, por muito que adore

Boécio. E a ironia tem limites.
Se julgassem isto senequiano para mim era uma honra.
Na orgulhosa e amargurada justa de Surrey, na sua elegia

sem tretas ao Wyatt, consigo encontrar forças.
quero lá saber se é irónica. Não há | dádas iguáis
Circunstâncias. Não o são nem nunca o serão.

Geoffrey Hill. Scenes from Comus [3.13]. Penguin (2005). Tradução minha.

Joy is the full sun and the half shadow.
Twelve sounds unbalanced, no doubt of that —
blasted city fathers! But imbalance

is everywhere. In the tectonic plates
ripping Iceland apart, to cite you basics.
I'm no Fortuna-type, though, much as I love

Boethius. And irony has its limits.
If this were adjudged Senecan I'd be honoured.
Surrey's bitter proud jousting, his straight-up

elegy for Wyatt, I can find strength in,
ironic or not. Nót | all óther thíngs
being equal. They áren't and never wíll be.

21/08/2020

Comunismo, História, e Progresso - Sobre o Walter Benjamin

Brecht & Walter Benjamin a jogar xadrez


O texto “Sobre o conceito da História” (1940) do Walter Benjamin, o seu ultimo texto, é uma exploração idiossincrática do que é o materialismo histórico, e da função e papel de uma escrita da História que se queira comprometida com um ideal revolucionário. São vinte parágrafos, dezoito numerados em dois em apêndice, num total dumas seis páginas. Traduzi-o aqui:

Sobre o conceito de História

//////

Já tinha lido vários textos do Benjamin, inclusive este, mas foi esta a primeira vez que voltei a ele depois de me tornar marxista e comunista. A primeira coisa que me saltou à vista foi o quão domesticada está toda a figura dele. Para um autor que é com tanta regularidade e leviandade tratado como mais um da teoria crítica e estética, o que aqui encontramos não é um texto acidentalmente ou lateralmente marxista, mas do qual se possam extrair certas opiniões sobre História ou Historiografia sem subscrever o todo. Antes pelo contrário, trata-se de um manifesto dum materialismo histórico idiossincrático mas militante, comunista, marxista, e que se opõe directamente a qualquer posição social-democrata ou mesmo anarquista, fazendo questão de argumentar que tanto as concepções teóricas quanto as práticas por que optam para combater o fascismo não conseguem senão fortalecê-lo.

A social-democracia, na sua neutralidade política, não pode senão ser fascizante. Os sociais-democratas lutam contra o fascismo, mas são impotentes para o combater liberalmente quando as condições materiais e a distribuição de recursos tornam o fascismo uma escolha sensata para uma maioria da população. Quando se chega a esse ponto, essa mesma social-democracia ora o possibilita politicamente pela sua neutralidade teórica, ora carece, para sobreviver enquanto regime, da premissa fascista da extracção de mais-valia de colónias internas ou externas.

O projecto de Benjamin neste texto é olhar para esta tragédia do entendimento político através duma análise do conceito de progresso. Segundo ele, a ideia de que a história tem uma direcção pré-cognoscível não passa duma asserção dogmática. Não sabemos se o que se passará amanhã será melhor do que o que temos hoje. 

Não temos qualquer motivo para acreditar numa linha progressista da história. Para acreditar que as coisas vão ficar melhor. Que caminhamos em direcção à emancipação universal. Há aqui dois alvos. O primeiro é uma determinada concepção do materialismo histórico.

O materialismo histórico é vulgarmente entendido como a teoria de que, dado que a história de todas as sociedades que alguma vez existiram é a história da luta de classes, e que a luta de classes se resolve numa linha dialéctica que desencadeia alterações de produção, então não só a história acabaria com o fim do conflito dialéctico, como também que o colapso do capitalismo e a inauguração do socialismo não só é inevitável como também é iminente. Esta concepção é tradicionalmente associada às correntes revolucionárias socialistas.

A segunda concepção é a concepção social-democrata, que desde 1919 e da traição da revolução espartaquista argumentou que a feitura da revolução é desnecessária, já que a história caminha numa direcção de progresso, e que, duma forma ou de outra, caminhamos na direcção socialista. Ou seja, o caminho seguro e constante, dado tempo infinito (“em linha recta ou em espiral” [13] assegurar-nos-á uma chegada à utopia na terra. Esta é a concepção hegemónica, dominante, água-na-qual-os-peixes-não-notam-que-nadam dos dias de hoje em particular após a derrota histórica da União Soviética. Acreditamos que as coisas ficarão melhor, imaginamo-nos “progressistas” porque fazemos avançar as coisas, dizemos coisas como “é escandaloso como em pleno século XXI ainda haja desigualdade de género ou racismo”, e consideramos as experiências do passado necessariamente piores do que as contemporâneas.

A estas duas posições o Benjamin contrapõe uma posição hostilmente anti-progressista, ou seja, hostilmente adversa à ideia de que possamos alguma vez ter a certeza ou a crença de que as coisas estão a caminhar em alguma direcção emancipatória. Responde uma coisa à tradição marxista revolucionária e outra aos social-democratas, embora as respostas a ambos se baseiem na mesma premissa.

A crítica à concepção social-democrata é mais fácil porque, embora vários dos seus defensores tenham tido aquela mais bonitinha das qualidades que são permitidas aos senhores do mundo, ou seja “boas intenções”, a verdade é que a alternativa reformista à posição revolucionária não pode senão estar entrelaçada com os interesses de classe de quem quer avançar em direcção ao socialismo mas para quem a revolução nem é tão urgente assim. É preciso apontar que por “social-democracia” entendemos, tanto no texto do Benjamin quanto na contemporaneidade, ora aquele subgrupo da democracia liberal que acredita que o caminho para a emancipação da humanidade se faz no interior das estruturas liberais democratas (o Partido Socialista, como está no nome, ou o DSA - Democratic Socialists of America) ora o regime em si, que na realidade não se distinguem muito. É a posição anti-revolucionária por excelência, porque ao contrário da direita reaccionária, que rejeita os ideias da revolução, a social-democracia afirma que conseguirá atingir os ideias da revolução melhor até do que a revolução, que a revolução é uma falsa partida. Isto porque a revolução pode fazer ricochete, pode correr (e tantas vezes corre) mal, e é portanto uma ingerência despropositada na História que, de si, já se encaminha na direcção da emancipação e do progresso.

A crítica feita aos sectores da tradição marxista ele enquadra-a na categoria de “versão vulgar do marxismo”, constitui uma crítica profunda talvez não ao pensamento do Marx mas certamente à forma como este foi entendido talvez por uma esmagadora maioria de marxistas e comunistas até hoje. É a ideia de que a dialéctica do materialismo histórico, da luta de classes, inevitavelmente levará ao comunismo. É um trejeito linguístico que encontramos bastante na literatura socialista do século passado, com frases como “o capitalismo chegou a uma tal fase que as suas contradições inevitavelmente levarão ao socialismo”, ou outras do mesmo género. Já o Marx por sua vez diz no Manifesto, assim como em várias outras passagens, que a luta de classes nem sempre resultou numa “reconstituição revolucionária da sociedade”, ou seja, num avanço (progressista) da História. Não, diz ele, por vezes resultou na “ruína comum das classes em confronto”.

Que tenhamos tentado ver nos textos marxistas esse determinismo que nos reconfortasse como uma sopa quente na noite fria do mundo não quer dizer que esse determinismo esteja lá. Ao ler textos marxistas como o Capital espantamo-nos por essa tal “inevitabilidade lógica” estar completamente ausente. Jamais as coisas “resultam inevitavelmente” ou “só podem conduzir” a este ou àquele resultado. Bem pelo contrário, o desenvolvimento das categorias do pensamento marxista sempre se dá de forma profundamente orgânica, com conceitos a darem origem a outros conceitos através duma espécie de desenvolvimento interno que, quando confrontado por obstáculos, é tantas vezes cessado ou abortado ou redirigido para bem longe daquilo que seria o seu desenvolvimento logicamente determinado. Que não há nada de inevitável na História é algo que nos deveria vir mais naturalmente no século XXI depois do triunfo neoliberal capitalista em 1991, mas a verdade é que a inevitabilidade (e a benignidade) do sistema actual é hegemónica hoje, quando “é mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo”.

Ora, exactamente nos mesmos termos mas fazendo o pino,  a teoria da inevitabilidade do comunismo, dado tempo infinito para o capitalismo se afundar nas suas contradições não só é uma leitura profundamente débil da energia que o capitalismo tem para, findas as colónias externas, continuar a extrair mais-valia ad infinitum de colónias internas raciais e sexuais, como para além disso é uma teoria cómica tendo em conta o limite temporal ligado às alterações climáticas e o colapso civilizacional que lhes está associado.

A ideia de que o materialismo histórico é progressista, que se encaminha na direcção inevitável do triunfo da classe trabalhadora é, segundo o Benjamin, uma ideia não só teoricamente errada como tem também consequências mortais para a prática revolucionária. É gerador de letargia e de imobilização, já que o esforço necessário à construção do socialismo se torna quase desnecessário, visto que o trabalho será feito pelas próprias contradições capitalistas sem que a canseira organizativa e combativa seja necessária. Em lugar de trazer o tal conforto paternal de que, mesmo que as coisas corram mal, vai ficar tudo bem, a tal sopa quente, gera, em vez de reconfortar, uma posição conformista e, consequentemente, anti-revolucionária.

«O conformismo, que se esconde na social-democracia desde o início, condiciona não apenas as suas tácticas políticas mas também as suas concepções económicas. É uma causa do colapso posterior. Não há nada que tenha corrompido tanto a classe operária alemã quanto a ideia de que está a nadar na direcção da corrente. A classe operária entendia o desenvolvimento tecnológico como a inclinação da corrente com a qual pensava que estava a nadar. Daí era só um passo até se convencer da ilusão de que o trabalho fabril, desenvolvido a reboque do progresso técnico, lhe haveria de proporcionar uma oportunidade política.» [11]

É neste contexto que se enquadra a refutação da leitura de Gershom [Gerhard] Scholem, o famoso estudioso da Cabala judaica e amigo de longa data de Benjamin, que afirmou, a propósito deste texto, que serviria para atestar a viragem final do pensamento de Benjamin no seu afastamento ao materialismo histórico e a sua transição para o pensamento messiânico cabalístico. Segundo Scholem, o conceito a que Benjamin aqui chama de materialismo histórico não o é “senão no nome”, já que não passa dum fantoche ao serviço da teologia, como o Benjamin conta no primeiro parágrafo.

“Há-de ganhar sempre o fantoche a que chamamos ‘Materialismo Histórico’. Pode lidar sem preocupação com qualquer um, desde que traga a teologia ao seu serviço, que hoje é, como sabemos, pequena e feia e não deixa que olhem para ela.” [1]

Penso que é pouco problemático demonstrar que o Scholem se limitou a encontrar no texto aquilo que já queria encontrar. Não só o resto do texto é explícito no compromisso até à morte de Benjamin (foi o seu último texto e suicidou-se semanas mais tarde) com uma posição revolucionária marxista, como ainda por cima a passagem acima-citada limita-se a denunciar esse tipo de marxismo vulgarizado, seguro de si, que ele pretendia abalar. É fácil perceber isto: o marxista vulgar, na visão dele, acredita que: “o fantoche a que chamamos ‘materialismo histórico’ há-de sempre ganhar”. Ora todo o texto é construído de forma a ridicularizar e a expor o obsceno de toda a posição que ouse afirmar que o materialismo histórico “há-de ganhar sempre”. Não, não há-de ganhar coisa nenhuma. Tudo o que temos são escombros e raiva. A confiança de que o materialismo histórico ganhará é progressismo intelectualizado, e se a teologia afirma que alguma coisa - mesmo que seja o materialismo histórico - "ganhará sempre" então é a teologia que se expõe a si mesma como uma fraude.

Ora o Walter Benjamin denuncia ambas estas posições como sustentadas ambas na crença “dogmática” [13] no progresso. Em lugar delas oferece uma visão virada não para o futuro mas sim para o passado. Isto pode parecer uma mera inversão, mas é tudo menos isso, pelo motivo simples de que, ao contrário do futuro que desconhecemos como será, o passado já aconteceu e pode ser vislumbrado. A forma como pode ser vislumbrado, e o carácter ontológico e fenomenológico desse tempo histórico (ou seja, como é que ele existe em si e como é que ele existe para nós) é algo a que o Benjamin devota vários dos parágrafos do texto, mas a premissa de base é clara: temos uma relação real com aquilo que passou que jamais teremos com o futuro. A metáfora que ele usa para o exemplificar é a do famoso anjo da História, que é arremessado de costas para um futuro caótico e que diante dos seus olhos vai vendo os escombros e as ruínas do que aconteceu amontoarem-se em pilhas que se erguem até aos céus.

Daqui deriva-se uma teoria e prática revolucionárias vastamente diferentes das expostas por uma concepção metafísica progressista face ao futuro. Faz parte dessa concepção revolucionária desistir do debate estéril entre “meios e fins” que assombram a discussão entre marxistas e anarquistas. A principal crítica anarquista ao marxismo é que um engajamento dialéctico com a realidade que faça cedências à realidade material não pode senão envenenar todo o projecto; não se trata da questão, dizem eles, de se meios justificam ou não justificam os fins, mas sim tão-somente que o uso de meios que violem a essência do fim buscado comprometem, corrompem, e impossibilitam que se chegue a esse mesmo fim, por muitos “meios” que se usem: o uso de determinados meios destrói o fim.

O Benjamin rejeita implicitamente colocar a discussão nesses termos, desvelando o seu carácter progressista e a-histórico. A partir do momento em que nos afastamos do pensamento teleológico, e o transformamos em pensamento histórico, deixamos de ter um fim prometido ao qual sacrificaríamos a nossa acção. A preocupação com o fim, mesmo com o estatuto ontológico do fim, é eminentemente progressista, e denuncia uma falta de preocupação com o passado ou com o processo de criação, mas apenas com o fim apregoado. 

Em lugar de ser acção com vista a um fim, ou seja teleológica, diz ele que a acção política, concretamente a acção política da classe trabalhadora constituída no “momento do seu perigo” [6], é uma acção vingadora. Vingadora de quem? Dos escombros e dos derrotados da História. A acção revolucionária é uma acção messiânica porque consiste em salvar a História do esquecimento, torná-la, como ele diz, “inteiramente citável” nos anais da História, por oposição ao nosso tempo, em que apenas são citados os vencedores e os triunfadores.

“É certo que apenas a humanidade redimida se poderá apropriar do seu passado em toda a sua plenitude. Quer isto dizer: para a humanidade redimida, todos os instantes do seu passado tornar-se-ão citáveis.” [3]

O materialismo histórico identifica a classe trabalhadora como a vingadora dessas derrotas Históricas através da derrota da classe dominante. Por outras palavras, segundo o Benjamin, a bússola do materialista histórico, ou seja do comunista marxista, não é tanto o socialismo-por-vir, quanto é empatia para com os condenados e oprimidos da história passada, e a raiva contra quem lhes fez aquilo que lhes fez. Como acontece ao anjo da História, é desconhecido o caminho que se percorre e a direcção em que se vai, a única coisa que se têm diante dos olhos é a cadeira de escombros prestes a serem esquecidos se não forem redimidos pela escrita revolucionária da História, que tem a vertente dupla tanto de historiografia quanto de acção política revolucionária.

“O sujeito do conhecimento histórico é a classe oprimida em luta. Em Marx ela aparece como a última classe escravizada, como a classe vingadora que leva a cabo o trabalho da libertação em nome de todas as gerações de derrotados.” [13]

Que a batalha se trava também na História é talvez hoje mais consensual do que o era quando o Benjamin escrevia, mas é possível que ainda assim os objectivos de travar essa batalha sejam diferentes. Hoje é frequente falar da necessidade da História não-oficial, usando termos semelhantes ao dele, como de um recuperar de acontecimentos esquecidos, cujo esquecimento fora já ele uma violência. É uma lógica subsumível no argumento mais amplo de que a revolução consiste em tornar citáveis todos os instantes da História. Mas o argumento do Benjamin continua. A vontade de tornar citáveis momentos em vias de esquecimento não é apenas uma reparação feita ao passado, como é também parte do processo de acção revolucionária. Ganhar consciência das injustiças infligidas no passado contra os oprimidos suscita uma reacção de raiva que nenhuma promessa de uma utopia poderá alguma vez igualar.

“O dom de atiçar no passado a fagulha da esperança pertence apenas a quem escreve a História com a convicção plena de que, se o inimigo vencer, nem os mortos estarão em segurança. E este inimigo não parou de vencer.” [6]

A auto-identificação com os derrotados da história, certamente que a um nível local mas não apenas, acorda uma raiva escondida, raiva essa que todas as correntes reformistas procuraram ocultar. O presente e o passado são idênticos porque não sofremos só com o que está a acontecer neste segundo, sofremos com o que aconteceu desde o instante presente até ao início da dominação. A solidariedade com o passado não começa com o dia em que nascemos. as pessoas não sofrem nem vingam os filhos que não chegaram a ter, sofrem sim pelos pais que foram torturados, pelos avôs e pelos antepassados da memória e da história do seu povo. Não reconhecer isto, pior que ser um falha teológica, é um erro táctico, já que a consciência história e a consciência de classe são uma e a mesma coisa. 

“Esta consciência [histórica], que durante um curto espaço de tempo esteve operativa com os espartaquistas, foi sempre ofensiva à social-democracia. […] Decidiu que era bem atribuir à classe trabalhadora o papel de redentora de gerações futuras. Com isso cortou-lhe o tendão das suas melhores forças. Nesta escola, a classe trabalhadora desaprendeu tanto o ódio quando o espírito de sacrifício, ambos os quais se alimentam da imagem dos antepassados escravizados, não do ideal duns descendentes libertados.” [13]

Toda esta visão tem várias consequências. A primeira é que as experiências revolucionárias do passado deixam de ser vistas contra a régua de “quanto é que avançaram o socialismo”. Em vez de medirmos o quanto é que progrediram ou conseguiram progredir, tantas vezes com uma desatenção à infraestrutura que envergonharia qualquer marxismo coerente, solidarizamo-nos com a raiva que sentiram contra os nossos inimigos comuns, e solidarizamo-nos com a sua derrota histórica. Entendemos, como diz o Mao, que o socialismo é um martelo. O comunismo surge então para a consciência do materialismo histórico, entendido nestes termos, como uma incógnita dum futuro que não é real para nós, porque não o vivemos nem sabemos de quem nele tenha vivido. Antes, olhamos para a história como rebeliões falhadas, mas não, como dizia a Rosa Luxemburgo, “de derrota em derrota até à vitória final”, já que a vitória não está assegurada, mas como cadeia destroçada de derrotas que acorda no sujeito histórico o desejo de vingança. 

Só uma visão catastrófica do mundo, uma desistência total de toda a segurança e todos os amparos, uma situação de extrema necessidade sem deus ex machina da história, sem pai dos céus que guie a providência, só a constatação de que não há redentor para a classe trabalhadora que não seja ela mesma (nem mesmo a direcção da História, o progresso) é que a coloca no “instante do perigo” [6] (citando obliquamente Hölderlin) que é o momento revolucionário.

O não reconhecimento disto na luta actual contra o fascismo, que se imagina a caminhar “na direcção da História”, é programático e faz todo o sentido ao nível da super-estrutura que seja defendido por quem o defende, porque serve o interesse da classe que sofre com ele um sofrimento legítimo, mas preferia, em vez de acabar com ele, que fossem outros a sofrer. Quando entendemos a História como progresso ficamos desarmados quando a vemos a avançar na direcção da opressão, e do fascismo. A História entendida enquanto catástrofe cósmica é a única capaz de fomentar a revolução e de derrotar o fascismo.

Sobre o Conceito de História (Walter Benjamin)



Sobre o Conceito de História

Walter Benjamin (1940)

Miguel Monteiro trad.


1. 

Sabemos de um robot construído de tal forma que a cada jogada de xadrez do seu adversário seria capaz de responder duma maneira que lhe assegurasse sempre a vitória da partida. Um fantoche em trajes turcos, de cachimbo-de-água na boca, estava sentado diante duma mesa ampla. Graças a um sistema de espelhos despertara-se a ilusão de que seria possível olhar através desta mesa por todos os lados. Na verdade o que se passava é que um anão corcunda, um mestre de xadrez, estava lá sentado dentro, e dirigia a mão do fantoche com uns cordéis. Podemos imaginar um paralelo filosófico a esta geringonça. Há-de ganhar sempre o fantoche a que chamamos "Materialismo Histórico". Pode lidar sem preocupação com qualquer um, desde que traga a teologia ao seu serviço, que hoje é, como sabemos, pequena e feia e não deixa que olhem para ela.


2. 

"Uma das mais notáveis características do espírito humano", diz Lotze, "é o facto de um tão grande egoísmo individual conviver com a ausência geral de inveja de cada Presente face ao seu Futuro." Esta reflexão conduz-nos à ideia de que a imagem da felicidade que concebemos está completamente tingida pela época a que o decurso da nossa existência nos entregou. A felicidade que a inveja poderia despertar em nós existe simplesmente no ar que respirámos, com pessoas com quem poderíamos ter conversado, com mulheres que se poderiam ter entregado a nós. Por outras palavras, ao imaginarmos a felicidade somos coagidos sem alternativa a imaginar também a salvação. Passa-se o mesmo quando imaginamos o Passado, o assunto de pesquisa da História. O Passado levanta um dedo misterioso, e através dele refere-se a si mesmo à salvação. Não nos toca uma mesma brisa de vento que soprou em torno dos que vieram antes de nós? não há nas vozes que escutamos um eco dos que entretanto emudeceram? as mulheres com quem flirtamos não têm irmãs que elas mesmas jamais conheceram? Se assim for, então existe um encontro secreto entre as gerações que passaram e a nossa. Na terra aguardaram por nós. A nós, tal como a todas as gerações que existiram antes de nós, foi-nos concedido um ténue poder messiânico, e o passado tem direito a reivindicá-lo. Esta reivindicação não pode ser despachada de forma leviana. O materialista histórico sabe-o bem.


3. 

O cronista que reconta os acontecimentos sem distinguir entre grandes e pequenos dá conta da verdade que nada que alguma vez tenha acontecido deve ser tomado como perdido para a História. É certo que apenas a humanidade redimida se poderá apropriar do seu passado em toda a sua plenitude. Quer isto dizer: para a humanidade redimida, todos os instantes do seu passado tornar-se-ão citáveis. Todos os instantes vividos num dos "acontecimentos notáveis do dia" [citation à l'ordre du jour] - sendo que o dia em questão é o do Juízo Final.


4. 

"Tratem primeiro de ter o que comer e que vestir, que o Reino de Deus depois vem por si." - Hegel, 1807


A luta de classes, que um historiador educado por Marx jamais deixa de ter diante dos olhos, é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais as outras sofisticadas e espirituais não podem existir. Ainda assim, na luta de classes estas últimas não estão presentes apenas como os despojos que calharam ao vencedor. Nela, elas vivem e actuam sobre as distâncias do tempo como Confiança, Coragem, Argúcia, Convicção. Não cessam jamais de colocar em questão todas as vitórias que os vencedores alguma vez celebraram. Tal como as flores inclinam a cabeça para o sol, assim também aquilo que aconteceu se esforça, graças a um género obscuro de heliotropismo, por se entregar ao sol que se levanta no céu da História. O materialista histórico deve conciliar-se com esta mais imperceptível de todas as transformações.


5. 

A verdadeira imagem do Passado esgueira-se por nós. O Passado pode apenas ser retido enquanto imagem que relampeja sobre a irrepetibilidade no instante em que é reconhecido. "A verdade não nos passará ao lado" — esta frase, proferida por Gottfried Keller, indica na concepção histórica do historicismo o momento exacto em que este se aparta do materialismo histórico. Em cada Presente há uma imagem irrecuperável do Passado que ameaça desaparecer, uma imagem que não se reconhece naquela que o Presente formula.


6. 

Articular historicamente algo que passou não quer dizer reconhecê-lo "como ele realmente aconteceu". Quer dizer apropriar-se duma memória tal como ela relampeja no instante de um perigo. Compete ao materialismo histórico agarrar uma imagem do passado como esta surge ao sujeito histórico no instante do perigo. O perigo ameaça não só a existência da tradição mas também quem a recebe. Ambos correm o mesmo e um idêntico perigo: entregarem-se como utensílio da classe dominante. Há que tentar de novo em cada época arrebatar a tradição ao conformismo que pretende dominá-la. O dom de atiçar no passado a fagulha da esperança pertence apenas a quem escreve a História com a convicção plena de que, se o inimigo vencer, nem os mortos estarão em segurança. E este inimigo não parou de vencer.


7.

Considera as trevas e o frio imenso

Neste vale onde tudo é lamento.

Brecht, A Ópera dos Três Vintéis


Fustel de Coulanges recomenda que um historiador que queira reviver uma época trate de expulsar da cabeça tudo o que souber daquilo que aconteceu depois. Não é possível identificar melhor o método com que o materialismo histórico rompeu. É um método da empatia. A sua origem é a inércia do coração, uma tal acédia que desespera de se apoderar da autência imagem histórica que desaparece num relampejar fugidio. Os teólogos da Idade Média consideravam esta acédia a causa fundamental da tristeza. Flaubert, que com ela estabelecera relações de cordialidade, escreve: "Peu de gens devineront combien il a fallu être triste pour ressusciter Carthage." [Poucas pessoas suspeitam do quão triste foi preciso estar para ressuscitar Cartago.] A natureza desta tristeza torna-se mais clara assim que se coloca a pergunta, com quem é que o historiador do historicismo sente empatia? A resposta é, invariavelmente, com o vencedor. Aqueles que actualmente dominam são os herdeiros de quem venceu no passado. De forma que a empatia para com o vencedor, para quem hoje domina, é algo perfeitamente benéfico. Sobre isto o materialismo histórico já disse o que tinha a dizer. Todos os que até hoje venceram desfilam no cortejo triunfal e conduzem quem hoje domina sobre os outros que jazem prostrados no chão. Como o costume sempre ditou, os despojos são exibidos no cortejo triunfal. Damos-lhe o nome de bens culturais. Constatarão que o materialista histórico se limita a observá-los à distância. Isto porque quando contempla bens culturais, e se lembra de onde vieram, é incapaz evitar o terror. Não atribui a sua existência apenas ao esforço dos grandes génios que os criaram, mas também à exaustão anónima dos seus contemporâneos. Não houve nunca um documento de cultura que não fosse também um documento de barbárie. E tal como ele mesmo não está livre da barbárie, assim também não está livre dela o processo da tradição, que a vai passando de uns para os outros. O materialista histórico abstém-se de tudo isto na medida do possível. Entende que a sua função é escovar a história a contrapelo.


8.

A tradição dos oprimidos ensina-nos que o estado de excepção no qual vivemos na realidade é a regra. Precisamos de chegar a um conceito da História que lhe corresponda. Então sim a nossa tarefa será estabelecer um verdadeiro estado de excepção, e a nossa posição na luta contra o fascismo sairá fortalecida. O fascismo tira bastantes vantagens do facto de os seus oponentes o enfrentarem em nome do progresso entendido como norma histórica. Aquele espanto de que aquilo que vivemos seja possível "em pleno" século vinte nada tem de filosófico. Não dá início a nenhum entendimento, a não ser talvez ao entendimento de que a concepção de história que lhe dá origem é uma concepção insustentável.


9.

Estão prontas para voar minhas asas,

queria ficar por aqui,

Que se de ser tempo vivo eu deixasse,

seria menos feliz.

Gerhard Scholem, Saudação do Anjo


Há uma imagem do Klee chamada Angelus Novus. Lá vem representado um anjo que parece estar a afastar-se de algo que ele mira fixamente. Os olhos dele estão esbugalhados, a sua boca está aberta, as suas asas escancaradas. O anjo da História terá este aspecto. Tem a cara virada para o passado. Onde nós contemplamos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma única catástrofe que amontoa ruínas sobre mais ruínas intermináveis arremessadas diante dos seus pés. Ele gostaria de parar, de acordar os mortos e de recolher os escombros. Mas do Paraíso sopra uma tempestade que se prendeu nas suas asas e que é tão potente que ele é incapaz de as fechar. Esta tempestade atira-o e arrasta-o incessantemente para o futuro para onde ele tem as costas voltadas, enquanto que o amontoar das ruínas cresce diante dele até ao céu. A esta tempestade chamamos progresso.


10. 

Os temas que as regras das ordens dos claustros impunham aos seus irmãos tinham a função de os desviar do mundo e dos seus incitamentos. A série de pensamentos a que aqui nos dedicamos tem como origem uma intenção semelhante. Num momento em que os políticos nos quais os adversários do fascismo tinham depositado as suas esperanças não só jazem por terra como ainda por mais, ao traírem as suas próprias causas, fortalecem ainda mais a sua derrota, a intenção é libertar o rebento político das cadeias com que o acorrentaram. Esta observação parte da premissa de que a fé obtusa que estes políticos têm no progresso, a sua confiança na sua "base popular", e finalmente o seu enfileiramento servil a um aparato incontrolável são três aspectos do mesmo problema. Ela procura demonstrar quão elevado é o preço que teremos de pagar por uma concepção da História que recuse toda a cumplicidade com aquela a que estes políticos se associam.


11. 

O conformismo, que se esconde na social-democracia desde o início, condiciona não apenas as suas tácticas políticas mas também as suas concepções económicas. É uma causa do colapso posterior. Não há nada que tenha corrompido tanto a classe operária alemã quanto a ideia de que está a nadar na direcção da corrente. A classe operária entendia o desenvolvimento tecnológico como a inclinação da corrente com a qual pensava que estava a nadar. Daí era só um passo até se convencer da ilusão de que o trabalho fabril, desenvolvido a reboque do progresso técnico, lhe haveria de proporcionar uma oportunidade política. A antiga moral laboral protestante celebrou a sua ressurreição de forma secularizada junto dos trabalhadores alemães. O programa de Gotha já continha em si traços desta confusão quando definia o trabalho como "a fonte de toda a riqueza e de toda a cultura." Temendo o pior, Marx retorquiu que uma pessoa que não possua nenhuma outra propriedade para além da sua força de trabalho "será sempre o escravo daqueles que se transformaram a si mesmos em proprietárias." Não obstante tudo isto, a confusão espalhou-se, e em breve Josef Dietzgen proclamou que: "O trabalho é o Salvador dos tempos modernos ... no ... avanço ... do trabalho ... consiste a riqueza, que será capaz de realizar aquilo que até hoje nenhum Redentor foi capaz de realizar." Esta vulgarização do conceito marxista do que é o trabalho não se detém muito tempo a perguntar-se como é que os seus produtos podem servir de alguma coisa aos trabalhadores enquanto estes forem incapazes de ter acesso a eles. Atenta apenas aos progressos na dominação da natureza, não aos retrocessos da sociedade. Atesta já às tendências tecnocráticas que brotarão mais tarde, no fascismo. Entre estas tendências encontra-se um conceito de natureza que se demarca de forma sinistra daquele que vingava nas utopias socialistas do período antes de 1848. Hoje entende-se que o trabalho decorre da exploração e do esgotamento da natureza, a mesma que se contrasta, com satisfação assaz naïve, à exploração e esgotamento do proletariado. Quando comparados com esta concepção positivista, as fantasias que proporcionaram tanto tema de chacota contra Fourier até parecem relativamente sãs. Segundo Fourier, o trabalho social bem-organizado traria resultados tais, que a noite terrestre haveria de ser iluminada por quatro lutas, que o gelo desapareceria dos pólos, que a água do mar não seria mais salgada, e que os animais selvagens entrariam a serviço da raça humana. Tudo isto designa um trabalho que, longe de explorar a natureza, está em condições de a libertar das criações que hibernam no seu ventre. Ao conceito corrompido de trabalho corresponde a Natureza como um complemento que, como Dietzgen formulou, "está ali grátis."


12.

Precisamos de História, mas não como precisa dela o dandy ocioso no jardim do conhecimento.

Niezsche - Vantagens e Desvantagens da História para a Vida


O sujeito do conhecimento histórico é a classe oprimida em luta. Em Marx ela aparece como a última classe escravizada, como a classe vingadora que leva a cabo o trabalho da libertação em nome de todas as gerações de derrotados. Esta consciência, que durante um curto espaço de tempo esteve operativa com os espartaquistas, foi sempre ofensiva à social-democracia. No decurso de três dezenas de anos foi capaz quase de apagar o nome de um Blanqui, cujo eco fez tremer o século passado. Decidiu que era bem atribuir à classe trabalhadora o papel de redentora de gerações futuras. Com isso cortou-lhe o tendão das suas melhores forças. Nesta escola, a classe trabalhadora desaprendeu tanto o ódio quando o espírito de sacrifício, ambos os quais se alimentam da imagem dos antepassados escravizados, não do ideal duns descendentes libertados.


13.

"A cada dia a nossa causa torna-se mais clara, a cada dia o povo se torna mais esclarecido."

Josef Dietzgen, Filosofia Social-Democrata


A teoria social-democrata, e ainda mais a práxis, é determinada por um conceito de progresso que não tem nada que ver com a realidade e que se sustenta por exigências dogmáticas. O progresso, tal como ele se desenha das cabeças dos social-democratas, seria antes de mais um progresso da própria Humanidade (não apenas das suas capacidades e conhecimentos). Em segundo lugar, não teria limites (dado que correspondia a uma perfeitibilidade infinita da humanidade). Em terceiro, era essencialmente imparável (já que percorria por si só um caminho a direito ou em espiral). Cada uma destas predicações é controversa, e poder-se-ia montar a crítica a cada uma delas individualmente. Porém, se for para ser a sério, a crítica terá de dar a volta a todos elas e a apontar àquilo que se esconde por detrás e que elas têm em comum. A concepção dum progresso da raça humana na História é inseparável da concepção de um avanço através de um tempo homogéneo e vazio. A crítica à concepção do avanço constitui a base da crítica da concepção do progresso.


14. 

O início é o alvo.

Karl Kraus, Palavras em Versos I


A História é objecto duma construção que não tem lugar num tempo homogéneo e vazio mas sim num tempo permeado pelo Presente. Para Robespierre, a Roma antiga era um passado que levava a carga do presente, um passado que ele fez eclodir desde o contínuo da História. A Revolução Francesa entendia-se a si mesmo como uma Roma retornada. Citava a Roma antiga como a moda cita um vestuário do passado. A moda tem faro para o actual, onde quer que este vagueie pela mata do antigamente. Ela é o salto de tigre sobre o que aconteceu no passado. Agora toda ela se passa numa arena onde quem manda é a classe dominante. O mesmo salto, mas sob o livre céu da História, é o salto dialéctico que Marx concebeu como a Revolução.


15. 

A consciência de fazer eclodir o contínuo da história é uma característica própria das classes revolucionárias no momento da sua acção. A grande revolução introduz um novo calendário. O dia que inaugura o calendário funciona como condensador do tempo histórico. Visto assim, é sempre o mesmo dia que regressa na forma de feriados, o dia da memória. Os calendários não contam o tempo como relógios. São monumentos a uma consciência histórica, dum tipo que desde há um século que não parece deixar na Europa nem os mais leves traços. Na Revolução de Julho aconteceu um incidente inesperado que trouxe esta consciência ao seu lugar merecido. Quando terminou o primeiro dia de combate passou-se que, em vários lugares de Paris, simultânea e independentes uns dos outros, se começou a disparar contra os relógios das torres. Uma testemunha ocular, que talvez deva à rima a sua capacidade profética, escreveu na altura:


Dizem que novos Josués, quem possível julgaria!

Se zangaram com o tempo, e junto a cada torre

Dispararam aos diais, e queriam parar o dia.


Qui le croirait! on dit qu'irrites contre l'heure

De nouveaux Josues, au pied de chaque tour,

Tiraient sur les cadrans pour arreter le jour.


16. 

O materialista histórico não pode prescindir do conceito de um presente que não é passagem, de um presente que se detém no tempo e que fica em repouso. Isto porque este conceito define até mesmo o presente no qual ele escreve a História para a sua própria pessoa. O historicismo propõe uma imagem eterna do passado, o materialista histórico propõe a experiência única do passado. Ele deixa para outros a chance de se esgotarem com a prostituta "Era uma vez" no bordel do historicismo. Permanece senhor das suas forças, homem suficiente para fazer eclodir o continuum da História.


17. 

O Historicismo culmina legitimamente na História universal. O método materialista de escrita da História distingue-se talvez de forma mais clara deste do que de qualquer outro. O primeiro carece de qualquer arcabouço teórico. Processa-se por meio de adição: dispõe da massa dos factos com vista a preencher o tempo homogéneo e vazio. A escrita materialista da história, por outro lado, é fundada num princípio construtivo. O pensar não é constituído apenas por pensamentos em movimento mas também em repouso. Quando o pensamento se detém subitamente numa constelação saturada de tensões, passa-lhes um choque por via do qual se cristaliza a si mesmo em mónada. O materialista histórico só se aproxima dos objectos históricos que o encarem como mónadas. Nesta estrutura ele reconhecer o sinal de um repouso messiânico do devir, ou, dito de outra forma, o sinal duma possibilidade revolucionária para lutar em prole do passado oprimido. Ele apercebe-se dela com vista a fazer eclodir, da passagem homogénea da história, uma época específica; na mesma lógica, faz eclodir uma vida específica do total da época, e uma obra específica do total das obras dessa vida. Deste método resulta que o total das obras dessa vida determinada seja preservado, assumido e anulado [aufbewahrt und aufgehoben] nessa obra, que a época seja preservada, assumida e anulada no total das obras da vida determinada, e que a passagem reunida da História seja, preservada, assumida e anulada na época. O fruto nutritivo de algo compreendido historicamente tem o tempo como no seu interior como semente preciosa mas insípida.


18.

"Em comparação com a história da vida orgânica na terra, os miseráveis cinquenta mil anos do homo sapiens", diz um biólogo contemporâneo, "não passam de dois segundos no final de um dia de vinte e quatro horas. A história da humanidade civilizada, entendida nesta medida, ocuparia um quinto do último segundo da última hora." O agora, que como modelo do messiânico compreende numa abreviatura incomensurável a história de toda a humanidade, corresponde precisamente com a figura que a história da humanidade ocupa no universo.


Anexo A. 

O historicismo contenta-se em estabelecer um nexo causal entre momentos diferentes da história. Mas nenhuma situação factual se torna em algo histórico apenas por ser uma causa. Torna-se tal postumamente, através de acontecimentos que podem distar dela em milénios. O historiador consciente disto cessa de percorrer como um rosário a sequência dos acontecimentos. Ele agarra a constelação que a sua própria época forma quando se encontra com uma outra época determinada, e funda assim um conceito do presente como o "Agora" permeado de lascas do messiânico.


Anexo B. 

É certo que os adivinhos, quando perguntavam ao tempo o que se escondia no seu ventre, não o sentiam nem como homogéneo nem como vazio. Quem tiver isto presente poderá talvez perceber que o tempo passado experienciado na rememoração é concebido dessa mesma forma. Sabemos que aos Judeus era proibido investigar o futuro. Antes pelo contrário, a Torah e a oração ensinam-se na rememoração. Isto desencantou-lhes o futuro, enquanto que os que interrogavam os adivinhos sucumbiam a ele. Mas isto não quer dizer que para os Judeus o futuro se tivesse tornado tempo homogéneo e vazio, pois nele cada segundo era a porta estreita por onde podia entrar o Messias.