A injunção christã de não escandalizar as crianças pode apenas ser entendida como aquilo que em linguística chamamos um complemento qualificativo. Escandalizemos todos, menos as crianças. Porque a mensagem christã, longe de ser um evangelho, uma boa nova, é antes de mais talvez o maior escândalo alguma vez cometido contra a humanidade. Ao contrário da filosofia antiga, que evitada escândalos (o texto mais escandaloso que dela nos chegou, a República, dá-se a muito trabalho para qualificar as suas afirmações). Os grandes filões da contemporânea ou fazem a delação da realidade comote injusta porque sectária, partidária, violenta, hierárquica (Nietzsche); ou na apotheose de ideias duma justiça secularizada triunfante ou triunfatura sobre os injustos— pois como dizia um dos melhores professores que já tive, «falar da superação dialéctica da burguesia é um grande eufemismo».
Mas o Christianismo é a religião da injustiça universal. A parábola da ovelha perdida, do filho pródigo, são o eixo. Lembro-me de quando em criança a discutia não a conseguia compreender, não a aceitava, e lembro-me de a catequista fazer o ar enfadado de quem não está para aturar um puto que insiste em não perceber a coisa mais óbvia. Se alguma vindita posso daí tirar é que eu tinha razão, a lógica é algo que é naturalmente, profundamente justa: operações onde as proporções são sempre asseguradas, onde as leis são salvaguardadas, e onde é apenas possível o desvio dessas mesmas leis para evitar o erro do literalismo, e finalmente para assegurar a operação das mesmas leis que são apenas ostensivamente violadas.
Mas o Christianismo joga para fora. Não há inferno. Não há condenação. O pecado é um dano mais ao pecador do que a Deus, da mesma forma que eu me leso muito mais a mim do que ao capitalismo se queimar as notas que tenho. O amor, sabiam-no já os gregos, é a força mais injusta do mundo. E o Christianismo é a religião não da Justiça mas do Amor. Os dois opõem-se: não posso ser justo para com quem amo porque o amo, o problema é que a falta de justiça pode dar origem quer a desvantagens quer a vantagens. Como humanos que somos não podemos amar todos, aqui Freud percebeu bem o problema de S. Francisco. Querer amar todos é falso, o amor alimenta-se do ódio: quantos mais amamos mais odiamos, porque a balança tende a equilibrar-se: é o problema dos nacionalismos. Mas Deus é infinito, é summo amor: Deus pode a todos amar sem ter que o contrabalançar com ódio. Deus é profundamente injusto para com todos: é injusto porque a todos assegura a salvação quando ninguém fez o suficiente para a merecer (isto percebeu Luthero), e é ainda mais injusto porque assegura a salvação a quem fez tudo para não a merecer (isto percebeu Orígenes): a injustiça e o amor é a verdadeira dicotomia.
A beleza também é injusta. A herança clássica greco-latina de ad verum, justum, rectum, pulchritudinem fez uma passagem nefasta pela theologia cristã. A apropriação dos termos não era apropriada. O que o Christianismo nos tenta ensinar há séculos é a beleza, verdade, e rectitude da injustiça. Porque não o consegue? Porque somos humanos, e essa injustiça, ao ser praticada por humanos, levará inevitavelmente à destruição, à nossa sectarização e aniquilação mútua. Por isso é que o christianismo é impossível, por isso é que Christo pregou o Reino e veio a Igreja — tinha que ser. Por isso é que o Grande Inquisidor do big D tinha toda razão. Mas não deixa de ser a maior promessa que alguém alguma vez nos fez — mas cuidai que não entendais isso como um fechar em comédia: o facto de isso ter sido a maior promessa que alguém nos fez talvez não deva ter outro efeito do que fazer-nos suspeitar das promessas.