10/02/2012

Sobre os Sacrifícios

A expressão consagrada junto dos gregos para designar a oferenda aos deuses é uma que estamos sobejamente familiarizados a encontrar, mas num contexto diferente. Ἀνάθημα, anáthêma (ou ἀνάθεμα anáthema), designa fisicamente a pós-posição, subentendendo-se ao altar ou ao templo. Como adquiriu o nosso sentido de persona non grata? Um animal oferecido ao deus está naturalmente condenado à morte conquanto que anua: deve aceitar ser a oferenda, o bode-expiatório, deve ir voluntário, muy fecunda noção. A língua latina encontra um paralelo semelhante com o homo sacer de Frazer e Agamben, pois o homo sacer, tal como aquele que é declarado anáthêma, passa a ser identificado como um morituro, sendo a sua  morte tributável a quem assim o desejar, pois o dito condenado se encontra já dentro da esfera divina, com o qual a única relação possível é o acto de ofertar a morte. Não percebemos de imediato a natureza desta relação, sendo que a religião que ainda nos poderia ser familiar para o conceito de sacrifício, o Cristianismo, há muito tirou das mãos dos seus crentes o acto directo de derramar sangue, para deixar a contemplação da oferenda e o temor face a actos já feitos. Nenhuma das grandes religiões contemporâneas derrama o sangue de seres vivos num contexto sacrificial. Mas a mim sempre me soou estranho que a acção consagrada a  aplicar àqueles seres colocados nesse mundo paralelo, neste mundo mas não deste mundo, fosse a violência. Há uma perturbação da ordem, uma usurpação: a intelecção da Arendt quando nos lembra de que a presença da Verdade no Mundo desvaloriza este último; segue-se que, a termos que escolher, devemos escolher o último.

Assim compreendemos que a palavra anáthêma perca a sua aura sancta e adquira uma de hostilidade, quase abjecta, ao nomeado. O divino é expulsando, combatendo, pois não há para ele lugar aqui: põe-nos em causa, nomeia um Tudo Sancto em troca sacrificatória pelas pessoas pelas quais apenas poderia fazer sentido; transforma-se numa tentação, a tentação de bajular Deus preferindo-o às suas creaturas: não pode ser feito. O Christo de Ário (talvez também o de Kazantzakis) tenta semelhantes salvações, sacralizações do mundo na sua totalidade estabelecidas pela relação posta entre a totalidade das paixões humanas demasiado humanas e a divindade. Mas Deus é distante, difícil: condenada ao fracasso, pois o marasmo infiltra-se na nossa terra féril como a chuva de Abril. O modelo é Zarathustra, a besta sacrificial voluntária, o anáthêma  que traz consigo outro ainda, e que por "amor ao Homem" lhe entrega a Virtude Que Oferece. O movimento é o mesmo que o Ariano, mas aqui a força é centrípeda e não centrífuga: os sacrifícios  mantém o sangue no mundo, flui este em círculos, de uns para outros. Aqui os anathemata são expulsos deste mundo pela força , mas para nenhum outro vão, pois são deste mundo, e aqui permanecem, pois a entrega à raça humana é total e nada há mais que poderia ter sido dado, a transferência tendo sido osmoticamente completa. A liturgia aqui é incestuosa e autofágica como o ouroboros, mas apenas porque se sacrifica em prol de outros que são como ela mesma, não in nomine Dei, apenas por isso pode desprezar a santidade e desdenhar a faca.

3 comentários:

  1. Até hoje o sangue de Cristo é ofertado na Missa, mas este é divino, é humano ou o quê? Como é possível o vinho transformar-se em algo que ele não era? Através de Cristo.

    ResponderEliminar
  2. Bem, não queria por aqui entrar em prestidigitação e truques: Pertence-nos pensar naquilo que nos diz respeito por nós mesmos, em nós mesmos, connosco mesmos uns com os outros. À Theologia deve ser retirada toda a força.

    ResponderEliminar
  3. Mas é exatamente isso Miguel ,
    quando misturamos duas substâncias elas podem reagir uma com a outra, o suco da uva é alimento humano e unido ao trigo do pão realizam uma transformação , isso só é "truque" para os que querem ver na religião algo indecifrável.

    ResponderEliminar